São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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O vizinho distante

MARIA LÍGIA COELHO PRADO
especial para a Folha

É indiscutível que em nosso país, nos anos recentes, tem havido um aumento de publicações sobre história, especialmente sobre história do Brasil, demonstrando o crescente interesse por parte do público e das editoras por este campo do conhecimento. Entretanto, não se pode afirmar o mesmo com relação à produção historiográfica sobre a América Latina, que continua a se editar de forma irregular.
Por que existe esse distanciamento do público brasileiro em relação à América Latina? Por que se publica, com sucesso, "Montailou, Povoado Occitânico de 1294 a 1324", de LeRoy Ladurie, mas "Los Grandes Momentos del Indigenismo en Mexico", de Luis Villoro, que discute fascinantes questões, continua desconhecido do público brasileiro? Por que há uma extensa bibliografia sobre a Revolução Francesa à disposição do leitor nacional, enquanto a Revolução Mexicana não desperta a mesma atenção?
A primeira explicação começa invariavelmente pela constatação de que a cultura brasileira está profundamente marcada por uma tradição eurocêntrica, responsável, portanto, pelo fato de o país estar voltado para a Europa e de costas para a América Latina. Sem dúvida, esta visão, apesar de sobejamente criticada, permanece impávida e forte.
Uma incursão na história comparada das duas Américas -a portuguesa e a espanhola- pode nos indicar outras possibilidades de entendimento para avançarmos nesta reflexão. As rivalidades entre as metrópoles, durante o período colonial, desenham limites entre as duas colônias não apenas geográficos, mas também culturais. Com as independências, as diferenças se adensam. Os ideólogos do Império consagram a fórmula que classifica as repúblicas hispano-americanas de "anárquicas, libertinas e caóticas", incapazes de se manterem unidas, distinguindo-se da monarquia brasileira, ordeira e sólida, garantidora da unidade nacional.
A República, no Brasil, inaugura uma aproximação que, no entanto, permanece tímida. O primeiro manual escolar de história da América, de Rocha Pombo, produzido nesse período, é a expressão de uma primeira tentativa de reconciliação. Na primeira metade do século 20, os contatos intelectuais com a América hispânica, especialmente com a Argentina, ganham fôlego. Intercâmbios culturais e publicações aumentam. Um bom exemplo é o de Monteiro Lobato, que na "Revista do Brasil" abre espaço para autores argentinos e promove a divulgação de brasileiros naquele país. No âmbito da política, nos anos 20, a campanha pelo voto secreto, levada a cabo pelos oposicionistas, elege a Argentina como exemplo a ser seguido. Mas, por razões ainda não inteiramente compreendidas, essas ligações não se mantêm, enviando a América Latina de volta ao limbo.
O afastamento diminui novamente nos anos 60 e 70. Estabelece-se, nesse período, como que um padrão de leituras sobre a América Latina que tem grande repercussão entre o público em geral e passa a ser hegemônico entre a intelectualidade de esquerda. Os livros de sociólogos, economistas e cientistas políticos que elegeram a Teoria da Dependência como fulcro de suas interpretações sobre a América Latina são amplamente consumidos. Pensada como um todo homogêneo, a América Latina, pobre e subdesenvolvida, se apresenta como vítima da exploração do imperialismo norte-americano. Cristalizam-se estereótipos generalizantes que anulam as particularidades de cada país, apagam os conflitos sociais internos e ignoram sua rica produção cultural. "As Veias Abertas da América Latina", de Eduardo Galeano, que obtém grande êxito de vendas, constitui-se num bom modelo dessa interpretação.
A resposta política à dominação capitalista está também presente nos debates da época. A América Latina seria a protagonista de uma revolução socialista, que cortaria definitivamente os laços de dependência, seguindo os passos da Revolução Cubana. A vitória sandinista na Nicarágua, em 1979, vem reforçar essa perspectiva. Um número expressivo de publicações sobre essa temática chega às livrarias, destacando-se o livro de Florestan Fernandes, "Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana", de 1979, e "A Ilha", de Fernando Morais.
Essas interpretações, que carregam a imagem de uma América Latina depositária das esperanças de um mundo mais justo, mais equânime, sem pobreza e opressão, são profundamente abaladas com a queda do Muro de Berlim. Os sonhos utópicos mais imediatos começam a ser contestados. As críticas ao regime cubano crescem dentro da própria esquerda e, na Nicarágua, as eleições passam o poder aos opositores dos sandinistas. A brutalidade da crise dos anos 80, "a década perdida", e os devastadores efeitos da globalização -especialmente o desemprego- trazem novos problemas e buscas de soluções alternativas para as dificuldades experimentadas. O Mercosul surge como resposta para os tempos da globalização e como possível salvação para os males que se agravam.
As mudanças anunciadas pelo Mercosul, ainda que menos visíveis, atingem também a esfera das relações culturais. Serão elas suficientemente fortes para acompanhar a pequena revolução que convulsionou o campo da história, com a introdução de novos temas e novos objetos de pesquisa? Trabalhos sobre a mulher, o cotidiano, a sensibilidade, a leitura têm sido capazes de aproximar a história do público em geral, rompendo os limites do circuito restrito dos que por ela se interessavam. Esses novos ventos despertarão também interesse pela história da América Latina e contribuirão para a construção de outras imagens sobre ela? Será possível ultrapassar a idéia de que a América Latina é apenas pobre, atrasada e ignorante? Haverá lugar para a "descoberta" das consistentes pesquisas e dos intensos debates intelectuais produzidos pela historiografia latino-americana?
No Brasil, nos últimos anos, por vezes um movimento aglutinador se constituiu para garantir uma série de publicações sobre a América Latina. Posteriormente, nem sempre tais expectativas se cumprem. A Universidade de Brasília iniciou uma linha de edições que tinha como carro chefe "America Latina: Historia de Medio Siglo", organizado por Pablo Gonzalez Casanova, um manual de qualidade sobre o período contemporâneo. Mas o projeto foi interrompido pouco tempo depois.
Da mesma forma, a Editora Hucitec começou uma série sobre América Latina, que publicou textos fundamentais como "O Engenho", de Manuel Moreno Fraginals, clássico que analisa a produção do açúcar na ilha de Cuba no século 19. Depois de um hiato, parece que a série será retomada. A Editora Vozes se propôs a publicar dez títulos de autores hispano-americanos em sua coleção "Clássicos do Pensamento Político". Mas, até o presente, saíram a público apenas três textos, os de Che Guevara, San Martin e uma nova edição de "Facundo - Civilização e Barbárie", de Domingo Faustino Sarmiento.
A Editora da Universidade de São Paulo está lançando o primeiro volume -sobre o período colonial- da grande coleção da Cambridge sobre a história da América Latina, organizada por Leslie Bethell, decisão que precisa ser festejada. Iniciou, ainda, uma interessante coleção, "Ensaios Latino-Americanos", que já editou três livros, os de Beatriz Sarlo, Nestor Garcia Canclini e Federico Neiburg. O Memorial da América Latina tem publicado textos sobre a América Latina com certa regularidade, destacando-se os três importantes volumes de "Palavra, Literatura e Cultura", organizados por Ana Pizarro.
Termino com uma certeza e uma dúvida. A primeira se refere à constatação de como é difícil pensar a América Latina a partir do Brasil, ainda que sejam tão evidentes -pelo menos para mim- os ricos e férteis resultados que se obteriam, caso perseguíssemos as trilhas abertas pela história comparada. A indagação que continuo a fazer se refere às concretas possibilidades do despertar de um interesse maduro e permanente do público brasileiro em relação a essa outra metade da América Latina, tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante.


Maria Lígia Coelho Prado é professora livre-docente de história da América Latina na USP.



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