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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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ENCENAÇÃO HIPER-REALISTA COM MEMBROS DO PCC EXIBIDA NO PROGRAMA "DOMINGO LEGAL" DO ÚLTIMO DIA 7 LEVA AO EXTREMO A IDÉIA DE "TELENOVELA DO REAL" E APONTA PARA A NECESSIDADE URGENTE DA REAPROPRIAÇÃO DA TV COMO BEM COLETIVO PÚBLICO

A sociedade contra a TV

Rochelle Costi - 31.jul.1995/Folha Imagem
Gugu Liberato apresenta o programa "Domingo Legal"


Ivana Bentes
especial para a Folha

Uma emissão televisiva local ou global tem hoje o poder de provocar uma comoção social. Medo, revolta, celebração e protesto que, em diferentes escalas, sinalizam para um difícil campo de batalha: a disputa pela reapropriação pública de um bem coletivo, a televisão, e a constituição de uma "política do simbólico". A encenação hiper-realista do "Domingo Legal", do SBT, com uma dupla de "atores-criminosos" usando óculos escuros de grife sobre um capuz negro, revólver 38 na mão e ameaçando de morte apresentadores de televisão, políticos e figuras públicas, expõe uma comunicação sinistra que é a base de vários outros programas de TV sensacionalistas que têm como estímulo a violência e o fait divers. Por que um serviço que é concessão pública abre espaço para criminosos (verdadeiros ou falsos) fazerem sua "comunicação" em rede nacional? Estamos diante de fragmentos de uma narrativa global excitante, como as imagens de Bin Laden, nos seus áudios e videotapes pré-gravados para a TV Al Jazeera, ou os vídeos com mensagens de Saddam Hussein, "provando" que está vivo e é perigoso. Duas "comunicações" até mesmo "brandas" se comparadas à violência da encenação brasileira. As últimas fitas de Bin Laden, sem informações de data ou local onde são feitas, têm mostrado um homem envelhecido andando em uma região montanhosa com um cajado ou um rifle como apoio. A questão, claro, é como essa "comunicação" é reinterpretada no imaginário global, pois, a cada fita divulgada, especialistas da CIA buscam decifrar mensagens secretas do líder da Al Qaeda e desdobrar sua aparição virtual em possíveis represálias, atentados e ondas de terror nos EUA e no mundo. Todo um discurso difuso, terrorismo de Estado, nas suas demandas por mais controle social e confrontos, reforçadas a cada nova emissão da rede árabe. Na emissão brasileira, a logística de Estado parece ausente, o terrorismo midiático tendo como objetivo a si mesmo: a audiência e a comercialização do imaginário do terror como alavancador de lucros imediatos. O que essas imagens vendem é o terror em estado puro (simbólico) e também um medo difuso comercializado com a admiração, fascínio e respeito por certos tipos sociais -violentos, agressivos, desviantes, perigosos e capazes de demonstrar poder. O criminoso erigido como modelo midiático global, capaz de produzir a comoção impotente da audiência: "Quando a gente pegar ele [Marcelo Rezende, apresentador da Rede TV!], vai ver só. É isso aqui, oh: [neste momento o falso criminoso do PCC exibe um revólver calibre 38 para a câmera] bala na cabeça, só na testa" (trecho da entrevista do "Domingo Legal"). É essa estratégia de captura da atenção do telespectador que vem sendo utilizada de forma abusiva pela televisão brasileira. Uma entrevista sensacionalista de outro assassino, no "Fantástico", da Globo, tempos atrás, transformava o "maníaco do parque" em "pop star" e criminoso paranormal e poderia suscitar os mesmos protestos atuais, mesmo em se tratando de um assassino real, francamente demonizado na edição para parecer ainda mais extravagante, terrível e "fantástico". Nessa combinação de ficção, jornalismo, fabulação e dramatização, os teleshows da realidade ("Cidade Alerta", "Repórter Cidadão", "Programa do Ratinho", "Domingo Legal", mas também o "Linha Direta", da Globo) fazem não apenas uma espécie de teatralização e espetacularização do terror e da insegurança social, mas reforçam discursos bélicos, o racismo, o denuncismo e toda sorte de pregação moralizante, que inclui frequentemente apologia à pena de morte, ao justiçamento e linchamento, aos preconceitos de toda ordem, num discurso obscurantista e populista. Funcionam ainda como telenovelas do real, com a dramatização do cotidiano da classe média baixa e pobre, mantendo uma relação direta e histórica com a estética do folhetim, da radionovela, do circo e do melodrama. Ironicamente, enquanto o jornalismo se vale da ficção para reforçar o terror social, são as telenovelas que, com todas as ambiguidades, intervêm nos costumes de forma didática, num "show" de cidadania e numa cruzada iluminista que esclarece sobre drogas, homossexualismo, violência doméstica, ecologia, armas, preconceito racial, numa eficiente reforma dos costumes que pauta o Congresso (a campanha do desarmamento em "Mulheres Apaixonadas", repercutindo contra o lobby da indústria de armas) e chega até os movimentos sociais. Nos dois casos, o show de ética e cidadania ou o terrorismo de mídia, o que parece estar em questão é o imediatismo do espetáculo e no máximo a satisfação individual, mais que uma política do comum, ampla, constituinte e democratizante. A idéia de uma cidadania pela mídia -com prestação de serviços, informações de interesse coletivo, formação de "redes" de auxílio material, psicológico, emocional etc.- por enquanto é a face de um incipiente populismo de mercado, mas que guarda uma potência de transformação. Pois o regime de pilhagem sobre o corpo social segue difuso até que este proteste, caia extenuado ou se aproprie de um dos mais importantes bens públicos: política do simbólico que não será feita esperando-se uma autoregulamentação das próprias TVs (mesmo jornalistas esclarecidos protestaram contra a "censura" do Ministério Público, que puniu a emissora tirando o programa "Domingo Legal" do ar por um dia).

Queimar o filme
Para além do corporativismo, a emissão pelo SBT da falsa entrevista com ameaças de morte a figuras públicas conseguiu reunir, numa onda de protestos, atores sociais díspares: o Ministério Público, que puniu o SBT com a suspensão, os jornalistas ameaçados, televisões concorrentes, telespectadores indignados, anunciantes, políticos, jornalistas e, grande ironia, também os verdadeiros criminosos. A "cúpula" do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que, com ajuda da TV, entra no folclore urbano, ficou "revoltada" com a televisão por "expor" e "queimar" sua imagem em rede nacional, eles também detentores de um capital simbólico.
É preciso "lutar no nível linguístico-simbólico" (Naomi Klein, Antonio Negri): é a mesma política do simbólico que levou o sindicato das empregadas domésticas a entrar com uma ação contra a exibição pela rede Globo de uma cena em que Zilda, empregada doméstica negra, teria relações sexuais com um garoto de classe média branco, Carlinhos, na novela "Mulheres Apaixonadas".
A crítica radical da comercialização do imaginário social, seu uso meramente capitalista, torna a colocar uma questão importante: qual o poder do consumidor sobre o produtor? Os telespectadores vigilantes desses fragmentos de uma narrativa global já perceberam que a política televisiva tem como objeto seus bens mais preciosos: desejos, imaginários, estilos de vida. Buscam capitalizar o imaterial... E essa caça à atenção do telespectador não é uma questão individual, como fazem crer os apresentadores (não desligue, não mude de canal, não saia da poltrona...), trata-se de uma dimensão maciça e coletiva da política cultural televisiva, que deve ser pensada e regulada socialmente. Entre as novas lutas no interior do capitalismo midiático parece chegado o momento de colocar a sociedade contra a TV, não para criticá-la externamente, de forma moralizante ou apocalíptica. Mas, idéia bem mais perturbadora, tomar posse dela, para se tornar mídia, tornar realmente pública e comum a grande indústria do social.


Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de "Joaquim Pedro de Andrade" (ed. Relume-Dumará) e organizadora de "Cartas ao Mundo" (Companhia das Letras).


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