São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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UMA VIDA EM SUSPENSÃO

Em "O Mestre", o escritor irlandês Colm Tóibín romanceia a biografia de Henry James, que também tem lançada no Brasil uma seleção de contos

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Por coincidência, duas editoras diferentes publicam livros relacionados com o mesmo Henry James (1843-1916): um romance, baseado em sua biografia, "O Mestre", do irlandês Colm Tóibín (Companhia das Letras, tradução de José Geraldo Couto, 440 págs., R$ 52), e três de seus contos (contos, e não "short stories"!), com o título "Um Peregrino Apaixonado" (ed. Planeta, tradução de Marcelo Pen, 232 págs., R$ 36).


Ao desligar-se das questões políticas, Henry James reiterava a sutil covardia que manifestara quando jovem


"O Mestre" abre com a expectativa de James ante a estréia de sua peça "Guy Domville", em janeiro de 1895. Dado o alto retorno financeiro que um êxito teatral então proporcionava, era imaginável sua ansiedade.
Em breve, contudo, saberá de seu fracasso. As palmas dos amigos não foram suficientes para abafar as vaias que se seguiram à apresentação. Em troca, noutro teatro londrino, estrondoso êxito cercava peça de Oscar Wilde. Pouco importava que o próprio Henry James a acusasse de chula e vulgar. É a qualidade da escrita de Colm Tóibín que começa a se revelar na combinação dos subconjuntos presentes na configuração: dois dramaturgos recebem julgamentos opostos; um deles é um norte-americano de ascendência irlandesa e perfil sexual impreciso; o outro, um irlandês que, em breve, será condenado pelo rígido código da sexualidade vitoriana.
Logo a extrema habilidade de Tóibín desdobrar-se-á em levar James à Irlanda, como convidado do vice-rei britânico. Testemunhará então, discreto e contido, o desnível entre o luxo dos dominadores e a miséria das casas e ruas irlandesas. Misturado aos convivas do vice-rei e do general das tropas inglesas, Henry James pareceria idêntico aos que se banqueteavam se um político, com ganas de luzir, não o interrogasse sobre sua origem. Para o próprio James, era o momento mais inoportuno de fazê-lo, pois preferiria não se distinguir de seus amigos e conhecidos.

Deslocamento
Mas Tóibín não falseia sua biografia: não lhe empresta nenhuma palavra ou gesto impróprio -é a própria apresentação dos extremos, entre luxo e miséria, junto da lembrança de sua ascendência, que ressalta seu deslocamento. Assim, pois, o subconjunto formado por desvio sexual e origem irlandesa assume uma nova ênfase. O primeiro elemento estará presente ao longo de todo o romance. O segundo mostrar-se-á enfaticamente no fim.
A aristocrática mulher do general-em-chefe inglês vem jantar na casa de Henry, estando presente seu irmão, William, mulher e filha. Às idiotices proferidas pela senhora generala sobre o destino político da Irlanda responde a ironia cortante de William James. Mais do que alguém, no caso, William condiz com o tipo do intelectual norte-americano, em visita ao Velho Mundo, como Henry o expunha: ingênuo, inocente ou mesmo bárbaro, mas politicamente adverso à hipocrisia dos bem-pensantes. De sua parte, Henry assume uma posição discreta. Afinal, lady Wolseley era sua amiga.
Na verdade, e não só no romance, os irmãos eram muito distintos. Ao passo que o psicólogo via a Europa com desconfiança, o romancista era um conviva da alta sociedade londrina. Ao homossexualismo nunca assumido de Henry James correspondia seu alheamento político -sua prosa ficcional nem visava ao consumo nem opinar sobre as posições do império. Ao desligar-se das questões políticas, Henry James reiterava a sutil covardia que manifestara quando jovem, no momento da Guerra Civil norte-americana.
Naquele instante, enquanto parentes e amigos acorriam aos postos de recrutamento, convencera o pai de que deveria matriculá-lo em Harvard. É certo que William aí já estava. Mas ele se tornaria um scholar, ao passo que Henry abandonara o curso de direito e se entregara a longas permanências na França e na Itália, permitidas à família pela fortuna que os James herdaram do avô irlandês. Suas viagens se tornarão menores quando decidir fixar-se na Inglaterra. E sua permanência estará segura quando, nos anos que "O Mestre" retrata, estabelecer contato com um agente literário que lhe fornecerá encomendas constantes de revistas não só inglesas mas também norte-americanas. Mas não nos apressemos.
O que o esboço acima expõe é o panorama de uma vida a ser indagada. Aproximemo-nos um pouco mais. O enredo, diz a própria apresentação do livro de Tóibín, baseia-se na biografia de Henry James, entre 1895 e 1899. Ao leitor avisado ocorrerá de imediato a pergunta: em que medida a ficção tem o direito de entrar na biografia de uma pessoa conhecida?
Em termos abstratos, a questão consiste em conciliar o que biograficamente se conhece com o tratamento ficcional. Mas as duas exigências são compatíveis? Para que assim suceda, o autor precisa estabelecer um acordo de planos. Como a biografia é a base da exploração, ela há de constituir o plano maior, dentro do qual será exercida a "inventio".
De posse da biografia de Leon Edel -"Henry James - A Life" (1985)- testei umas poucas situações. A primeira se refere à "prima amada", Minnie Temple. Ela havia sido a musa dos colegas de juventude do futuro romancista e morrera com apenas 24 anos.
Embora, como assinala Leon Edel, sua presença se fizesse sentir em romances escritos em tempos tão diversos como "Retrato de uma Senhora" [1881; Cia. das Letras] e "As Asas da Pomba" [1902; Ediouro], ao menos para um de seus antigos admiradores, Oliver Wendell Holmes, Henry fora mesquinho com ela. Holmes lhe declara, quando ambos já são velhos, que, um pouco antes da morte, Minnie insinuara por cartas ao primo que gostaria de rever Roma com ele. O romancista relê a velha correspondência e, perplexo, verifica que a acusação tinha sentido.
Ora, se cotejamos a passagem de "O Mestre" com a biografia de Edel, conferimos que, de fato, Henry James se encontrava em Roma e que se correspondia assiduamente com Minnie. Não se comprovam, porém, nem as insinuações de Minnie nem o egoísmo do escritor. A passagem de "O Mestre" é, portanto, historicamente fiel, ao mesmo tempo que ficcionaliza a relação pessoalizada.
A segunda situação também envolve a Itália. Constance Fenimore Woolson pertencia às abastadas famílias tradicionais norte-americanas que podiam se permitir longas estadias na Europa. Romancista e leitora arguta de Henry James, havia estado com ele tanto em Londres quanto na Itália.
Henry James está em sua própria casa, na cidadezinha de Rye, quando sabe que, em janeiro de 1894, Constance se suicidara, em Veneza. A sua dor, o seu comparecimento ao enterro da amiga em Roma são atestados por Edel. Mas não a suplementação ficcional: que Henry James houvesse sido considerado co-responsável pelo suicídio, ao fazer Constance sentir-se por ele rejeitada.
Assim como no caso anterior, haveria de acrescentar que é o plano menor aquele que mais permite a complexificação de Henry James.
O cuidado de Tóibín teria pois consistindo em, respeitando os parâmetros históricos, inserir, de uma maneira não possibilitada pelo registro historiográfico, interstícios e reentrâncias, a partir dos quais James construiu sua obra maior, nos últimos anos do século. Semelhante a um pintor que convertesse uma paisagem em traços e pigmentos, Tóibín extrai de encontros e subentendidos figurações únicas, presentes apenas nos diários de viagem, nos ensaios críticos, nos contos e romances de Henry James. Essas figurações, embora apontem para paisagens históricas, não continuam marcantes senão por serem singulares.
Se fosse crível, poder-se-ia pensar que o editor de "Um Peregrino Apaixonado" resolvera oferecer ao leitor brasileiro o correspondente à peça "Guy Domville". Assim como esta fora um fiasco, a escolha dos três contos não foi melhor. O que não deixa de ser uma pena.

Luiz Costa Lima é professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e autor de "O Redemunho do Horror" (Planeta). Escreve regularmente no Mais!.


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