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BRASIL 500 D.C.
Comércio de drogas no Brasil indica um estado de coisas próximo à demência
Mortes a crédito
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
Há um mês, aproximadamente,
12 pessoas foram mortas na zona
central do Rio, em uma disputa
pelo comando do tráfico de drogas. No mesmo dia, as agências de
notícias informavam que 14 sérvios haviam sido assassinados em
Kosovo. A morte dos 14 sérvios
fez os dirigentes europeus, encarregados da tutela política do Kosovo, franzirem a testa e pedirem
providências imediatas. A morte
dos 12 favelados cariocas fez o comandante-geral da Polícia Militar
comentar que a polícia havia sido
previamente informada da troca
de tiros, mas nada pudera fazer,
pois os bandidos haviam "realizado um apagão" e o morro estava
às escuras.
Dois pesos, duas medidas. Os
conflitos étnicos que ameaçam a
segurança econômica e política
da Europa rica merecem preocupação dos chefes de Estado das
opulentas nações ocidentais; a
carnificina diária entre pequenos
bandidos da "periferia do Ocidente" nem sequer tiram o sono
dos agentes da segurança pública.
Não se trata de acusar a polícia
de corrupção ou de não cumprir
seu dever. O problema é policial,
mas não é só, nem principalmente, policial. O que esse horror desperta é algo mais grave. Ele é sinal
de que o sentido do valor da vida,
entre nós, vem mudando numa
velocidade vertiginosa.
Aprendemos, ao longo do tempo, a dizer que a vida deve ser respeitada, por se tratar de "um bem
em si". Poucos, no entanto, aceitariam a idéia de que a vida mantida a qualquer preço seja, de fato,
um Bem. Viver sem poder aspirar, mesmo de modo remoto, ao
bem-estar, à felicidade ou à liberdade; viver sujeito à humilhação,
à indignidade ou à miséria físico-moral; subsistir sem consciência
de estar vivo, como em casos de
lesões físicas gravemente incapacitantes, tudo isso acaba por retirar da vida seu caráter de bem
precioso. Aprendemos a respeitar
a vida, desde que a "vida tenha
sentido".
Assim, poucas desditas são tão
cruéis e poucos crimes tão pavorosos quanto perder ou ser privado da possibilidade de dar sentido
à própria vida. Obras de ficção como "A Escolha de Sofia", de William Styron, "Johnny Vai à Guerra", de Dalton Trumbo, "É Isto
um Homem?", de Primo Levi, ou
o magistral "Coração nas Trevas",
de Joseph Conrad, mostraram o
que significa sobreviver sem saber
"para quê". Estamos, bem ou mal,
equipados para lidar com dores e
prazeres. Ambos cabem em nossos corpos e mentes. Mas o absurdo, a gratuidade do infortúnio, a
impossibilidade de entender "por
que vivemos" paralisam o centro
vital do Eu e desmontam o sentimento do valor da existência de
forma, muitas vezes, irreversível.
O comércio de drogas ilegais no
Brasil é o sintoma escandaloso de
um estado de coisas que, se não
alcança os piores níveis da estupidez humana, se aproxima da demência. Os consumidores de cocaína, em geral, pertencem a um
grupo social que não pode mais
passar sem o êxtase das drogas,
pois a vida que levam chegou quase ao ponto zero de futilidade sociocultural; os fornecedores de
cocaína, por sua vez, não podem
dispensar as brutalidades e assassinatos cotidianos, pois foram levados a desconhecer o que é viver
em comunidade ou coletividade.
Os primeiros se apegam à vida,
prolongando "os prazeres e os
dias", em um ritual regado a sangue de jovens pobres, tornados
"bandidos traficantes"; os segundos consomem suas breves existências a serviço do desvario de
quem perdeu a razão de viver. Os
ricos empenham as vidas, e os pobres, as mortes. Todos conhecemos essas mortes a crédito com
data marcada de cobrança; todos
fingimos ignorar essa odiosa barganha, na qual as vítimas, mesmo
depois de mortas, serão os criminosos dos noticiários policiais.
Nunca a lenda do "vampiro
aristocrata", que nutre o tédio
eterno e agonizante sugando a vida alheia, se aproximou tanto do
real. Em um lado da cidade, a minoria mimada, de noite em noite,
de cheque em cheque, erra insaciável "à procura de Mr. Goodbar"; no outro lado, o "depósito"
dos que nada são, o estoque de
corpos à espera do aceno para o
abatedouro, onde serão torturados, mutilados, chacinados e jogados, em "noites escuras", nas
valas imundas e montes de lixos.
Esses oferecem seus 13, 14, 15 ou
20 anos de idade aos risos estampados nas revistas chiques e nos
"carnets mondains". Quem duvidar, veja o belo e sensível documentário de João Salles, Walter
Salles Jr. e Katia Lundt sobre o tráfico de drogas nos morros do Rio
de Janeiro.
Será que, de fato, alguém acredita que o "problema do tráfico de
cocaína" está na Colômbia, nos
morros cariocas, nas favelas paulistas ou na corrupção policial?
Será que alguém já considerou,
seriamente, os motivos que levam
adultos e adolescentes brasileiros
a se tornarem dependentes do
consumo de cocaína? Será que jamais nos perguntamos se "o problema da cocaína" se instalou no
lugar de "problemas" que esquecemos, ao perder o interesse por
tudo além da fronteira de nosso
bem-estar físico ou sentimental?
Moralismo piegas, dirão os porta-vozes da cultura do cinismo,
esses mesmos que tentam ridicularizar qualquer anseio ou iniciativa em prol de um mundo mais
justo. Mas contra fatos não há argumentos. Não existe "problema
de cocaína" no Butão, assim como não existiu "problema de cocaína" no Ocidente, enquanto estivemos preocupados com o futuro, com a história e com a construção de uma vida mais digna
para todos.
Desejo de cocaína não está inscrito nos genes nem é uma tendência latente do psiquismo,
pronta a explodir quando aparece
o papelote e as carteiras polpudas
estão à mão. Desejo de cocaína
surge quando o trabalho avilta
quem o faz, não obstante a gorda
remuneração; quando ser "careta" é uma vergonha, já que o vizinho famoso, moderno e liberado
é quem diz quais os hábitos de
quem porta o "touch of class";
quando a vida, sob o peso da
competição e da ganância, começa a estalar; quando o medo de
não estar entre os "winners" faz
da excitação química o substituto
caricato do sucesso invejado;
quando, enfim, se aprendeu que o
"traficantezinho" sujo, feio, mirrado e desdentado é, no máximo,
um candidato a R$ 100 ou R$ 200
por mês, logo, uma vida que interessa tanto quanto a das pulgas da
Groenlândia.
Como disse Arendt, "onde os
melhores perdem a esperança, e
os piores, o temor", poucas saídas
restam, entre elas a cocaína. Sentido da vida não se improvisa; valor
da vida não se compra pronto. Ou
voltamos a crer que somos mais
do que nossos pequenos prazeres
ou alimentamos nossa moral
vampiresca, até que um raio de
sol venha, finalmente, dar cabo de
vidas ocas que amesquinham a
grandeza que a só a vida de amor
ao mundo pode exibir.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor"
(Rocco). Ele escreve mensalmente na seção
"Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail0jfreirecosta@alternex.com.br
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