São Paulo, domingo, 05 de maio de 2002

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Em "A Consciência de Zeno", Italo Svevo alia ficção e psicanálise e cria um dos grandes anti-heróis do século 20

A corrosão do hábito

Fábio de Souza Andrade

especial para a Folha

A propósito do protagonista de "A Consciência de Zeno" (1923), o triestino Italo Svevo, um dos inventores do moderno romance italiano, afirmava que "o destino de todos os homens é o de enganar a si mesmos sobre a natureza das próprias preferências para atenuar a dor dos desenganos que a vida traz a todos".
No confronto entre os propósitos heróicos e a realidade pouco enaltecedora, o sabor negativo desse juízo, fazendo coro com Freud e Schopenhauer, norteou o fino observador e ironista Ettore Schmitz (1861-1928), nome civil de Svevo, na dupla vocação de negociante abastado e artista, esquadrinhador das existências burguesas.
A história de Trieste, como a de Svevo, confunde-se com seu pendor comercial e certa má consciência daí derivada. Filho de um judeu austríaco de língua alemã e mãe italiana, o autor de "Uma Vida" (1892) e "Senilidade" (1898) cresceu no então principal porto da Áustria, cujas raízes culturais estavam, porém, na civilização italiana, berço da língua franca em que eslavos, vienenses e itálicos se entendiam e desentendiam.
A confusão babélica atraiu à cidade James Joyce, que lá teve seus filhos e sobreviveu das lições de inglês, enquanto se dedicava ao "Ulisses". Os dois foram amigos próximos e a confirmação crítica do irlandês, depois endossada pela admiração de Montale e Valéry Larbaud, foi decisiva para que Svevo reatasse com a literatura, depois de um silêncio de mais de 20 anos, ocupados pelos negócios em sociedade com o sogro, pai de Lívia, também sua prima, que inspirou os cabelos loiros e longos de Anna Lívia em "Finnegans Wake".
O resultado foi sua obra-prima, que a Nova Fronteira relança em edição cuidada, tradução impecável de Ivo Barroso, acrescida de posfácio de Alfredo Bosi. Nele, sob a forma de um relato autobiográfico, escrito por encomenda de um analista, somos apresentados ao esforço de compreensão e relativo apaziguamento dos conflitos íntimos de Zeno, respeitável, abastado e provecto cidadão triestino.
Em meio a uma rotina desoladoramente previsível, protegida pela fortuna, pontuada e dividida por crises espaçadas, mais ou menos cotidianas (uma internação para cura, a morte do pai, a corte à esposa, como conciliar mulher e amante, a rivalidade com o cunhado), assistimos às contorções morais de uma natureza sensível, mas não a ponto de sacrificar-lhe o conforto, que se enrodilha ao redor de uma única e prosaica obsessão, suma de todos os outros projetos de aprimoramento: deixar de fumar.


Sua tormenta e sua diversão estão em racionalizar e relativizar o fracasso


Da linhagem moderna dos anti-heróis, Zeno encarna como poucos os hábitos (ou seriam tiques?) de sua classe. A vida, desde o casamento com a única de quatro irmãs que não lhe despertara interesse até a relação culpada com a desnecessidade de trabalhar, é a história das soluções possíveis, da conciliação, um pouco forçada, um pouco comodista, com um mundo em que o prazer e a fantasia não têm mínima chance contra a fatura cobrada pela realidade. Procurar resistir ao destino, traduzido sob a forma de comportamentos que, de tão esperados, se convertem em compulsões, é alimentar quimeras.
Das intenções aos gestos, Zeno constata as pernas curtas das grandes resoluções: a pusilanimidade é seu traço distintivo; sua tormenta e sua diversão estão em racionalizar e relativizar o fracasso, sofrer a decepção (no melhor dos mundos, rindo de si mesmo) e seguir vivendo uma vida comicamente inviável.
Nos três romances de Svevo, o precário equilíbrio entre artista e burguês, disposição prática e sensibilidade estetizante, é o foco constante, conferindo um ar de família a Zeno, Alfonso, o bancário com veleidades literárias, protagonista de "Uma Vida" (Nova Alexandria), que, incapaz de administrar os baques do mundo, se suicida, e Emílio, de "Senilidade" (Nova Fronteira), precocemente abúlico aos 30 anos, condenado a uma vida afetiva de migalhas, disfarçando seu desejo por uma costureirinha em filantropia ou amor romântico.
As marcas de um estilo ainda muito preso a esquemas de filiação naturalista (destrinchando destinos exemplares, moldados por uma força opressiva do meio), ainda que refinados por um senso de nuances muito desenvolvido, inibem parcialmente a ironia de matriz sterniana que vigora no romance final.
O salto dado por "A Consciência de Zeno" está na forma renovada do realismo, a começar dessa escavação exemplar do narrador em primeira pessoa, que levou a crítica a aproximá-lo de Proust e Pirandello, lembrando o parentesco da psicopatologia do cotidiano que ali se esboça com o projeto freudiano. A sombra das leituras do médico vienense na obra de Svevo, bem como a presença da psicanálise em sua vida, não pode ser ignorada; as alfinetadas nos analistas e seu empenho na denegação só fazem confirmá-la. Não faltam os que, escorados na semelhança entre a biografia de Ettore Schmitz e as experiências atribuídas a suas criaturas, postulem leituras edipianas clássicas das neuroses que habitam as personagens.
Para estes, a correspondência e o "Diário para a Noiva" (registros publicados postumamente, mantidos num caderno que a futura esposa, Lívia, lhe ofereceu na ocasião do noivado) são documentos preciosos. Aos demais, o romance mais do que se basta, mostrando como todos engordamos diariamente o sempre aposentado "envelope dos bons propósitos" e sentimos "o caráter efêmero e inconsistente da nossa vontade e dos nossos desejos" como uma espécie muito peculiar de doença, a vida como a conhecemos e Svevo nos apresenta.

Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno -A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).


A Consciência de Zeno
411 págs. R$ 32,00 de Italo Svevo. Trad. Ivo Barroso. Ed. Nova Fronteira (rua Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel 0/xx/21/2537-8770).



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