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O vizinho distante
MARIA LÍGIA COELHO PRADO
especial para a Folha
É indiscutível que em nosso país,
nos anos recentes, tem havido um
aumento de publicações sobre história, especialmente sobre história
do Brasil, demonstrando o crescente interesse por parte do público e das editoras por este campo
do conhecimento. Entretanto, não
se pode afirmar o mesmo com relação à produção historiográfica
sobre a América Latina, que continua a se editar de forma irregular.
Por que existe esse distanciamento do público brasileiro em
relação à América Latina? Por que
se publica, com sucesso, "Montailou, Povoado Occitânico de 1294 a
1324", de LeRoy Ladurie, mas
"Los Grandes Momentos del Indigenismo en Mexico", de Luis Villoro, que discute fascinantes questões, continua desconhecido do
público brasileiro? Por que há
uma extensa bibliografia sobre a
Revolução Francesa à disposição
do leitor nacional, enquanto a Revolução Mexicana não desperta a
mesma atenção?
A primeira explicação começa
invariavelmente pela constatação
de que a cultura brasileira está
profundamente marcada por uma
tradição eurocêntrica, responsável, portanto, pelo fato de o país
estar voltado para a Europa e de
costas para a América Latina. Sem
dúvida, esta visão, apesar de sobejamente criticada, permanece impávida e forte.
Uma incursão na história comparada das duas Américas -a
portuguesa e a espanhola- pode
nos indicar outras possibilidades
de entendimento para avançarmos nesta reflexão. As rivalidades
entre as metrópoles, durante o período colonial, desenham limites
entre as duas colônias não apenas
geográficos, mas também culturais. Com as independências, as
diferenças se adensam. Os ideólogos do Império consagram a fórmula que classifica as repúblicas
hispano-americanas de "anárquicas, libertinas e caóticas", incapazes de se manterem unidas, distinguindo-se da monarquia brasileira, ordeira e sólida, garantidora da
unidade nacional.
A República, no Brasil, inaugura
uma aproximação que, no entanto, permanece tímida. O primeiro
manual escolar de história da
América, de Rocha Pombo, produzido nesse período, é a expressão de uma primeira tentativa de
reconciliação. Na primeira metade
do século 20, os contatos intelectuais com a América hispânica, especialmente com a Argentina, ganham fôlego. Intercâmbios culturais e publicações aumentam. Um
bom exemplo é o de Monteiro Lobato, que na "Revista do Brasil"
abre espaço para autores argentinos e promove a divulgação de
brasileiros naquele país. No âmbito da política, nos anos 20, a campanha pelo voto secreto, levada a
cabo pelos oposicionistas, elege a
Argentina como exemplo a ser seguido. Mas, por razões ainda não
inteiramente compreendidas, essas ligações não se mantêm, enviando a América Latina de volta
ao limbo.
O afastamento diminui novamente nos anos 60 e 70. Estabelece-se, nesse período, como que
um padrão de leituras sobre a
América Latina que tem grande
repercussão entre o público em
geral e passa a ser hegemônico entre a intelectualidade de esquerda.
Os livros de sociólogos, economistas e cientistas políticos que
elegeram a Teoria da Dependência
como fulcro de suas interpretações sobre a América Latina são
amplamente consumidos. Pensada como um todo homogêneo, a
América Latina, pobre e subdesenvolvida, se apresenta como vítima da exploração do imperialismo norte-americano. Cristalizam-se estereótipos generalizantes que anulam as particularidades
de cada país, apagam os conflitos
sociais internos e ignoram sua rica
produção cultural. "As Veias
Abertas da América Latina", de
Eduardo Galeano, que obtém
grande êxito de vendas, constitui-se num bom modelo dessa interpretação.
A resposta política à dominação
capitalista está também presente
nos debates da época. A América
Latina seria a protagonista de uma
revolução socialista, que cortaria
definitivamente os laços de dependência, seguindo os passos da Revolução Cubana. A vitória sandinista na Nicarágua, em 1979, vem
reforçar essa perspectiva. Um número expressivo de publicações
sobre essa temática chega às livrarias, destacando-se o livro de Florestan Fernandes, "Da Guerrilha
ao Socialismo: a Revolução Cubana", de 1979, e "A Ilha", de Fernando Morais.
Essas interpretações, que carregam a imagem de uma América
Latina depositária das esperanças
de um mundo mais justo, mais
equânime, sem pobreza e opressão, são profundamente abaladas
com a queda do Muro de Berlim.
Os sonhos utópicos mais imediatos começam a ser contestados. As
críticas ao regime cubano crescem
dentro da própria esquerda e, na
Nicarágua, as eleições passam o
poder aos opositores dos sandinistas. A brutalidade da crise dos
anos 80, "a década perdida", e os
devastadores efeitos da globalização -especialmente o desemprego- trazem novos problemas e
buscas de soluções alternativas
para as dificuldades experimentadas. O Mercosul surge como resposta para os tempos da globalização e como possível salvação para
os males que se agravam.
As mudanças anunciadas pelo
Mercosul, ainda que menos visíveis, atingem também a esfera das
relações culturais. Serão elas suficientemente fortes para acompanhar a pequena revolução que
convulsionou o campo da história, com a introdução de novos temas e novos objetos de pesquisa?
Trabalhos sobre a mulher, o cotidiano, a sensibilidade, a leitura
têm sido capazes de aproximar a
história do público em geral, rompendo os limites do circuito restrito dos que por ela se interessavam.
Esses novos ventos despertarão
também interesse pela história da
América Latina e contribuirão para a construção de outras imagens
sobre ela? Será possível ultrapassar a idéia de que a América Latina
é apenas pobre, atrasada e ignorante? Haverá lugar para a "descoberta" das consistentes pesquisas e
dos intensos debates intelectuais
produzidos pela historiografia latino-americana?
No Brasil, nos últimos anos, por
vezes um movimento aglutinador
se constituiu para garantir uma
série de publicações sobre a América Latina. Posteriormente, nem
sempre tais expectativas se cumprem. A Universidade de Brasília
iniciou uma linha de edições que
tinha como carro chefe "America
Latina: Historia de Medio Siglo",
organizado por Pablo Gonzalez
Casanova, um manual de qualidade sobre o período contemporâneo. Mas o projeto foi interrompido pouco tempo depois.
Da mesma forma, a Editora Hucitec começou uma série sobre
América Latina, que publicou textos fundamentais como "O Engenho", de Manuel Moreno Fraginals, clássico que analisa a produção do açúcar na ilha de Cuba no
século 19. Depois de um hiato, parece que a série será retomada. A
Editora Vozes se propôs a publicar
dez títulos de autores hispano-americanos em sua coleção "Clássicos do Pensamento Político".
Mas, até o presente, saíram a público apenas três textos, os de Che
Guevara, San Martin e uma nova
edição de "Facundo - Civilização e
Barbárie", de Domingo Faustino
Sarmiento.
A Editora da Universidade de
São Paulo está lançando o primeiro volume -sobre o período colonial- da grande coleção da
Cambridge sobre a história da
América Latina, organizada por
Leslie Bethell, decisão que precisa
ser festejada. Iniciou, ainda, uma
interessante coleção, "Ensaios Latino-Americanos", que já editou
três livros, os de Beatriz Sarlo,
Nestor Garcia Canclini e Federico
Neiburg. O Memorial da América
Latina tem publicado textos sobre
a América Latina com certa regularidade, destacando-se os três
importantes volumes de "Palavra,
Literatura e Cultura", organizados
por Ana Pizarro.
Termino com uma certeza e uma
dúvida. A primeira se refere à
constatação de como é difícil pensar a América Latina a partir do
Brasil, ainda que sejam tão evidentes -pelo menos para mim-
os ricos e férteis resultados que se
obteriam, caso perseguíssemos as
trilhas abertas pela história comparada. A indagação que continuo
a fazer se refere às concretas possibilidades do despertar de um interesse maduro e permanente do
público brasileiro em relação a essa outra metade da América Latina, tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante.
Maria Lígia Coelho Prado é professora livre-docente de história da América Latina na
USP.
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