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ARTES PLÁSTICAS
O olho e a fenda
VALÊNCIO XAVIER
especial para a Folha
Quatrocentos anos do nascimento em Sevilha, Espanha, de
Diego Rodriguez de Silva y Velásquez, provavelmente em 5 de junho; 339 anos de sua morte. Há
343 anos Velásquez pintou o quadro "Las Meninas". Há poucos
meses, goteiras no Museu do Prado ameaçaram estragar as pinturas de Velásquez. Há 343 anos
persiste o mistério "Las Meninas". A palavra meninas não tem
mistério nenhum: são as aias de
companhia que aparecem ladeando a infanta Margarita no quadro
de Velásquez. A palavra portuguesa meninas, e não a espanhola
"niñas", como seria o certo, também não tem mistério algum. O
quadro foi assim nominado por
Pedro Madrazo, nobre da corte
do rei Felipe 4º; não se deve esquecer que Velásquez era oriundo
de uma família de fidalgos portugueses vindos do Porto para se estabelecer em Sevilha.
"A vida de Velásquez é das mais
simples que alguém possa levar e
uma das mais enigmáticas e mais
difíceis de entender que alguém
possa encarar", essas palavras do
filósofo espanhol Ortega y Gasset
(1883-1955) também podem ser
transportadas à pintura de Velásquez: aparentemente simples, porém das mais enigmáticas, caso
alguém queira descobrir sua essência.
Em 1610, Velásquez, com 11
anos, começa a estudar com Francisco Pacheco, pintor medíocre,
mas de grande penetração na sociedade, autor de uma "Arte da
Pintura". Aos 19 anos, já casado
com a filha de Pacheco, Velásquez
vive de encomendas de pinturas e
de aulas que dá em seu ateliê.
Por interferência de seu sogro e
de familiares, Velásquez faz um
retrato do rei Felipe 4º em 1623 e
passa a ser pintor oficial da corte.
Vai conhecer (e ficar amigo de) o
pintor Rubens, que virá duas vezes a Madri e lhe dará conselhos
para aprimorar sua pintura. Velásquez irá por duas vezes à Itália
para ampliar seus conhecimentos
e para comprar obras de arte para
o rei. Em 1652, será nomeado ao
cargo de Grande Marechal do Palácio e levará uma vida tranquila
até sua morte, em 1660.
Velásquez deixará uma obra em
que a ordem, a separação/junção
das cores, a distribuição do tempo
no espaço do quadro e, principalmente, o evitar o trágico nos temas escolhidos (ao contrário de
Goya, criador de tragédias nas
suas pinturas e gravuras) traçam a
beleza e o calmo encanto de suas
obras. O que levou Ortega y Gasset a dizer: "Da mesma maneira
que Descartes reduz o pensamento à racionalidade, Velásquez reduz a pintura à visualidade".
Jacques Lacan fez um seminário
em 1965/66 -"O Objeto da Psicanálise", nunca publicado em livro- em que deu o ponto de partida para suas teorias sobre o quadro de Velásquez. Michel Foucault o frequentou algumas vezes.
Em "Las Meninas", vista por Lacan, o que o espelho reflete é a
morte. A imagem no espelho do
rei Felipe 4º e a rainha Mariana está no lugar do espectador e reflete
o olhar morto: o olhar do espelho.
Assim Lacan quer dizer que o secularizável não está no campo do
espelho, e o olhar, provocado pela
fenda, vivifica o espectador.
Para Lacan o olhar surge quando surge a marca da castração.
Em "Las Meninas" a marca da
castração está representada na infanta Margarita, com 5 anos de
idade, já vestida como a rainha
que será no futuro -o futuro no
presente criando um outro tempo/espaço. O rico vestido oculta
seu órgão genital, a "fenda" na
linguagem de Lacan. Nesse instante é que surge o olhar para
ocultar a fenda -a referência de
Lacan nesse caso é uma menina,
mas o homem não está por fora,
nele é o terror da castração que se
organiza diferentemente da mulher.
A tese de Lacan é que o olhar
não está presente no nosso campo
perceptivo, e a função desse quadro de Velásquez seria a de provocar o surgimento do olhar -ele
surge para guardar a fenda. A
obra de arte só se "ver-e-fica"
quando o quadro adquire essa
função de provocar o olhar, ausente em nossa percepção.
Para as pessoas como eu, despreparadas para compreender a
abrangência do pensamento de
Lacan, é bom lembrar que ele se
expressa em francês. A palavra
francesa para o olhar é "regard".
O verbo olhar é "regarder"; note-se que "regarder" traz um jogo de
espelho entre as letras do começo
e do final (re/er). "Garder" é guardar, ocultar. "Regarder" também
pode ser tomado como guardar/
ocultar outra vez. É preciso pensar se, ao armar seu pensamento,
Lacan não se utiliza de um dúbio
jogo de palavras, do qual precisamos participar para podermos
ganhar a rodada ou, pelo menos,
entrar no jogo.
Para Foucault "Las Meninas"
exemplifica a passagem à modernidade. Lacan, Foucault e praticamente todos os estudiosos de "Las
Meninas" concordam que o quadro é a visão de um grande espelho postado à sua frente: um reflexo, a imagem de si mesmo espelhada.
Isso era lugar-comum quando
se referiam ao quadro de Velásquez; essa teoria reinava e era
aceita por todos, até surgir Philippe Comar, autor de "La Perspective en Jeu - Les Dessous de l'Image" (A Perspectiva em Jogo - Os
Avessos da Imagem, Gallimard,
1992), na verdade uma história do
olhar, isto é, de "toda nossa concepção do mundo que transparece". Comar descarta o espelho e
afirma que em "Las Meninas" a
perspectiva se duplica aos olhos
do espectador numa construção
aparente que não coincide exatamente com a primeira. Resumindo: Velásquez construiu o plano
do quadro como uma escada. Antes de Comar, o arquiteto espanhol Luis Moya quase chega à
mesma conclusão ao afirmar que
a construção do quadro é toda um
"castelinho de retângulos". Mas
Moya não soube olhar esses retângulos como degraus.
Para provar sua teoria, Comar
construiu uma saleta onde a perspectiva se duplica em dois níveis,
criando o efeito escada, como Velásquez usou. Essa saleta se encontra no Museu das Ciências e
da Indústria de La Vilette (Paris),
do qual Comar é diretor. Foucault
foi ver e acabou concordando
que sua teoria do espelho estava
errada. Comar dizia que Foucault
vira o quadro, mas olhar, não
olhara. Exemplificando o desprezo dele pelo quadro, dizia que em
"As Palavras e as Coisas" -livro
em que Foucault analisa "Las
Meninas"-, a reprodução do
quadro está em preto e branco,
tamanho pequeno e na última
página -a mesma coisa na edição brasileira (a portuguesa nem
sequer traz a reprodução).
O primeiro degrau de "Las Meninas", o primeiro olhar, é ao rosto da infanta Margarita. O leitor
pode pegar uma régua e conferir
que o centro do quadro, reproduzido nesta página, não é o rostinho da infanta -por que então
olhamos para ele em primeiro lugar? Porque é o primeiro degrau.
Comar não menciona isso, mas
vários quadros de Velásquez seguem essa construção. Em "A
Rendição de Breda" (1634-1635),
o olhar vê no alto do morro, em
primeiro plano, a cerimônia da
rendição e desce pela encosta, caminha pela planície abaixo e sobe
pelos degraus das nuvens do céu.
E pode tomar o sentido inverso:
descer pela escada das nuvens,
seguir pela planície e subir o
monte até chegar ao alto, onde há
a cena da rendição. Em "As Fiandeiras" (1657-1660), o primeiro
degrau é o piso onde estão as moças a fiar, o segundo é o palquinho, e o terceiro é a parede atrás
dele.
"A Família do Pintor" (s/d), de
Masa, genro e aluno de Velásquez que se fixa nas netinhas de
seu professor e sogro -e orientador da feitura do quadro-,
tem a mesma composição de
"Las Meninas". Bem, tudo isso
são detalhes técnicos, teorias
comprovadas ou não, talvez conjeturas, pensamentos perdidos...
Mas há perguntas não respondidas. A quem olha Velásquez, e o
que expressa seu rosto? O que vemos em "Las Meninas"? O que
Velásquez quis dizer com esse
quadro? O que pensam os personagens verídicos aprisionados na
tela? E o que estamos pensando
nós, espectadores? Eu não tenho
respostas? E você, leitor, tem?
Valêncio Xavier é escritor paulista, autor
de "O Mez da Gripe" (Companhia das Letras)
e "Meu 7º Dia" (ed. Ciência do Acidente).
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