São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2001

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GÊISER DO MAL

O superpovoamento distingue nosso mundo daquele de nossos pais; todas as estatísticas o confirmam, mas fingimos ver uma simples questão de cifras que em nada modifica a essência da vida humana. Não queremos admitir que o homem perpetuamente rodeado de uma multidão não se assemelha mais a um Dom Quixote nem a um Fabrice del Dongo [protagonista de "A Cartuxa de Parma", romance de Stendhal] nem aos personagens de Proust. Nem a meus pais, que, outrora, podiam ainda flanar nas calçadas de mãos dadas. Hoje você desce do apartamento para ser imediatamente arrastado pela multidão que corre na rua, em todas as ruas, nas estradas e auto-estradas, "você vive esmagado no seio de uma multidão louca" e "sua própria história precisa abrir caminho por entre a massa" (Salman Rushdie, "O Último Suspiro do Mouro", Companhia das Letras). Mas o que é a multidão? Para mim, essa palavra está ligada ao imaginário socialista, primeiro em seu sentido positivo, a multidão que protesta, que faz uma revolução, festeja a vitória, depois no sentido negativo, multidão das casernas, multidão disciplinada, multidão posta em marcha. O homem que engrossa essa multidão tem poucas possibilidades épicas, poucas ocasiões de agir; seus pequenos gestos vigiados não têm nenhuma chance de pôr em movimento uma sequência de eventos encadeados: uma aventura. A multidão na qual se passam os romances de Rushdie tem um caráter estético diferente, talvez oposto; é uma multidão além de toda ordem, livre, assustadoramente livre, ativa, empreendedora, mafiosa, conspiradora, inventiva; nos romances de Rushdie, tudo é imprevisto, burlesco ou maluco; encontramo-nos numa perpétua hipérbole épica, que, do ponto de vista da estética flaubertiana ou proustiana ou musiliana, parece transgredir as normas e o bom gosto. Mas essa fabulação hipertrofiada não é um artifício, ela reflete o caráter modificado da vida. À loucura do superpovoamento o autor acrescenta a ebriedade de sua própria imaginação, ébria da realidade mesma, que é sua floração, sua exaltação, seu canto.

Extraordinária beleza épica
Na multidão de Rushdie cada um salvaguarda sua liberdade -e mesmo os policiais não obedecem a seus superiores, mas ao dinheiro dos mafiosos que os manipulam com uma irresponsabilidade jovial. E eis o escândalo: os personagens de Rushdie são originais, encantadores, com uma vida rica, irradiando uma extraordinária beleza épica, embora não nos demos conta de que esse ofuscante gêiser épico é o gêiser do mal.
Aurora, a mãe do protagonista, é o personagem mais forte do livro, com uma vida interior única e um grande talento de artista; entretanto ela ingressa na história do romance pela porta do crime: garota de 14 anos, ela se insinua numa capela onde vê sua avó, que reza ajoelhada diante do altar e que, subitamente, vem ao chão, fulminada por um ataque cardíaco.
Aurora deveria chamar por socorro, mas, como detesta a avó, aproxima-se, observa-a e não se mexe; a velha não pode mais falar, de um olhar amaldiçoador ela fixa somente sua neta, a terrível imobilidade dela que acabará por matá-la. Uma cena magnífica, tão magistralmente narrada que o mal aparece tal como raramente podemos vê-lo: em toda a sua beleza.
Cumpre admitir o inaceitável: essas flores do mal são flores da liberdade. Quando o mouro Zogdiby, lá pelo final do romance, parte para a Espanha, o caldeirão do mundo superpovoado arrebenta; na fumaceira e nas chamas, Bombaim sob ele começa a viver seu apocalipse; e não são fanatismos que se defrontam; nem a pesada sombra do gulag que se abate sobre a cidade; é a alegre liberdade de criar riquezas e de destruí-las, a liberdade de organizar bandos de assassinos e massacrar os inimigos, a liberdade de fazer explodir as casas e de aniquilar as cidades, é a liberdade com milhares de mãos sangrentas que está ateando fogo ao mundo.
Nada disso é uma profecia; os romancistas não são profetas; o apocalipse de "O Último Suspiro do Mouro" é o nosso presente, uma de suas possibilidades (ele nos espreita de seu abrigo, observa-nos, está lá).



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