São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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LIVROS - HISTÓRIA DO BRASIL
O historiador decisivo



Evaldo Cabral de Mello diz que noção de história do brasileiro é samba do crioulo doido
RICARDO MUSSE
especial para a Folha

Evaldo Cabral de Mello constituiu uma das obras mais articuladas e ricas da nossa historiografia recente. Seus livros transitam por diversos gêneros historiográficos, como história econômica, política e das mentalidades, resgata de forma admirável e original um período decisivo da nossa história. "Olinda Restaurada" e "Rubro Veio" -agora reeditado pela Topbooks- complementam-se reciprocamente. Enquanto o primeiro investiga empiricamente a tese de que os holandeses foram vencidos sobretudo graças aos recursos locais, o segundo acompanha os desdobramentos dessa idéia no imaginário nativista, de 1654 à primeira metade do século 19.
Semelhante recorte do mundo açucareiro destaca a herança nativista e politicamente radical, surpreendente para o senso comum histórico de hoje, que julgava essa sociedade apenas como autoritária e escravagista.
Historiador à margem da universidade, Evaldo Cabral de Mello conserva uma modéstia rara em intelectuais da sua importância. Assim, à discussão direta de seus textos, prefere falar de seu trabalho obliquamente, muitas vezes por elipses, enquanto discorre sobre a historiografia, o ofício de historiador ou então sobre a obra do conterrâneo Gilberto Freyre.

Folha - Como o sr. se tornou historiador?
Evaldo Cabral de Mello -
Suspeito que me tornei historiador por comodismo. Afinal de contas, é muito mais fácil lidar com gente morta. Mesmo comparativamente a outras profissões que têm comércio com eles, como os coveiros e os agentes funerários, o historiador é um privilegiado, pois o trato se dá a grande distância, mediado por documentos, monumentos, restos arqueológicos. Isto não significa, porém, que os mortos do historiador sejam inteiramente inofensivos. Topar com um capadócio como d. Pedro 1º é algo de ingrato. Por isso mesmo, quanto maior a distância cronológica, menos eles nos importunam, ampliando-se a margem de objetividade do historiador. O ideal consiste em ser medievalista ou especialista da Antiguidade clássica. Sendo brasileiro, preferi a história colonial. O único livro que escrevi sobre o período de formação do Estado nacional, "O Norte Agrário e o Império", foi aquele que redigi com menos prazer. O nosso oitocentismo ainda está muito próximo, tem incidências ainda muito atuais e por isso irrita mais que qualquer outro.
Folha - A companhia dos mortos não conduz à melancolia?
Cabral de Mello -
A melancolia é outro inconveniente das profissões que têm convivência contínua com os mortos. Por isso, a grande história, a do século 19, começou com o romantismo. Desconfie de historiador otimista e eufórico; pode ser sinal de superficialidade. Otimismo é para sociólogos e economistas. É verdade que a preferência pelo passado já é no indivíduo indício de tendência preexistente à acídia. Uma das recordações mais antigas que tenho, algo que deve reportar-se aos oito ou aos dez anos de idade, foi aquele sentimento difuso da vida que anos depois veria formulado como "agitação feroz e sem finalidade", num poema de Manuel Bandeira, chamado "Momento no Café" e que é uma obra-prima da literatura brasileira. Aquela inversão pela qual é a matéria que se liberta da "alma extinta" é um belo achado.
No fundo, só há duas categorias de indivíduos, os que vivem e os que olham os outros viverem; e por isso a ação e o pensamento são esferas incompatíveis. Se se faz bem uma coisa, não se pode fazer bem a outra, é uma limitação inescapável da condição humana. Vejam-se os casos de Mirabeau e de Tocqueville. Antes da Revolução Francesa, Mirabeau escreveu abundantemente e inclusive plagiou descaradamente. Contudo, ninguém se recorda um título sequer das suas obras. Tocqueville fornece o caso oposto. Nada ficou da sua atividade política como deputado e ministro das Relações Exteriores de Luís Bonaparte. Essa experiência só lhe servirá para a reflexão que deixou infelizmente inacabada no seu ensaio sobre o Antigo Regime e a Revolução.
Folha - O sr. mesmo se definiu como um "historiador do Nordeste açucareiro". Este também parece ser o tema central da obra de Gilberto Freyre. Em que medida seus livros se aproximam e se distanciam dessa obra?
Cabral de Mello -
Gilberto Freyre teve uma ambição muito mais vasta e a sua obra proporciona uma visão do passado brasileiro a que estou longe de ter aspirado. Essa história de que Gilberto é um sociólogo do Nordeste açucareiro surgiu em São Paulo, graças ao sociólogo norte-americano Donald Pierson. Ele inventou que a obra de Gilberto só se aplicava ao que designou estranhamente de "eixo Recife-Olinda", o que, além de injustiça flagrante, revelava uma enorme ignorância de geografia regional, pois na época o eixo Olinda-Recife era uma estrada que serpenteava entre o mar e os mangues, tratando-se de área onde nunca se pudera plantar cana ou fabricar açúcar devido à salinidade do solo.
À semelhante bobagem era preferível a piada que se fazia no Recife, segundo a qual Gilberto era o maior sociólogo de Apipucos, onde assim mesmo teria de enfrentar a concorrência de Bebinho Salgado, que era o dono de uma cerâmica da vizinhança.
O fato é que alguns paulistas adotaram alacremente a idéia de Pierson e até procuraram dar-lhe uma interpretação inteligente. Na realidade, a "Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil" é uma obra de escopo nacional. Que na descrição antes antropológica do que sociológica desta sociedade, Gilberto tenha-se detido especialmente, mas não exclusivamente, na sua versão nordestina, não segrega sua validade naquela região.
O escopo dos meus livros é que é puramente regional, ou antes, sub-regional, pois o Nordeste açucareiro é apenas uma fatia, embora historicamente a mais ilustre, da região. Se segui este caminho, isto se deveu a uma série de fatores, a começar pelos meus condicionamentos profissionais. Fui diplomata de carreira, o que significa que de dois em dois ou de três em três anos eu era transferido de país, o que me impedia de transportar comigo uma boa brasiliana. A tarefa de reunir uma coleção sobre a história do Nordeste açucareiro não apresentava a mesma dificuldade.
Por outro lado, vivi praticamente toda a carreira no exterior, afastado das bibliotecas e arquivos brasileiros. A opção pelo Nordeste colonial permitia-me mexer nos arquivos estrangeiros, sobretudo portugueses, que eram os mais relevantes para o período. Por fim, pesquisa histórica é atividade altamente cansativa e consumidora de tempo - e este eu tinha pouco, de vez que nunca considerei, ao contrário de muito intelectual brasileiro, que o Estado tivesse a obrigação de me sustentar ou de me dispensar da assiduidade e pontualidade ao serviço. Para você se motivar a ler papel velho e engolir poeira, cumpre ter alguma mola afetiva. No meu caso foi sempre uma mola de cronista local, a curiosidade pela história regional, coisa que eu não tinha absolutamente pela história brasileira. Por que eu iria ler papel velho sobre o Paraná ou sobre Minas Gerais, que não conheço e com os quais não tenho nada a ver?
Quanto à última parte da sua pergunta, recuso-me por modéstia a estabelecer comparação com a de Gilberto Freyre, dada a diferença de escopo entre as nossas obras. Direi apenas que os indivíduos que as produziram são exemplares bem diferentes da fauna humana. Como percebe o leitor de Gilberto, o tratamento que ele deu ao passado brasileiro, como no caso da sua avaliação da herança portuguesa, foi do tipo otimista. Otimismo, aliás, incomum em conservadores. Politicamente, embora não socialmente, Gilberto foi um conservador, o que a esquerda brasileira demorou a perceber, só o fazendo nos anos 40 devido a um marxista argentino chamado Rodolfo Ghioldi. (Direi até mais, que o democratismo de Gilberto no social, como na sua análise da miscigenação, é a outra face do seu conservadorismo político.) Quanto a mim, sou pessimista de carteirinha sobre a natureza humana em geral e brasileira em particular. No passado prefiro olhar as vísceras, e tenho uma tendência inata a desidealizá-lo.
Folha - Como compreender, então, esse otimismo de Gilberto Freyre?
Cabral de Mello -
Cioran fez excelentes reflexões sobre uma espécie de narcisismo trágico cultivado pelos espanhóis. Além de ter de enfrentar como qualquer um o problema de suas existências individuais, o espanhol ainda tinha por cima de conviver com o problema da Espanha; e isto no cotidiano, e não apenas nos momentos de crise nacional, como ocorre com outros povos. Desde o século 18 sucessivas gerações de intelectuais se inclinaram sobre o mistério nacional sem lograr decifrá-lo.
Ora, como observou Cioran, não se pode imaginar "um inglês se perguntando se a Inglaterra tem sentido ou não, ou lhe atribuindo uma missão"; ou então encontrar Valéry ou Proust "meditando sobre a França para se descobrirem a si mesmos". A idéia do sentido de uma nação parece antes uma questão metafísica no sentido pejorativo da palavra.
Outro exemplo clássico de introspeção nacional é evidentemente o da Rússia, embora neste caso ela se combinasse com a tendência a outra forma de introspecção, a individual. Tampouco Portugal escapou à moda e já Antero de Quental indagara das "causas da decadência dos povos peninsulares".
Não é certamente um acaso se esse tipo de preocupação despontou na Europa periférica e marginalizada no processo de desenvolvimento capitalista, o qual tornava progressivamente visíveis as disparidades entre os países ocidentais. O fato é que, como indicam os livros de viajantes estrangeiros, alguns deliciosos como os de Beckford ou Borrow, desde o século 18 a Península Ibérica constituiu um lugar privilegiado da curiosidade européia, em termos de uma paisagem humana que a Europa transpirenaica já percebia como prosaicamente arcaica. Todo o relato que Beckford escreveu acerca da sua excursão a Alcobaça está impregnado deste gozo do arcaísmo português.
É normal que um povo questione rotineiramente suas instituições políticas, seu sistema econômico e outros aspectos da sua organização coletiva. É excepcional, porém, que um povo questione sua própria existência nacional. O fato é que os países nascidos do colapso dos impérios espanhol e português na América prolongaram o gosto pela auto-análise coletiva. A América Latina podia-se gabar ou lamentar, relativamente ao Ocidente, de uma diferenciação ainda mais acusada que a das antigas metrópoles. Entre nós o pessimismo racial e os ônus da colonização portuguesa foram a tônica das preocupações até praticamente os anos 30, sendo raríssimos no tocante ao primeiro os que como Nabuco vislumbraram, sob a questão da raça, a realidade institucional do regime servil. "Casa-Grande e Senzala" mudou radicalmente os rumos da reflexão, ao transformar a miscigenação e a colonização portuguesa de passivos em ativos da história brasileira. Não se trata de saber se seu autor tinha ou não razão, mas de constatar que o fez com ou sem ela. Desde então o Brasil passou do pessimismo entranhado à euforia irresponsável acerca do futuro nacional. É hora de encontrar um ponto de equilíbrio.
Folha - Com o avanço da mundialização do capital e o declínio da "idéia" de Estado nacional, sua obra ganha uma impressionante atualidade. A idéia, aí subjacente, de um novo recorte do mundo, é deliberada?
Cabral de Mello -
Não estou convencido de que os livros que escrevi sejam atuais; se o fossem, seriam mais lidos. Na realidade, o são muito pouco e, para falar a verdade, acharia anormal ser sucesso de livraria. Que um pernambucano os compre, acho perfeitamente natural, e que um brasileiro, num momento de fastio com a escolástica dos modos de produção, resolva lê-los, reputo intelectualmente saudável. Que os especialistas em história brasileira os consultem, nada mais normal. Mas não há razão nenhuma para que um público, mesmo culto, os adquira. Afinal de contas, por que ele se iria interessar por história pernambucana? O Nordeste açucareiro está hoje marginalizado, inclusive dentro do Nordeste; e ademais tornou-se politicamente incorreto.
Não tenho dúvida de que, se os holandeses tivessem ocupado Minas ou o Rio, seríamos diariamente bombardeados com a publicidade do período. Acontece que o pernambucano tem o pudor de fazer relações públicas com sua história, nem procura passar gato por lebre, como no episódio da Inconfidência, a cujo respeito os mineiros só começaram a falar depois da Proclamação da República. Em todo caso, se você acha meus livros atuais, não discutirei, mas confessarei que isto se deve realmente ao mero acaso.
Nunca alimentei ilusões sobre sua capacidade de interessar o próximo e, quando um destes me diz que o comprou, penso sempre que está brincando. O brasileiro médio tem da história uma noção de samba do crioulo doido. Há muitos anos, sentei-me ao lado de uma autoridade brasileira num jantar de embaixada. Meu vizinho de mesa tinha um nome de origem holandesa e, como eu lhe observasse o fato, retrucou-me que, quando da invasão holandesa, seus ascendentes se haviam fixado em Jacarepaguá. Este senhor supunha que a invasão holandesa acarretara o deslocamento maciço de populações holandesas para o Brasil, as quais se teriam espalhado pelo conjunto do território que é hoje o território nacional. Convenci-me desde então que no Brasil o historiador que quiser fazer obra séria só pode escrever para os outros historiadores.
Folha - O sr. contesta a "colonização da historiografia pelas ciências humanas"...
Cabral de Mello -
O que chamei de "colonização da historiografia pelas ciências humanas" não constitui uma declaração de guerra de independência da história. Resulta apenas da constatação de dois pontos: primeiro, que grosso modo a cooperação interdisciplinar já deu à história o que tinha de dar; e segundo, que o historiador não deve perder de vista o que constitui a especificidade da história frente às demais ciências humanas. Isto não significa, porém, abolir os avanços recentes e regressar à história factual, o que seria um despautério. Digo apenas que, ao utilizar a contribuição das ciências humanas à compreensão do passado -e ele deve continuar a fazê-lo-, o historiador não pode perder de vista o que é próprio da sua atividade, nem reduzi-la ao estudo das estruturas, processos etc., que ele aprendeu com os cientistas sociais. Como assinalou Carlos Guilherme Mota num artigo excessivamente generoso para comigo, eu mesmo recorri a essa cooperação nos meus livros.


Ricardo Musse é professor de epistemologia das ciências sociais no departamento de filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista); é um editores da revista "Praga" (Boitempo).



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