São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Juan José Saer

Mais conhecido como filósofo da ciência, Alexandre Koyré antecipou em seus textos políticos as formas de dominação da sociedade contemporânea

O inimigo interior

Não era um anarquista desestabilizador nem um temível terrorista, e sim um respeitável professor de filosofia. Alexandre Koyré (1882-1964) nasceu na Rússia, mas estudou em Göttingen e em Paris. Foi discípulo de Husserl e um dos primeiros a divulgar sua obra na França, como professor na École Pratique. Também foi muitas vezes convidado pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton, onde escreveu alguns de seus bem argumentados trabalhos. Foi editor de Santo Anselmo, de Copérnico e da "Reforma do Entendimento" de Spinoza. Para sua curiosidade filosófica, todos os períodos e todos os assuntos foram dignos de interesse, e, embora sua erudição fosse imensa, sua maneira de expor sempre foi detalhada e metódica, o que torna seus textos claros e apaixonantes. Entre seus muitos escritos, poderíamos citar a "Introdução à Leitura de Platão" (1947), seus "Estudos de História do Pensamento Filosófico", além do já clássico "Do Mundo Fechado ao Universo Infinito", de 1957, onde analisa a decisiva revolução renascentista, que, partindo das hipóteses derivadas da astronomia de Kepler, Copérnico e Galileu, produziu uma profunda transformação não apenas na ciência e na filosofia mas também, e talvez principalmente, na relação da espécie humana com o misterioso universo que suas criaturas atravessam fugazmente e que, a cada novo enigma resolvido, paradoxalmente se torna mais e mais incompreensível. Mas, se por um lado ele foi um reconhecido especialista em filosofia da ciência e na estrutura e evolução do pensamento científico, a mística não lhe era indiferente, tendo também publicado uma série de fragmentos dedicados aos místicos, espiritualistas e alquimistas alemães do século 16, em especial Paracelso. Justamente, a editora Allia, de Paris, em sua inteligente coleção de ensaios breves, resgatou não há muito um texto de Koyré sobre Paracelso e dois pequenos ensaios que ele escreveu nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial: "Reflexões Sobre a Mentira" (1943) e "A Quinta-Coluna" (1945), trabalhos suscitados pela terrível crise que o mundo atravessava naquele momento. São dois ensaios políticos, mas em ambos salta aos olhos um fundo moral. Já em seu pequeno texto sobre Mênon, o diálogo platônico que trata da virtude e cuja questão principal consiste em saber se ela pode ou não ser ensinada, a conclusão irônica de Koyré, interpretando à sua maneira as alusões maliciosas de Sócrates, é que a virtude poderia de fato ser ensinada, mas não àqueles que, como Mênon, levantam o problema. Porque a virtude pressupõe o amor pela verdade, e somente quem já possui esse amor poderia ser aceito como discípulo na escola da virtude: ou seja, quem não precisa desse ensinamento.

Triste relativismo
As reflexões de Koyré sobre a mentira são de outra natureza: seu trabalho trata é da onipresença da mentira na sociedade moderna, e não apenas sob a forma de propaganda, a tal ponto que se poderia dizer que a sociedade se identifica totalmente com a mentira e é inseparável dela. Koyré escrevia em 1943, em tempos de guerra. Se é possível afirmar que esse período, a primeira metade do século 20, inaugura a era da propaganda, na sociedade atual é praticamente impensável, mesmo para os especialistas, distinguir claramente verdade e mentira na esfera pública (e até na esfera privada). O triste relativismo que impera hoje em dia é a confissão tácita dessa impotência. As poucas, mas densas, páginas de "A Quinta-Coluna" também conservam uma candente atualidade. Como se sabe, "quinta-coluna" é uma expressão utilizada pela primeira vez por Franco e que quase imediatamente se popularizou no mundo inteiro. Sua declaração era mais ou menos a seguinte: "As quatro colunas que se aproximam de Madri serão apoiadas por uma quinta, que já está dentro". A quinta-coluna é, portanto, aquilo que Koyré, com pertinência, chama de "inimigo interior". O involuntário achado verbal do Generalíssimo designava, com discreta ameaça, certos setores que, no interior mesmo da república, trabalhavam em segredo a favor da contra-revolução, termo com que Koyré designa não apenas o fascismo e o nazismo mas, de maneira mais geral, todas as correntes políticas reacionárias, monárquicas, antidemocráticas, anti-republicanas e autoritárias que não aceitavam os princípios liberais da revolução burguesa nem o avanço do comunismo. Koyré também analisa implacavelmente certos erros trágicos (e cômicos) do marxismo assim como a essência autoritária do stalinismo. Mas não devemos esquecer que, no momento em que ele escreve seu texto, a União Soviética integra o campo aliado. Segundo Koyré, a Primeira e a Segunda guerras são uma única guerra, e a Guerra Civil Espanhola representa o elo que liga esses dois momentos de um mesmo episódio histórico.

A traição
Mas, embora a expressão tenha sido forjada por Franco, a quinta-coluna sempre existiu, e em mais de uma ocasião os historiadores da Antiguidade, como Tucídides ou Políbio, reconheceram nas guerras do passado o caso do "inimigo interior" e o analisaram, assim como fez Platão em suas frequentes (porém nem sempre adequadas) disquisições políticas. Além disso, Koyré lembra que, na história européia, são muitos os casos de fortalezas sitiadas que acabam caindo nas mãos do inimigo graças à colaboração de certos setores que trabalhavam sub-repticiamente em seu interior. Koyré também cita o caso francês da colaboração do governo de Vichy com o inimigo nazista e, em geral, das forças locais que facilitaram a invasão alemã em praticamente todos os países da Europa. E, para Koyré, há um elemento fundamental que distingue a quinta-coluna da mera rebelião ou da mera luta pelo poder que costumam ocorrer no final de uma guerra perdida. O elemento próprio da quinta-coluna é a traição. A luta pelo poder é sempre legítima, até a que se trava em tempos de guerra, pois se realiza no interior mesmo do Estado nacional, sem alianças com nenhuma força estrangeira. Mesmo nesse caso, não se trataria de traição, porque as intenções sediciosas dos rebeldes há tempos estariam expostas em praça pública. A quinta-coluna, ao contrário, age nas sombras e, para salvaguardar seus próprios interesses, passa por cima daquilo que todos os outros setores da sociedade, por mais que eles estejam em permanente conflito, consideram como intangível e como a essência identificadora em cujo marco natural devem ter lugar todas as lutas políticas e sociais: a nação.

Heroísmo difícil
Para Koyré, qual é o setor cujos interesses estão acima dos interesses do Estado e da sociedade, da comunidade cidadã e da nação, e que ao longo da história humana, em qualquer tempo e lugar, manobrou como quinta-coluna para salvaguardar seus próprios interesses, dessolidarizando-se do interesse coletivo e chegando até a se aliar com o inimigo? Simplesmente: os ricos. Entre outros exemplos, Koyré introduz esta significativa citação: "O heroísmo é fácil para os pobres, já que não têm nada a perder, como declarou o senhor Mireau, diretor do jornal "Le Temps" e ministro do primeiro governo de Vichy".
A autoridade e a probidade filosófica, científica e moral de Koyré dão à sua análise um valor excepcional, além de uma coloração profética às vésperas da Guerra Fria e várias décadas antes da chamada globalização, designação tecnicista que, submetida a uma análise retórica, é fácil identificar como um eufemismo. Denominando-se multinacionais, os ricos de hoje se desligaram das obrigações sociais que permitem a existência do Estado-nação e correm por conta própria. Apesar de seu discurso patriótico e até nacionalista, eles só se vinculam ao poder político à medida que podem colocá-lo a seu serviço. A política ultraliberal de privatizações não passa de uma tentativa de controlar as grandes empresas (de armamentos, energia, crédito, comunicações etc.) para tirá-las da tutela social a que são submetidas as empresas nacionais, transferindo-as ou vendendo-as à concorrência quando o sufrágio universal leva ao governo membros de uma corrente política que poderia representar uma ameaça. Nos países industrializados, até naqueles governados pelos social-democratas, o Estado e os ricos tendem a se identificar, e se poderia citar como casos-limite certos países da Europa onde os poderosos preferem aliar-se, nas questões cruciais, a seus competidores diretos da União Européia. A prosperidade e a economia produtiva são vitais para uma comunidade. Claro que os ricos do último século, o do capitalismo monopolista, não são aqueles que, graças a seu trabalho ou a outra fonte legal de rendimentos, conseguiram reunir uma certa fortuna -profissionais, empresários, executivos, comerciantes etc.- e que constituem a classe média alta e até certas camadas da burguesia. Os novos-ricos de hoje são representados pelos enormes capitais concentrados nas mãos de uns poucos que se confundem num arquipélago de atividades e de empresas envoltas numa brumosa opacidade.

O descomedimento
Essa concentração, cujo crescimento imperativo é uma verdadeira máquina de guerra econômica e social, embora seja quase inimaginável para o homem comum, determina, nos mais variados pontos do planeta, sua existência cotidiana, seu bem-estar ou seu sofrimento, seu nascimento e sua morte.
Tanta riqueza irracional é a encarnação daquilo que os gregos chamavam "hybris", isto é, o descomedimento, a desarmonia que vem conjugada ao conflito, à desordem, à guerra, à tragédia. É ela que põe em perigo não apenas aqueles que tratam de combatê-la com decisão mas também os que contribuem a criá-la, seus aliados, seus amigos, a espécie humana, o planeta inteiro. E, se um dia qualquer, na próxima guerra nas estrelas, o inimigo vindo do espaço se dispusesse a nos invadir, mais uma vez se confirmaria a análise do professor Koyré: a quinta-coluna, para perpetuar o delírio planificado de sua supremacia, reconhecendo-se, como num espelho, na careta odiosa do inumano, lhe abriria a porta.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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