São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

O olho e a fenda

VALÊNCIO XAVIER
especial para a Folha

Quatrocentos anos do nascimento em Sevilha, Espanha, de Diego Rodriguez de Silva y Velásquez, provavelmente em 5 de junho; 339 anos de sua morte. Há 343 anos Velásquez pintou o quadro "Las Meninas". Há poucos meses, goteiras no Museu do Prado ameaçaram estragar as pinturas de Velásquez. Há 343 anos persiste o mistério "Las Meninas". A palavra meninas não tem mistério nenhum: são as aias de companhia que aparecem ladeando a infanta Margarita no quadro de Velásquez. A palavra portuguesa meninas, e não a espanhola "niñas", como seria o certo, também não tem mistério algum. O quadro foi assim nominado por Pedro Madrazo, nobre da corte do rei Felipe 4º; não se deve esquecer que Velásquez era oriundo de uma família de fidalgos portugueses vindos do Porto para se estabelecer em Sevilha.
"A vida de Velásquez é das mais simples que alguém possa levar e uma das mais enigmáticas e mais difíceis de entender que alguém possa encarar", essas palavras do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) também podem ser transportadas à pintura de Velásquez: aparentemente simples, porém das mais enigmáticas, caso alguém queira descobrir sua essência.
Em 1610, Velásquez, com 11 anos, começa a estudar com Francisco Pacheco, pintor medíocre, mas de grande penetração na sociedade, autor de uma "Arte da Pintura". Aos 19 anos, já casado com a filha de Pacheco, Velásquez vive de encomendas de pinturas e de aulas que dá em seu ateliê.
Por interferência de seu sogro e de familiares, Velásquez faz um retrato do rei Felipe 4º em 1623 e passa a ser pintor oficial da corte. Vai conhecer (e ficar amigo de) o pintor Rubens, que virá duas vezes a Madri e lhe dará conselhos para aprimorar sua pintura. Velásquez irá por duas vezes à Itália para ampliar seus conhecimentos e para comprar obras de arte para o rei. Em 1652, será nomeado ao cargo de Grande Marechal do Palácio e levará uma vida tranquila até sua morte, em 1660.
Velásquez deixará uma obra em que a ordem, a separação/junção das cores, a distribuição do tempo no espaço do quadro e, principalmente, o evitar o trágico nos temas escolhidos (ao contrário de Goya, criador de tragédias nas suas pinturas e gravuras) traçam a beleza e o calmo encanto de suas obras. O que levou Ortega y Gasset a dizer: "Da mesma maneira que Descartes reduz o pensamento à racionalidade, Velásquez reduz a pintura à visualidade".
Jacques Lacan fez um seminário em 1965/66 -"O Objeto da Psicanálise", nunca publicado em livro- em que deu o ponto de partida para suas teorias sobre o quadro de Velásquez. Michel Foucault o frequentou algumas vezes. Em "Las Meninas", vista por Lacan, o que o espelho reflete é a morte. A imagem no espelho do rei Felipe 4º e a rainha Mariana está no lugar do espectador e reflete o olhar morto: o olhar do espelho. Assim Lacan quer dizer que o secularizável não está no campo do espelho, e o olhar, provocado pela fenda, vivifica o espectador.
Para Lacan o olhar surge quando surge a marca da castração. Em "Las Meninas" a marca da castração está representada na infanta Margarita, com 5 anos de idade, já vestida como a rainha que será no futuro -o futuro no presente criando um outro tempo/espaço. O rico vestido oculta seu órgão genital, a "fenda" na linguagem de Lacan. Nesse instante é que surge o olhar para ocultar a fenda -a referência de Lacan nesse caso é uma menina, mas o homem não está por fora, nele é o terror da castração que se organiza diferentemente da mulher.
A tese de Lacan é que o olhar não está presente no nosso campo perceptivo, e a função desse quadro de Velásquez seria a de provocar o surgimento do olhar -ele surge para guardar a fenda. A obra de arte só se "ver-e-fica" quando o quadro adquire essa função de provocar o olhar, ausente em nossa percepção.
Para as pessoas como eu, despreparadas para compreender a abrangência do pensamento de Lacan, é bom lembrar que ele se expressa em francês. A palavra francesa para o olhar é "regard". O verbo olhar é "regarder"; note-se que "regarder" traz um jogo de espelho entre as letras do começo e do final (re/er). "Garder" é guardar, ocultar. "Regarder" também pode ser tomado como guardar/ ocultar outra vez. É preciso pensar se, ao armar seu pensamento, Lacan não se utiliza de um dúbio jogo de palavras, do qual precisamos participar para podermos ganhar a rodada ou, pelo menos, entrar no jogo.
Para Foucault "Las Meninas" exemplifica a passagem à modernidade. Lacan, Foucault e praticamente todos os estudiosos de "Las Meninas" concordam que o quadro é a visão de um grande espelho postado à sua frente: um reflexo, a imagem de si mesmo espelhada.
Isso era lugar-comum quando se referiam ao quadro de Velásquez; essa teoria reinava e era aceita por todos, até surgir Philippe Comar, autor de "La Perspective en Jeu - Les Dessous de l'Image" (A Perspectiva em Jogo - Os Avessos da Imagem, Gallimard, 1992), na verdade uma história do olhar, isto é, de "toda nossa concepção do mundo que transparece". Comar descarta o espelho e afirma que em "Las Meninas" a perspectiva se duplica aos olhos do espectador numa construção aparente que não coincide exatamente com a primeira. Resumindo: Velásquez construiu o plano do quadro como uma escada. Antes de Comar, o arquiteto espanhol Luis Moya quase chega à mesma conclusão ao afirmar que a construção do quadro é toda um "castelinho de retângulos". Mas Moya não soube olhar esses retângulos como degraus.
Para provar sua teoria, Comar construiu uma saleta onde a perspectiva se duplica em dois níveis, criando o efeito escada, como Velásquez usou. Essa saleta se encontra no Museu das Ciências e da Indústria de La Vilette (Paris), do qual Comar é diretor. Foucault foi ver e acabou concordando que sua teoria do espelho estava errada. Comar dizia que Foucault vira o quadro, mas olhar, não olhara. Exemplificando o desprezo dele pelo quadro, dizia que em "As Palavras e as Coisas" -livro em que Foucault analisa "Las Meninas"-, a reprodução do quadro está em preto e branco, tamanho pequeno e na última página -a mesma coisa na edição brasileira (a portuguesa nem sequer traz a reprodução).
O primeiro degrau de "Las Meninas", o primeiro olhar, é ao rosto da infanta Margarita. O leitor pode pegar uma régua e conferir que o centro do quadro, reproduzido nesta página, não é o rostinho da infanta -por que então olhamos para ele em primeiro lugar? Porque é o primeiro degrau.
Comar não menciona isso, mas vários quadros de Velásquez seguem essa construção. Em "A Rendição de Breda" (1634-1635), o olhar vê no alto do morro, em primeiro plano, a cerimônia da rendição e desce pela encosta, caminha pela planície abaixo e sobe pelos degraus das nuvens do céu. E pode tomar o sentido inverso: descer pela escada das nuvens, seguir pela planície e subir o monte até chegar ao alto, onde há a cena da rendição. Em "As Fiandeiras" (1657-1660), o primeiro degrau é o piso onde estão as moças a fiar, o segundo é o palquinho, e o terceiro é a parede atrás dele.
"A Família do Pintor" (s/d), de Masa, genro e aluno de Velásquez que se fixa nas netinhas de seu professor e sogro -e orientador da feitura do quadro-, tem a mesma composição de "Las Meninas". Bem, tudo isso são detalhes técnicos, teorias comprovadas ou não, talvez conjeturas, pensamentos perdidos... Mas há perguntas não respondidas. A quem olha Velásquez, e o que expressa seu rosto? O que vemos em "Las Meninas"? O que Velásquez quis dizer com esse quadro? O que pensam os personagens verídicos aprisionados na tela? E o que estamos pensando nós, espectadores? Eu não tenho respostas? E você, leitor, tem?


Valêncio Xavier é escritor paulista, autor de "O Mez da Gripe" (Companhia das Letras) e "Meu 7º Dia" (ed. Ciência do Acidente).


Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - Jurandir Freire Costa: Mortes a crédito
Próximo Texto: Laymert Garcia dos Santos: O Natal diabólico de Bill e Alice
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.