São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ trecho

"Nas denúncias dos campos ressoa com tamanha força a linguagem dos currais e dos matadouros que é quase desnecessário preparar o terreno para a comparação que estou prestes a fazer. O crime do Terceiro Reich, diz a voz da acusação, foi tratar as pessoas como animais.
Nós, mesmo nós na Austrália, pertencemos a uma civilização que tem profundas raízes no pensamento religioso grego e judaico-cristão. [..." Aceitamos sem questionar que a psique (ou alma) tocada pelo sentimento de culpa não pode estar bem. Não aceitamos que as pessoas com crimes em sua consciência possam ser saudáveis e felizes. Olhamos (ou costumávamos olhar) com desconfiança para os alemães de uma certa geração, porque de algum modo estão maculados: nos próprios sinais de sua normalidade (seu apetite saudável, sua risada sonora) vemos provas de quão profundamente a impureza se insinuou no seu íntimo.
Era e é inconcebível que pessoas que não sabiam (nesse sentido especial) dos campos possam ser inteiramente humanas. Em nossas metáforas, eles, e não suas vítimas, é que eram animais. Ao tratar seus semelhantes, seres humanos criados à imagem de Deus, como animais, eles próprios se transformaram em animais.
Hoje de manhã levaram-me a dar uma volta de carro por Waltham. Parece uma cidade agradável. Não vi nenhum horror, nenhum laboratório de teste de substâncias químicas, nenhuma fazenda industrial, nenhum matadouro. Porém tenho certeza de que essas coisas existem aqui. Devem existir. Elas simplesmente não se mostram. Estão à nossa volta neste momento, só que, em certo sentido, não sabemos que estão ali.
Vou falar abertamente: estamos cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso trata-se de uma empresa interminável, que se auto-reproduz, trazendo incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o propósito de matá-los."

Trecho extraído de "A Vida dos Animais".


Texto Anterior: Saiba quem é J.M. Coetzee
Próximo Texto: A corrosão do hábito
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.