São Paulo, Domingo, 05 de Setembro de 1999
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Diretor americano retoma a interpretação social do erotismo e do inconsciente feita pelo autor austríaco
A arte política de Schnitzler e Kubrick

Divulgação
Tom Cruise (o médico Bill Harford) e Nicole Kidman (Alice Harford) em cena de "De Olhos Bem Fechados", de Kubrick


NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

"De Olhos Bem Fechados" é um testamento à altura de Stanley Kubrick. Uma vez mais é um filme sobre fantasmas. É também uma obra sobre poder e violência, dois de seus temas mais caros. E, é claro, no centro de tudo estão o sexo e suas fantasias. Uma boa dose de cada uma das principais questões que acompanharam sua carreira desde o início, tratadas aqui com o recobrimento de ironia que é a marca mais autêntica dos grandes mestres.
A história, ele foi buscar em outro artista genial, o austríaco Arthur Schnitzler. Trata-se da sua "Traumnovelle", escrita e publicada em 1926, mas que se passa na Viena da virada do século. O encontro desses dois notáveis não poderia ser mais fértil, assim como o cotejamento com os anos 20 da Europa pós-Primeira Guerra, que estabeleceu a gênese da "era dos extremos", oferece um contraponto oportuno para se descortinar o que nos espera no nascimento do mundo pós-industrial com o novo milênio.
Arthur era ele próprio um médico, filho do mais famoso laringologista de Viena, o célebre doutor Johannes Schnitzler, conselheiro dos cantores e artistas de teatro da capital do Império Austro-húngaro. Embora o moço fosse desde cedo dado às artes, o pai lhe impingiu a carreira médica.
Treinado no ofício paterno, ele entretanto voltaria seus interesses para a psiquiatria, cumprindo uma carreira em tudo paralela a de seu conterrâneo e contemporâneo Sigmund Freud, estudando inclusive com os mesmos mestres, Meynert e depois Bernheim. Sintomaticamente, porém, enquanto a tese de Freud foi um estudo sobre a afasia, a sua foi um trabalho sobre a afonia, muito embora em ambos predominassem pacientes femininos.
Mas foi como escritor e dramaturgo que Arthur Schnitzler deu plena configuração à sua genialidade. Penetrando fundo pelo viés psicológico, sua obra punha a nu a inconsistência entre o mundo público e institucional da sociedade imperial e sua mórbida inclinação para o crime e a perversão no âmbito da vida privada e dos desvãos mais soturnos do subconsciente. Por trás dos bailes de gala e das valsas dos salões rococós da capital, latejavam o anti-semitismo, o impulso assassino, o pendor de abolir todas as regras e dispor de todos os corpos, anunciados na Primeira Guerra e oficializados na anexação ao Reich.
Que um dos nós decisivos dessa complexa equação histórica e política fosse centrado na sexualidade e nos fantasmas atormentados que ela projeta, foi a ilação mais cristalina e lapidada da obra de Schnitzler. Aqui o filho vingou o pai. Sua obra se tornou temida e fonte de escândalo. Quando Freud assistiu à apresentação de sua peça "Paracelso", em 1899, comentou com um amigo: "É espantoso que um tal autor conheça essas coisas!". Mais do que apenas surpreso, o pai da psicanálise ficou amedrontado com a arte fina e cortante de Schnitzler. Depois de longa relutância em ler ou assistir a qualquer criação do dramaturgo, Freud enfim decidiu, em 1922, se abrir com ele numa longa carta carregada de emoção e confidência:
"Vou lhe fazer uma confissão que você terá a bondade de guardar em respeito a mim, jamais a compartilhando com ninguém, nem mesmo com algum estrangeiro... Creio que o evitei por um tipo de medo de me encontrar com meu duplo. Mergulhando em suas esplêndidas criações, sempre acreditei encontrar nelas, sob a aparência poética, as hipóteses, os interesses e os resultados que sabia serem meus... Sua sensibilidade às verdades do inconsciente, da natureza pulsional do homem, suas ponderações sobre a polaridade do amor e da morte, tudo isso despertou em mim um estranho sentimento de familiaridade...".
Havia entretanto uma nítida distinção entre os dois, além do fato de um se exprimir na linguagem científica e o outro, na artística. Ela era representada pela ênfase que Freud punha sobre a gênese das formações inconscientes, como estando centradas na história do indivíduo, seus incidentes traumáticos e nexos familiares, enquanto para Schnitzler o núcleo do problema se concentrava nas hierarquias e quadros de valores sociais, introjetados pelos indivíduos. Para Freud a resposta aos problemas era clínica, daí a psicanálise. Para Schnitzler ela era política, daí a arte.
É nesse ponto que a obra de Kubrick sintoniza -e se intersecciona com- a do grande mestre austríaco. O cineasta norte-americano sempre foi uma espécie de estraga-festa, escapando pela contramão do grande festim hollywoodiano, no qual se celebra com pompa e circunstância a publicidade, o consumo, o poder, a fama e os dogmas vigentes. E, se Schnitzler foi expulso do quadro de oficiais do Exército austríaco por sua sátira implacável ao militarismo, também Kubrick foi censurado e perseguido pelo establishment militar da Guerra Fria, depois do lancinante "Glória Feita de Sangue" (1957) e da reincidência com o "Dr. Fantástico" (1964). O nexo entre história, sociedade, sexo e poder ficou por conta do não menos controvertido "Laranja Mecânica" (1971), que entrecruza temas trabalhados em "Spartacus" (1960), "Lolita" (1962), "Barry Lyndon" (1975) e "Nascido Para Matar" (1987). Créditos portanto não lhe faltam para visitar Schnitzler e se sentir em casa.
O dramaturgo vienense encenou praticamente toda sua obra na própria capital do Império. Passando pela grande reforma urbana que a transformou numa das metrópoles modelo da belle époque, Viena era o cenário ideal para o desnudamento de suas peças. Kubrick em sua encenação da "Traumnovelle" resolveu estabelecer a ação na Nova York contemporânea. Não foi por certo uma escolha casual. A megalópole norte-americana conjuga todos os elementos para compor um quadro emblemático da sociedade e dos valores dominantes em escala mundial.
Um único incidente desencadeia toda a trama: o grande baile pré-natalino na mansão de Victor Ziegler (Sydney Pollack). O dr. William (Tom Cruise) e sua mulher Alice (Nicole Kidman) são convidados apenas pela circunstância de ele ser o médico do anfitrião. Eles não pertencem àquele meio social, se sentem inadequados e não conhecem ninguém. Em meio à festa são alvo de investidas sedutoras por diferentes convivas, o que no retorno lhes desperta ardores sensuais de perturbadora intensidade. Um cigarro de maconha suscita em Alice a confissão de uma paixão visceral e não correspondida, algum tempo atrás -e que ela não consegue esquecer. Atormentado pela revelação e pelos fantasmas que ela lhe libera, o dr. William se envolve numa sequência de aventuras misteriosas, tentando aplacar o apelo dos instintos, a qual culmina num assassinato.
A narrativa de Schnitzler preserva um tom ambíguo, cheio de referências alegóricas, que mantém a história suspensa entre o sonho e a realidade. No caso de Kubrick ele ressalta a substância concreta dos fatos e até mesmo das fantasias. Sua câmara expõe cruamente os corpos, a ponto de se sentir a textura das peles e de se acompanhar os mais prosaicos atos de higiene pessoal. Aliás, é dessa ética da visibilidade dos corpos, das aparências modeladas por códigos da indústria da estética, da publicidade, da moda e da superexposição nas redes de comunicação que o filme trata.
O que no universo artístico de Schnitzler aparecia como uma simbologia de classe, status e hierarquias, em Kubrick se revela como erotismo da imagem modelada, midiática, glamourosa, como é o caso da dupla de atores protagonistas. O filme sugere, nesse sentido, um contraponto irônico ao "Blow Up" de Antonioni.
O fato de Kubrick ter morrido antes da conclusão dos trabalhos de edição -ele morreu a 7 de março e o filme tinha lançamento previsto só para julho- certamente cobrou o seu preço no resultado final. Para um perfeccionista obsessivo como ele, sentem-se inconsistências de montagem, ritmo, timing, além de imagens e diálogos redundantes. A música tem mais um efeito enfático do que alegórico, como era de seu estilo. Ao que parece, alguém andou pondo uma mão pesada na finalização. Mas nada disso rouba o brilho dessa interlocução arguta entre os dois mestres. Ela revela uma galeria sombria que conecta as profundezas de nossa mente ao olho do furacão no centro da metrópole. Se você quiser encontrá-la, basta liberar alguns de seus fantasmas interiores e sair a segui-lo pelos becos noturnos. E, ah!, não esqueça de manter os olhos bem fechados.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras), entre outros.



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