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+(L)ivros
As máscaras de Calvino
Ensaios sobre literatura, humor e política mostram a multiplicidade do autor de
"O Cavaleiro Inexistente"
Calvino aponta sempre o "personagem-autor" que está atrás de toda obra
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LUCIA WATAGHIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Elegante, brilhante, discreto, informadíssimo, sempre diferente
e sempre igual, sempre agradável e "leve"
(a "leveza" é a primeira das
qualidades recomendadas para
a sobrevivência da literatura no
próximo milênio), Italo Calvino (1923-85) é hoje um dos autores de maior sucesso, quase
unânime, de crítica e de público, na Itália e no "mondo".
No Brasil, já foram publicados dezenas de títulos de ficção
e dois livros de ensaios do autor
italiano ("Por Que Ler os Clássicos" e "Seis Propostas para o
Próximo Milênio", ambos pela
Cia. das Letras).
Está sendo lançado, na ótima
tradução de Roberta Barni,
mais um livro de ensaios, "Assunto Encerrado", a primeira
coletânea a ser publicada
(1980) pelo autor. O título assinala o encerramento de uma
fase da vida de Calvino, que reconhece, com típico impulso
ordenador, o valor da distância,
que lhe permite reler seus ensaios fixados em seu lugar no
tempo e no espaço, em sua justa luz e perspectiva.
O livro oferece um quadro
extraordinariamente lúcido e
claro da cultura e da literatura
italianas do período e de suas
relações com a cultura europeia e global, com ensaios sobre o romance (de Pavese a Vittorini a Gadda, Moravia, Pasolini e outros), uma releitura de
"Os Noivos", de Alessandro
Manzoni [1785-1873], três estudos sobre Fourier, textos de
teoria e crítica e artigos sobre
temas vários, como a comicidade de Groucho Marx [1890-1977] ou os desenhos de Saul
Steinberg [1914-99], além de
dois ensaios militantes -de
grande peso no debate italiano
sobre a questão da língua- em
polêmica com [o escritor e cineasta Pier Paolo] Pasolini.
Apesar da grande variedade
dos assuntos -e à luz da sua inteira produção-, aparece agora
em perfeita evidência o fio vermelho que conduz (aqui e em
toda sua obra de narrador e ensaísta) as reflexões do escritor
lígure: sua preocupação central
é sua própria posição, seu próprio papel no sistema de comunicação literária e na indústria
cultural.
Personagem-autor
Por isso Calvino aponta
constantemente para o "personagem-autor" que está atrás de
toda obra, narrativa, poética,
ensaística: "A condição preliminar de qualquer obra literária é esta: a pessoa que escreve
tem de inventar aquele primeiro personagem que é o autor da
obra. [...] É sempre apenas uma
projeção de si mesmo que o autor põe em jogo na escritura, e
pode ser tanto a projeção de
uma parte verdadeira de si
mesmo como a projeção de um
eu fictício, de uma máscara."
E dedica-se portanto constantemente, e conscientemente, à construção (e à promoção
no mercado) da longa série dos
personagens-autores dos seus
próprios escritos.
Seu personagem-autor é
sempre lacônico: pelas mesmas
razões por que ele mesmo é lacônico. Em uma carta (1954),
Calvino defende seu laconismo, alegando que escreve "no
escritório, ao ritmo febril da
produção industrial que governa e molda até os nossos pensamentos" e mencionando outras
razões de gosto e de caráter
(porque é lígure; porque segue
assim a lição dos "seus" clássicos; porque falar de sua própria
"cara" e de sua própria "alma"
lhe parece "vão e indecoroso").
A primeira das razões citadas, além de explicar ao menos
em parte sua necessidade de
concisão e essencialidade, denuncia (mas note-se: de passagem) o grave mal-estar do autor, prisioneiro -como todos
os autores- do sistema de comunicação e de produção literária.
Para fugir desse mal-estar,
mas não desse sistema (retomo
aqui uma tese do polêmico livro
de Carla Benedetti "Pasolini
contro Calvino", Pasolini contra Calvino), seu personagem-autor transforma-se incessantemente: o autor é obcecado
pela necessidade de variação
contínua.
Labirintos
Aparentemente escondido
atrás da superfície geométrica
das infinitas combinações ou
nos labirintos das inumeráveis
possibilidades narrativas, Calvino constrói máscaras sempre
diferentes: do intelectual engajado que toma a palavra no
"Miolo do Leão" ao especialista
em cibernética de "Cibernética
e Fantasmas" (é a fase em que o
escritor italiano ingressa no
grupo do Oulipo [Ouvroir de
Littérature Potentielle, Oficina
de Literatura Potencial], ao lado do amigo Raymond Queneau, de Georges Perec e outros, literatos e matemáticos; é
a fase de seu máximo interesse
por sistemas e códigos e da afirmação da literatura como "ars
combinatoria") ao colecionista
(este último é o personagem-autor da coletânea de ensaios
"Collezione di Sabbia", Coleção
de Areia, de 1984).
Mas o jogo das permutações
é finito, e -esta é a outra face
da perfeita superfície da obra
de Calvino, de sua clássica e admirável prosa- tudo permanece dentro dos limites estabelecidos.
Na perfeição da prosa de Calvino, na clássica geometria das
suas narrações, na sua clareza,
no seu rigor mental, na sua suspeita, demasiada sintonia com
o mercado, os leitores mais exigentes observam a ausência de
uma autêntica força de impacto, capaz de buscar uma saída
da prisão da indústria cultural.
No eterno sorriso de Calvino,
reconhecem uma tendência a
evadir a dura verdade (tendência italiana, como já observara
Leopardi) e a afirmação de uma
função consolatória e anestesiante (e não crítica) da sua
obra. E, colocando de lado o
perfeito Calvino, conjuram as
forças do que é imperfeito, impuro, informe, inacabado -a
última esperança de oposição
ao labirinto.
LUCIA WATAGHIN é professora de literatura
italiana na USP, organizadora de "Brasil e Itália
-Vanguardas" (ed. Ateliê), entre outros livros.
ASSUNTO ENCERRADO
Autor: Italo Calvino
Tradução: Roberta Barni
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/ 3707-3500).
Quanto: R$ 49,50 (392 págs.)
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