São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Alain Touraine

Da dominação econômica à política guerreira

Sharon ordenou ao Tsahal (Exército israelense) que destruísse toda a infra-estrutura do que poderia vir a ser um Estado palestino. Arafat é prisioneiro e a extrema direita israelense não esconde sua intenção de restabelecer uma plena soberania de Israel do Jordão até o mar. Nessas condições, a proposta feita pelo secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, de realizar uma conferência internacional não pode mais ser vista como uma solução real e pode mesmo ser interpretada como uma nova forma de apoio à política de Sharon. Pois o que pode significar uma conferência sobre a Palestina sem os palestinos, e na qual os Estados Unidos e seu aliado israelense decidiriam sozinhos objetivos capazes de restabelecer a paz?

Dois perigos
Essa política comporta dois perigos, o segundo deles ainda mais grave que o primeiro. Este é evidentemente o prosseguimento da violência, alimentada pelo desespero da população palestina humilhada pelo que lhe é imposto. O segundo é a transformação da força econômica dominante dos EUA numa política propriamente guerreira de hegemonia. Estamos habituados, de dez anos para cá, a criticar o poder de um sistema econômico mundial dominado pelos Estados Unidos, mas essa crítica não pode ser dirigida unicamente nem mesmo em primeiro lugar contra os Estados Unidos. Todos os países onde a democracia é frágil ou ausente e onde a economia sofreu uma grave crise são responsáveis por esta. O Japão e a Rússia, ontem, ou a Indonésia, anteontem, foram e são os principais culpados nas crises financeiras que os atingiram. Não existe nenhuma lógica econômica que imponha suprimir todos os controles sociais e políticos da economia. Ao contrário, o pensamento econômico reconhece o papel crescente, predominante mesmo, dos fatores sociais e políticos do crescimento econômico. O fato de o sistema econômico ser amplamente dominado por empresas e bancos norte-americanos não impede que um capitalismo extremo, na forma de um liberalismo sem limite, seja de fato o inimigo real de todos os que se opõem à globalização, mais ainda que o Estado norte-americano. Mas, depois de 11 de setembro, a imagem e o papel dos Estados Unidos mudaram. Além de serem os mestres da economia mundial, eles se tornaram uma potência guerreira engajada, pelo presidente Bush, numa ofensiva armada contra o terrorismo, palavra pela qual são designados todos aqueles que o presidente dos Estados Unidos considera como inimigos perigosos para o poder militar e político de seu país. Seguramente poder econômico e poder militar jamais estão completamente separados, mas eles possuem também lógicas diferentes. Sabemos disso claramente quando falamos de Napoleão, de Stálin ou de Hitler. A colonização européia no século 19 teve às vezes, em particular na Indonésia, razões de ser antes de tudo econômicas; mas, noutros casos, o da colonização francesa em particular, a ação dos colonizadores não foi dirigida pela busca do lucro, e sim pela do poder e pela concorrência entre os principais países europeus. A lógica que domina a política norte-americana mudou de natureza: ela se tornou diretamente militar, ao mesmo tempo conquistadora e disposta a destruir pela força o que lhe resiste. Terrorista é Bin Laden, terroristas são não apenas os camicases palestinos mas todos os palestinos: terrorista é também o Iraque, detentor de armas secretas, e, por que não, igualmente o Irã, que no entanto apoiou a intervenção norte-americana no Afeganistão, ou a Somália, que humilhou o exército norte-americano.

Leão mordido
Em tal lógica de guerra, não há lugar para os neutros e para os mediadores. A União Européia, que financia em boa parte a Autoridade Palestina, está reduzida ao silêncio e afastada do projeto americano de conferência internacional sobre a Palestina. Quanto à América Latina, sua situação econômica já lhe tirou a palavra, e nenhum país poderá resistir à Alca (Associação do Livre Comércio das Américas), apesar das tentativas do Brasil, enfraquecido agora pela crise argentina e pelo desaparecimento de fato do Mercosul. Será preciso esperar a ascensão como potência política e militar da China, atualmente já a segunda potência econômica mundial, para enfrentar a hegemonia militar norte-americana e resistir à lógica propriamente guerreira da política escolhida pelo presidente Bush?
Somente agora compreendemos em que sentido o 11 de setembro de 2001 marcou o começo de uma nova era para os Estados Unidos e o mundo inteiro. Os Estados Unidos triunfantes das presidências Clinton, dominadores mas também relativamente liberais e, em particular, interessados na busca de paz no Oriente Médio, foram substituídos por um país que ruge como um leão mordido por um animal menor que ele. E essa política orgulhosa e violenta de Bush é sustentada por grande parte da opinião norte-americana, a tal ponto ser impossível aos moderados não se juntarem à denúncia de um terrorismo transformado numa força presente em todas as partes do mundo.
Descobrimos, de repente, que o poder norte-americano não tem limites. Era aceitável que os Estados Unidos perseguissem seus adversários no Afeganistão, onde o regime dos talebãs provocava ao mesmo tempo uma rejeição espalhada em muitas partes do mundo. Mas, no Oriente Médio, quem pode afirmar que os autores dos atentados suicidas fazem parte do exército de Bin Laden?
Agora, a ameaça principal não vem mais de um sistema econômico, mas de uma política guerreira que pode criar, à força de provocações, um corte completo e sangrento entre o bloco norte-americano e um mundo islâmico esgotado por seus próprios fracassos, com frequência pelos regimes aos quais se submeteu, e em toda a parte pelas humilhações que sofreu.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Paulo Neves.


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