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Parada de sucessos
Intelectuais elegem composições que contribuíram para a sua
formação; "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, é a mais lembrada
RUY FAUSTO
FILOSOFIA (Noel Rosa)
"O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome"
Tem uma melodia simples, que em si mesma parece não
ter nada de especial. Mas isso, precisamente, faz com
que esse samba se conserve melhor do que outros sambas mais elaborados. A letra exprime uma tristeza beirando o ressentimento.
TOURADAS EM MADRI (Braguinha e Alberto Ribeiro)
"Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui"
A melodia tem uma certa complexidade. A letra é uma
joia. A tourada é conversa fiada. Há aí uma espécie de diluição satírica da grandeza (tudo somado, covarde) das corridas de touros.
CHEGA DE SAUDADE (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)
"Vai minha tristeza, e diz a ela que sem ela não pode ser"
Claro, o samba é muito bom, mas também entram as circunstâncias. Sabíamos que a música brasileira estava
num compasso de espera [na segunda metade da década
de 1950]. E lamentávamos. Então apareceu um samba,
"o samba do Vinicius", como diziam (o Jobim ainda não
era muito conhecido, pelo menos em São Paulo). Depois
parti para a Europa, na minha primeira viagem. Quando
voltei, era bossa nova por todo lado.
RUY FAUSTO é professor aposentado de filosofia da USP e da Universidade de
Paris 8.
MANOLO FLORENTINO
MEMÓRIAS CONJUGAIS (Paulinho da Viola)
"Lapidar
Foi a sua frase
Proferida de um jeito natural
Registrei esta preciosidade
Sem alarde
No meu livro de memórias conjugais"
Para errar, com razão, várias vezes por dia.
BASTANTE (Sergio Natureza e Zé Luiz Mazziotti)
"Não havia nada além da réstia de sol
Noite apagada e a madrugada ao redor
Mas a luz que anunciava a manhã alaranjada
Já bastava pra eu te enxergar melhor
Não havia nada além da flor no lençol
Rosa amassada pelo corpo e o cobertor
Mas a luz que se infiltrava pelas frestas da vidraça
Já bastava pra eu te decorar melhor"
Para aprender a nunca esquecer de alguém, qualquer alguém.
MORA NA FILOSOFIA (Monsueto e Arnaldo Pessoa)
"Eu... vou lhe dar a decisão
botei na balança... e você não pesou
botei na peneira... e você não passou"
Para aprender a esquecer alguém muito específico.
MANOLO FLORENTINO é professor de história na Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
BORIS SCHNAIDERMAN
A FLOR E O ESPINHO (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)
"Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua"
Temos nessa letra um dos grandes momentos da poesia
brasileira.
ODETE (Herivelto Martins)
"Odete, ouve o meu lamento
Lamento de um coração magoado
Atenda o seu pobre seresteiro
Vem de novo pro terreiro"
Ela não me sai da memória desde o dia em que a ouvi cantada por um grupo de cariocas de morro, embarcados no navio
que levou a Nápoles [na Itália], em julho de 1944, o primeiro
escalão da Força Expedicionária Brasileira.
ATÉ QUEM SABE (João Donato e Lysias Ênio)
"Até um dia, até talvez, até quem sabe
Até você sem fantasia, sem mais saudade
Agora a gente tão de repente nem mais se entende"
Marca um momento importante, pois aí temos um máximo
de expressão com uma construção de texto muito arrojada.
BORIS SCHNAIDERMAN é tradutor e crítico literário.
MARIA RITA KEHL
SALA DE RECEPÇÃO (Cartola)
"Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o sol que a todos cobre
como podes, Mangueira, cantar?"
Cartola sonhou um Brasil chamado Mangueira. A
pergunta que abre este samba resume a sociabilidade que ainda caracteriza o povo brasileiro. Cartola
não explica o mistério, só responde: "Pois então saiba que não desejamos mais nada".
ESTRADA DO CANINDÉ (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira)
"Automóvel, lá, nem se sabe
se é homem ou se é muié
quem é rico anda em burrico
quem é pobre, anda a pé"
A linda toada de Gonzaga embala a miragem do Nordeste que poderia ter sido: mais pedestre e menos
desigual.
TEMPESTADE (Clayton Barros e Lirinha)
"Quando o vento bate forte
Que aspira o ar castigado
Estremece o pulmão da seca"
Para entender a poesia de Lirinha, é preciso conhecer o repentista Manuel Chudu: "Tem certas coisas
no mundo/que eu olho e fico surpreso/ uma nuvem
carregada/ se sustentar com seu peso/ e dentro de
um bolo d'água/ sair um corisco aceso!". Dialogando
com Chudu, Barros e Lirinha compuseram duas espantosas elegias sobre o acontecimento trágico da
chuva no sertão.
MARIA RITA KEHL é psicanalista e ensaísta.
LAURA DE MELLO E SOUZA
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou"
A linguagem era nova, cheia de referências visuais,
e tudo estava ali, combinando o que nem sempre parecia possível combinar: despreocupação, engajamento político, revolução comportamental, orgulho
latino-americano, amor, tecnologia, lirismo... Traduzia o espírito consagrado pelo Maio de 1968, e
uniu todos os jovens do meu mundo.
ACORDA AMOR (Julinho da Adelaide e Leonel Paiva)
"Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição"
Era a primeira faixa de um disco histórico ["Sinal
Fechado", 1974] do Chico [Buarque], que se ouvia
até gastar, e sobretudo a primeira faixa. No limiar
da idade adulta, entrando na universidade, traduzia
todo o medo, a impotência e a sensação de absurdo
daqueles anos horrorosos. Chico virou Julinho da
Adelaide, com direito a uma entrevista concedida a
Mário Prata no jornal "Última Hora".
GAROTA DE IPANEMA (Tom Jobim e Vinicius de
Moraes)
"Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça"
É o horizonte utópico de um Brasil, como foi aliás o
daquele Rio bonito e feliz que a dupla genial [Tom e
Vinicius] amava tanto.
LAURA DE MELLO E SOUZA é historiadora e professora na USP.
JURANDIR FREIRE COSTA
CARINHOSO (Pixinguinha e João de Barro)
"Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim
Foges de mim
Ah, se tu soubesses como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim"
Sussurrada ou aos brados, desafinada ou no tom certo, é a cara
do Brasil que se olha com ternura e sem vergonha de si.
JOÃO E MARIA (Chico Buarque)
"Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês"
Pelo poder de evocar o encantamento da eterna infância de
qualquer sonho de amor.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou"
Pela força mágica de afirmar a potência criativa da vida em
meio à fragmentação do mundo.
JURANDIR FREIRE COSTA é psicanalista e professor na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
BORIS KOSSOY
EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ (Tom Jobim e Vinicius de
Moraes)
"Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim"
Marcou meus 17 anos, coreografia de uma paixão assumida
numa estação de férias inesquecível no interior de São Paulo naquele ano de 1958.
RONDA (Paulo Vanzolini)
"De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar"
Era, no meu tempo de reuniões e festinhas, a música que
sempre acabava sendo dedilhada no violão. Todos conheciam a canção. Já maduro, tive a percepção que "Ronda" continuava sendo a canção que sempre teve um lugar especial no imaginário paulistano.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot"
Foi a marcha-canção envolvente que teve profunda repercussão na minha geração. Caetano transmitiu sua mensagem poética com uma sucessão de fragmentos concatenados da mudança que a contracultura provocava nos EUA e na
Europa e suas repercussões no mundo; sua canção tinha raiz
na terra, mas sua visão era universal, contextual, basta
analisarmos sua letra e seus códigos.
BORIS KOSSOY é fotógrafo e professor de jornalismo na USP.
ALCIR PÉCORA
CORAÇÃO MATERNO (Vicente Celestino)
"Disse um campônio à sua amada:
Minha idolatrada,
Diga-me o que quer"
A sua narrativa é o seu trunfo: amplificação catastrófica e alucinada, imaginação voluptuosa a serviço
de uma ideia de amor monstruoso e triunfante.
QUERO QUE VÁ TUDO PRO INFERNO (Roberto Carlos
e Erasmo Carlos)
"De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar
Se você não vem e eu estou a te esperar"
O decisivo é a carga declaratória de tesão que se
acumula programaticamente até explodir em desabafo. O refrão acaba sugerindo bem mais do que diz,
como se soltasse um palavrão desaforado, com gosto de cantada, "carpe diem" e ofensa ao mesmo
tempo.
ALEGRIA, ALEGRIA (Caetano Veloso)
"O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou"
Não dá margem a moralismos, patriotadas ou fundamentalismos. Trata-se de acolher decidamente
os muitos chamados da cidade e da vida moderna.
Acordes marcados e distorcidos, refrão desencanado, descrição fragmentária, voz desafiadora: tudo
concorre para a vibração urbana, intelectual e sensual ao mesmo tempo.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de
Campinas.
LUIZ COSTA LIMA
CHÃO DE ESTRELAS (Sílvio Caldas e Orestes
Barbosa)
"Minha vida era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado"
Composição excepcionalmente favorecida pela qualidade de alguns versos como "Foste a sonoridade
que acabou" e, sobretudo, "Tu pisavas nos astros
distraída". A expressão alcança tal concentração semântica, isto é, contém tantos planos expressivos,
que poderia se definir como polifocal. O que vale dizer: os muitos planos formam uma metáfora inusitada.
MORTE E VIDA SEVERINA (Chico Buarque sobre poema de João Cabral de Melo Neto)
"Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida"
Canção que nos ajuda a sustentar a resistência, aparentemente tão inútil, contra a ditadura de ontem e
a arbitrariedade que continua conosco. A luta do
poeta migra para o seu leitor.
A NOITE DO MEU BEM (Dolores Duran)
"Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vier"
Os versos são banais e o sentimentalismo bem barato porque repete formulações repetidas que tornam sua expressão gasta porque saturada. Mas, por
isso mesmo, a canção se destaca.
LUIZ COSTA LIMA é crítico literário e professor na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e na PUC-RJ.
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