São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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NO LIMITE ENTRE PRESENTE E FUTURO, ESTILISTAS ANTECIPAM GOSTO DO CONSUMIDOR E REATUALIZAM A FACULDADE DO JULGAMENTO ESTÉTICO DE KANT

Dialética das passarelas

Reuters - 17.abr.2002
Modelo desfila usando chapéu de Philip Treacy no museu Alberte Vitória, em Londres


por Hans Ulrich Gumbrecht

Quer você se interesse por ela, quer não, você provavelmente imagina saber o que é a "moda" e como ela funciona. Mas, se realmente tentasse encontrar uma definição para o termo, não demoraria a perceber que a moda é um fenômeno surpreendentemente desconhecido, até mesmo enigmático. Há mais de 150 anos a aura densa (embora quase invisível) de perguntas que cerca a moda tem levado uma série de intelectuais de destaque a buscar oferecer explicações de seus mecanismos ou, no mínimo, propor descrições que sempre se pretendem definitivas. Charles Baudelaire (1821-1867), Marcel Proust (1871-1922), Georg Simmel (1858-1918), Roland Barthes (1915-1980) e Pierre Bourdieu (1930-2002) são apenas os mais famosos entre os autores que já cederam a esse empreendimento fascinante. Por isso mesmo, é espantoso constatar quão fragmentários e vagos foram e são suas tentativas. Tudo o que eles têm a dizer sempre parece ser ou demasiado geral ou insuficientemente abrangente ou deliberadamente caprichoso ou não realmente pertinente. Nas últimas décadas, por exemplo, passou a ser de praxe afirmar, muitas vezes em tom ligeiramente condescendente, que a moda, como um todo, é movida pelas forças do mercado e manipulada por poderosos interesses industriais. Do mesmo modo, sempre se deu como certo que a moda "expressa" alguma coisa, não se sabe bem o quê. Entretanto mesmo tais premissas amplamente aceitas relativas à moda não resistem a um olhar intelectual mais sério -na realidade, se chocam com algumas observações empíricas elementares. Dada a complexidade do fenômeno em questão, por um lado, e, pelo outro, a estranha inércia intelectual que parece dominar aqueles que escrevem sobre ele, qualquer novo ponto de partida para repensar os problemas envolvidos deve, modestamente, concentrar-se em explicar, desde uma perspectiva histórica, o que, exatamente, queremos dizer quando usamos a palavra "moda" e, em seguida, deve identificar, desde um ponto de vista mais sistemático, as questões que precisam ser resolvidas para que possamos começar a compreender a dinâmica da moda.


AO TODO, A INDÚSTRIA DA MODA PODE LEMBRAR UMA PARÓDIA DOS ALTOS E BAIXOS DAS BOLSAS DE VALORES


Nem toda mudança nos hábitos ligados à vestimenta de uma sociedade ou setor da sociedade alcança as dimensões da moda. A transição dos códigos de vestimenta da nobreza medieval, por exemplo (que lembravam algumas tradições da Roma antiga), para o estilo -para nós, muito menos exótico- do vestuário renascentista com certeza não foi um passo dado na esfera da moda, como tampouco o foram as mudanças consideráveis observáveis no vestuário das mulheres ao longo do século 17. Essas transformações não surgiram em razão de um ritmo de mudanças institucionalizado nem de um desejo subjetivo de transformação. A moda, em seu sentido historicamente específico, implica, para começar, a expectativa fundamentada de que as formas de vestuário dominantes (falaremos desse termo mais à frente) irão mudar em intervalos explicitamente marcados. Em segundo lugar, ela pressupõe que o rumo dessas mudanças se baseia nas intuições de estilistas especializados, que produzem para o mercado anônimo, e não para indivíduos. Em terceiro lugar, esses estilistas regularmente apresentam suas inovações no contexto de "coleções", que, em quarto lugar, se espera que se enquadrem em um único e grande estilo que abrange a todos, a cada temporada. Ao longo de várias temporadas, a sequência desses estilos vai revelar a identidade estilística do costureiro. Se essas características realmente descrevem o fenômeno ao qual chamamos "moda", seria necessário corrigir a convenção da história da moda que elevou Rose Bertin à categoria de primeira estilista de moda no mundo.

O guarda-roupa de Maria Antonieta
No final do século 18, Bertin era responsável pelas roupas da rainha francesa Maria Antonieta, e seu sucesso era tão grande que ela começou a exercer uma influência ampla e largamente reconhecida sobre o modo de vestir das mulheres das classes mais altas. Mas Rose Bertin atendia a uma cliente, não produzia para um mercado, e, apesar de sua criatividade, ainda não operava num ritmo formal de mudanças. A moda tal qual a conhecemos hoje só teve início em meados dos anos 1850, com o imigrante britânico Charles Frederick Worth, que abriu em Paris uma loja e produtora de moda que incorporavam e promoviam os princípios da mudança regular, da orientação para o mercado, da produção em coleções e do desenvolvimento de uma identidade de marca (cada peça de vestuário vendida por Worth ostentava o nome dele e de sua empresa).
Com base nessa descrição do que, especificamente, é a moda e em sua cronologia, torna-se fácil associar o surgimento da moda a uma série de modificações contemporâneas em seu ambiente histórico. Entre outras coisas, a moda parece pressupor a valorização da inovação como valor estético absoluto, o que não existia antes da arte e do estilo de vida românticos do início do século 19. É igualmente evidente que a moda obedece ao imperativo capitalista de gerar desejos sempre novos entre clientes potenciais, em lugar de atender exclusivamente a suas necessidades preexistentes. Dentro da dinâmica de um tipo de economia então nova, tal geração de desejos ajudaria a indústria da moda a conquistar um mercado potencialmente global (sendo que o primeiro sintoma dessa tendência foi a hegemonia internacional sempre crescente da alta-costura francesa até a segunda metade do século 20).
Finalmente a moda parece convergir, historicamente, com o aumento das oportunidades de mobilidade e autopromoção que sempre caracterizaram as sociedades burguesas.
O que, exatamente, faz da moda um fenômeno tão enigmático até hoje? Seu aspecto mais singular, o único que nunca deixarei de achar surpreendente, é a temporalidade da moda. Por mais que possamos estar acostumados a ela, é muito estranho, desde um ponto de vista econômico, que as formas e cores dominantes que conquistaram uma produção industrial, um mercado e, sobretudo, a auto-apresentação visual de centenas de milhões de clientes sejam suspensas duas vezes por ano e por tempo indefinido -não porque essas formas e cores tenham começado a tornar-se enfadonhas, mas apenas porque obedecem a uma lei social e econômica de mudança regular (que, é claro, já gerou a expectativa da mudança regular).
O que essa lei da mudança torna necessária, entre outras coisas, é uma grande margem de lucro por peça para as lojas individuais de moda, durante o tempo em que uma determinada moda está "na moda". Pois a única previsão totalmente certeira na moda é o momento em que os preços vão sofrer uma queda dramática, ao término de cada temporada -quando a próxima moda está prestes a chegar.
Ao todo, a indústria da moda pode lembrar uma paródia dos altos e baixos das Bolsas de Valores -paródia, mais do que alegoria, porque, diferentemente das Bolsas, as mudanças entre momentos de alta e de baixa são inteiramente previsíveis no âmbito da moda. Do lado dos clientes, o sentimento de "desvalorização" de cada moda, da chegada da nova temporada, é, evidentemente, sujeito a variações altamente individuais.


ALGUMAS PESSOAS PREFERIRIAM MORRER A VESTIR A MODA DO ANO PASSADO (OU SEJA, DA TEMPORADA DESVALORIZADA) EM PÚBLICO


Algumas pessoas prefeririam morrer a vestir a moda do ano passado (ou seja, da temporada desvalorizada) em público, enquanto outras (que presumo ainda representarem a maioria) praticamente não têm consciência de como as roupas que vestem podem estar relacionadas à moda do momento (se elas estão "na moda" ou "fora de moda" ou, ainda, se uma certa tendência do passado que elas vestem foi ou não reciclada). Mas, enquanto é fácil compreender as consequências econômicas da temporalidade da moda, o que acho mais fascinantes são algumas de suas características intrínsecas.
Não apenas porque tal ritmo de desvalorização e inovação, sem nenhuma plausibilidade orientada ao usuário, tenha sido tão amplamente aceita, mas porque a moda é um dos poucos fenômenos dentro da modernidade que não atribui infinito valor a ser "de vanguarda". Muito diferentemente do mundo da arte e da literatura, não é bom para um estilista de moda ser totalmente de vanguarda, ou seja, estar muito adiante de seu tempo. Os estilistas bem-sucedidos são aqueles que conseguem repetidas vezes explicitar e depois reforçar o gosto por cada "próximo presente", e esse é um gosto que, de alguma maneira, eles precisam encontrar anunciado já no "presente real". Assim, poderíamos dizer que os estilistas de moda trabalham muito especificamente no limite entre o presente e o futuro.
Aqui identificamos o segundo enigma da moda. Como podem os grandes estilistas saber qual será o gosto da próxima temporada? Existe uma resposta tradicionalmente intelectual -e grosseira- a essa pergunta, segundo a qual, simplesmente, o poder da indústria da moda pode impor a seus clientes qualquer mudança de formas e cores que quiser, e, portanto, que a invenção dessas mudanças é totalmente arbitrária e não requer nenhum talento ou capacidade específicos. Mas felizmente a realidade é muito mais complexa e interessante. Os observadores de longa data do mundo da moda sabem que, quase a cada temporada, existem alguns estilistas e produtores de primeira linha que não chegam a acertar totalmente o que está no processo de tornar-se o gosto dominante -sendo que, normal e surpreendentemente, a maioria das grandes casas de moda se vê convergindo sobre as mesmas novas formas e cores.
O que importa aqui, mais do que todo o poderio econômico, é um talento muito específico dos estilistas, talento esse que se aproxima da descrição feita por Kant (1724-1804) do julgamento estético. Pois trata-se, de fato, de um julgamento (referente ao gosto futuro de seus clientes) que gera um consenso (e que consenso numericamente amplo ele acaba se tornando, a cada temporada!) e que o faz, como postulou Kant no caso do julgamento estético, sob condições extremamente específicas, sem ser baseado em critérios ou conceitos estáveis.
Não existe nenhum algoritmo que, baseando-se no passado, permita aos estilistas prever as próximas mudanças de gosto, segundo o "necessário". Mesmo o "tamanho" das próprias mudanças, se é que se pode utilizar a linguagem da quantidade nesse contexto, é imprevisível. Há períodos durante os quais as mudanças que ocorrem de uma temporada a outra se mantêm dentro de um âmbito limitado de variabilidade (o sociólogo Niklas Luhmann certa vez propôs reservar o termo "estilo" para esse tipo e gama de variações).
Mas existem outros momentos -às vezes inteiramente surpreendentes e outras vezes longamente aguardados- em que ocorre uma transformação mais dramática. No entanto o desempenho do gosto de um estilista apenas se aproxima da descrição feita por Kant do julgamento estético -sem corresponder plenamente a ele, porque Kant parece ter pressuposto que esse julgamento sempre diz respeito a um objeto de referência dado (normalmente, mas não em todos os casos, a "obra de arte"), enquanto o estilista imagina formas e cores que serão aprovadas, gerarão consenso, despertarão entusiasmo e promoverão as vendas no futuro iminente da próxima temporada.
Mas, embora projete o gosto iminente da próxima temporada, presumo que o julgamento do estilista seja baseado naquilo que ele vivencia em cada presente. Como eu já disse antes, ele opera na margem entre presente e futuro. O estilista é menos um visionário do que alguém que tem intuições muito mais complexas do que as de seus próprios clientes sobre os desejos subjacentes ao comportamento atual desses clientes.
Depois de sua temporalidade e do tipo de avaliação em que é baseado, o terceiro enigma da moda implica a provocação mais dolorosa para o intelectual ocidental tradicional. Pois, no mundo da moda, a aprovação pública ampla e, sobretudo, o êxito econômico estrondoso não apenas não contradizem o valor estético como são suas condições necessárias. As formas e as cores de cada temporada não são apenas o que os grandes estilistas sugerem, mas também o que aqueles clientes que podem pagar a alta-costura vão comprar de suas coleções. Por meio das cifras de vendas da alta-costura, esse público, por assim dizer, dá os toques finais ao gosto dominante de cada temporada. É claro que os estilistas às vezes acusam seus clientes de manifestar o gosto "errado" ao escolher peças de suas coleções, e tais críticas podem repetir-se pelos níveis seguintes ("inferiores") de seleção, nos quais o gosto dominante da temporada se transforma em orientação para a produção em massa.
Mas jamais seria prova de bom gosto individual opor-se abertamente ao gosto dominante. Em cada sociedade, alguns segmentos muito específicos -pensem em alguns (não todos) dos membros da família real britânica, por exemplo- podem realçar seu status, ostensivamente demorando a aderir às mudanças da moda (e mesmo demorar a aderir à moda requer um mínimo de conhecimento dela).
Mas cultivar nosso individualismo por meio da escolha sistemática das propostas de estilistas que não fazem sucesso ou, o que é ainda pior, tentar demonstrar nosso próprio gosto, independentemente da moda, é mau gosto, pura e simplesmente.

A moda funciona por meio de um código de inclusão e exclusão. Certa vez vi um milionário, num evento público, usando um casaco cujo tecido, corte e cores ele próprio tinha escolhido -e a obrigação, imposta a todos, de poupá-lo de constrangimentos, dizendo alguma coisa simpática sobre sua roupa medonha, foi uma verdadeira chatice.
É claro que leva tempo para cada gosto dominante atingir um nível em que se torne disponível para as chamadas "grandes massas" -tanto tempo que, frequentemente, até uma certa moda alcançar as massas, o gosto dominante já mudou outra vez. Mas esse fato estrutural não desmente o princípio geral da moda, ou seja, que apenas aquilo que dialoga com cada gosto dominante pode ser reconhecido como sendo de bom gosto. Estou dizendo que o bom gosto precisa estar "em diálogo com" o gosto dominante (não corresponder totalmente a ele), porque nuanças de variações individuais são permitidas, sim -e, na realidade, experimentos nesse sentido são encorajados. Você pode tentar usar sua echarpe favorita, nas cores da temporada passada, com um vestido que obedece ao gosto dominante atual.
O reconhecimento do componente individual no gosto da moda chega a ponto de fazer com que seja considerado constrangedor que duas mulheres que vestem alta-costura apareçam num evento à noite usando exatamente a mesma peça de roupa -se bem que, sob as condições de mercado dadas, não exista maneira de eliminar totalmente esse risco. Essa ambivalência entre conformidade e individualismo no culto da moda corresponde exatamente à tese lançada no início do século 20 pelo sociólogo alemão Georg Simmel. Ele afirmou que a moda oferece as possibilidades simultâneas de nos inscrevermos no corpo social e de tomarmos uma distância individual dele. Mas a gama das variações desse tipo é dominada, temporada após temporada, pelo gosto dominante -ou seja, principalmente pelo sucesso de vendas da alta-costura.
Depois de feito o esforço para descrever a estrutura e os mecanismos da moda, a coisa mais espantosa é perceber com que firmeza esse conglomerado estranho e excêntrico, feito de produção industrial, julgamento estético e dinâmica do mercado, fincou raízes em sua história relativamente curta. É difícil ou simplesmente impossível para nós imaginar que o fenômeno da moda possa algum dia desaparecer de nossas sociedades.


NINGUÉM VAI CONFUNDIR O FATO DE VOCÊ ESCOLHER OS TRABALHOS DE UM DESIGNER ITALIANO COM A APRECIAÇÃO DA "DIVINA COMÉDIA", DE DANTE, DO MAR ADRIÁTICO OU DE UMA PIZZA


Mas quais são as funções que podem explicar como a moda -algo que parece ser tão efêmero, desde um ponto de vista prático- se tornou tão indispensável para nós? A principal razão de seu status estável deve estar nas dimensões alcançadas pela indústria da moda como um todo. A moda se transformou numa parte importante e, presumo, especialmente estável de nossos sistemas econômicos e, como tal, deve ter desenvolvido mecanismos fortes de auto-reprodução. Como acontece com a maioria dos outros subsistemas fortes no interior da economia, todo mundo se beneficia da moda -ao menos indireta e independentemente de seu envolvimento com os ritmos reais da mudança da moda.
Fazendo referência a uma perspectiva mais pessoal, eu já disse que não acredito que a moda funcione como meio de "expressão", ou seja, como uma possibilidade para objetificar e mostrar publicamente nossos sentimentos, pensamentos e preferências interiores. Ninguém vai confundir o fato de você escolher os trabalhos de um designer italiano com a apreciação da "Divina Comédia", de Dante, do mar Adriático ou de uma pizza. Se, entretanto, você sente vontade de escrever poesia e, portanto, decide vestir-se "como poeta", vai criar a impressão de estar vestindo um disfarce, o que pode gerar constrangimento semelhante àquele provocado pelo casaco individualmente desenhado pelo milionário.
Será que podemos, então, dizer que Roland Barthes tinha razão ao dizer, referindo-se à moda (o que dizia em relação a tantos outros fenômenos culturais), que ela era um "significante vazio", um significante que simplesmente não expressava coisa nenhuma?
Embora ela continue muito bem-vista entre meus colegas acadêmicos, sempre tive dificuldades com a fórmula do "significante vazio" -afinal, por que continuarmos a chamar de "significante" um significante que nada significa? O fato de que, nas últimas duas décadas, tenha passado a ser "in" mostrar o nome ou logotipo de um estilista sobre nossa roupa (o que implica o paradoxo de que tivemos que pagar para cumprir uma função publicitária, ao invés de sermos pagos para isso), juntamente com o verdadeiro entusiasmo que muitos de nós manifestamos em ostentar esses nomes de grife, pode nos oferecer uma primeira pista na direção de uma função diferente cumprida pela moda, para os clientes individuais.
Não vou me estender sobre o fato -embora seja verídico- de que usar nomes e logotipos de grifes nos transforma em significantes e passarei por cima do efeito de exibicionismo que um papel pode desempenhar aqui. Acredito, sobretudo, que esse fenômeno relativamente recente demonstra como a participação nas mudanças da moda oferece benefícios psicológicos semelhantes aos proporcionados pelos jogos de azar, em condições de risco especialmente baixas.
Comprar moda e ostentar o nome da grife de sua preferência pode gerar uma sensação semelhante à que se obtém ao declarar que se aposta em determinado número ou determinado cavalo. Se a marca que você comprou possui ou continua a ter destaque dentro do âmbito do gosto dominante ou se a cor que você escolheu desde o início acaba se transformando na cor da moda, então você poderá parabenizar-se por seu excelente gosto individual. Apenas os estilistas bem-sucedidos da temporada sabiam disso antes de você! Esse fortalecimento de sua auto-imagem é o benefício potencial que deriva da moda concebida como jogo de azar.
Se você for suficientemente obcecado por ela, ela vai até autorizar você a posicionar-se num ranking, comparando-se a outras pessoas (mais ou menos) interessadas em roupas. O risco envolvido é baixo. Se sua opção de gosto perder no mercado, isso só será penosamente visível durante uma temporada (ou, se você tiver condições econômicas para tal, por apenas alguns dias) -e, sobretudo, você não perde o valor de uso prático daquilo que comprou como peça de vestuário.
Poderíamos acrescentar que, se comprar moda de fato é um pouco semelhante a jogar, dará àqueles que possuem apenas riqueza recentemente adquirida a possibilidade de se misturar rapidamente com as classes superiores, num grau de flexibilidade e inclusão social que, cada vez mais, parece constituir uma das tendências de nossos tempos. Uma vez que você saiba quais estilistas são "in", que você saiba, portanto, em que butiques pode gastar a maior parte de seu dinheiro, o risco de comprar algo que lhe envergonhe publicamente se torna quase inexistente. Por outro lado, dadas as condições específicas de azar desse jogo, você tem uma chance quase tão boa quanto as pessoas que possuem "dinheiro antigo" de escolher o que vai se tornar (ou já é) a moda dominante.
Esse acesso fácil ao jogo da moda deve ser a razão pela qual alguns membros das classes superiores tradicionais se mostram tão ansiosos por mostrar sua distância dela. Sobretudo eles não querem dar a impressão de estar se esforçando. A qualidade renascentista da "sprezzatura", que lhe permite apresentar sua elegância como se ela fosse casual e quase aleatória, continua a desempenhar um papel central no mundo da moda. E essa casualidade, somada à escolha correta, podem valer a aceitação nos círculos superiores para aqueles cuja riqueza é apenas recente -desde que não dêem a impressão de estar fazendo um esforço.
Mais uma vez, porém, isso tudo soa sociológico quase demais para meu gosto intelectual atual. Minha hipótese favorita relativa à função da moda não tem nada a ver com integração social e distinção social. O que eu admiro e invejo mais naqueles que constantemente e com paixão acompanham as trajetórias (para mim) em ziguezague enigmático da moda, é como esse envolvimento desperta neles uma concentração sempre renovada no presente. Ele os deixa alertas. Ele os faz voltar-se a, concentrar-se em e reagir a um fragmento superficial de cada mundo presente, e, enquanto eles se concentram nesse fragmento do mundo superficial, extraem dele uma intuição sobre o que virá a seguir.
Enquanto se concentram nas superfícies de mundos sempre renovados, os amantes da moda nunca as interpretam. Pois a moda não tem significado. Se houvesse um significado a ser decifrado, os amantes da moda demorariam demais a permanecer "por dentro" na temporalidade extrema implícita em seu jogo favorito.

Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É autor de "Modernização dos Sentidos" (ed. 34) e outros.
Tradução de Clara Allain.


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