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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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"O Livro depois do Livro" e "Culturas e Artes do Pós-Humano" evitam falsos moralismos ao discutir o surgimento de uma nova sensibilidade ligada à tecnologia

O labirinto cibernético do conhecimento

Christof Stache - 18.mar.1999/Associated Press
Espectadores usam cibercapacetes em feira de computadores em Hanover (Alemanha)


Teixeira Coelho
especial para a Folha

O depois já foi ontem muitas vezes. Isso também se aplica ao "pós-humano" em seus vários disfarces: a cibernética, a engenharia genética, o "virtual". Quando um ciberescritor, diz Giselle Beiguelman em "O Livro depois do Livro" (inclui versão em CD), toma "Pedro Páramo", de Juan Rulfo, e o divide em 168 blocos que permitem releituras do original segundo "a estrutura do labirinto de Dédalo", impossível não lembrar Cortázar e "O Jogo da Amarelinha" (1963), com suas vastas recombinações de capítulos que deixaram algum insistente leitor ocupado até hoje com o romance. Ou, mais antigo, o "Finnegans Wake" [de Joyce], riocorrente sem início e fim, de águas de leitura sempre renovadas. Nenhum precisou de computador, internet. E, se o ângulo for a filosofia do "pós-humano", como em "Culturas e Artes do Pós-Humano", de Lucia Santaella, fica claro que o "novo" assunto remonta pelo menos ao Iluminismo, quando a cultura se firmou sobre a natureza. O humano, que era natural, se torna cultural, e o "pós-humano" já nasceu. Beiguelman reconhece a novidade relativa da noção ao aceitar que o famoso hipertexto, com sua badalada liberdade de ir e vir entre os links, é apenas óbvia versão eletrônica das relações conceituais que os leitores criadores sempre fizeram.

Antiprofeta
Aliás, "O Livro depois do Livro" não tem o tom de melado evangelismo da boa nova cibernético-internético-virtual, que, com raso otimismo, costuma marcar a pregação de Pierre Lévy, profeta da salvação eletrônica assim como Baudrillard o é da perdição pelo simulacro ou da perdição simulada. Beiguelman enfatiza ainda que o pós-humano, se for o nome, já está na informática, técnica da reprodução infinita e da clonagem. Essa parece ser de fato a forma (no sentido de Raymond Williams) da produção nesta altura da história -produção de tudo, das coisas ao conhecimento e à arte. Inútil, então, indagar sobre como evitar o advento do "pós-humano": ele já está aqui. E fica visível, em seu livro, o caráter incerto, fragmentado, híbrido e flutuante da nova cultura, que não precisa ser chamada de pós-humana. É que ele traz sugestivos endereços de sites onde se poderia ver o que a autora comenta. Só que alguns não se abriram quando os busquei, ou por exigirem demais de meu PC ou por só aceitarem conexão com Macintosh... Tecnologia pede dinheiro. Minha leitura do livro depois do livro foi então fragmentada, incompleta. Sem contar que em seis meses alguns desses sites podem nem mais existir... Uma falha do livro, pensei de início. Depois me dei conta de que é essa a natureza da informação, do conhecimento e da cultura hoje -e que isso não é tão mau assim. Nem tudo está onde se indica, o que hoje está amanhã não estará, e quase nada é insubstituível: se eu não encontrar isto, encontro aquilo em outro lugar, tudo bem. O foco não mais é único ou uns poucos, os muitos focos são enfim realidade na Rede paradoxal depois de ruírem com a guerrilha dos anos 70. No fundo, aquilo de que Beiguelman fala, sem dizê-lo, é de uma nova sensibilidade, esta sim real, além de humana. Ou do advento em grande escala de uma sensibilidade antes de câmera, exercida por alguns dadaístas, um Cortázar, um Joyce, dois ou três concretistas...

Um dado e uma questão
A leitura sucessiva (à antiga) ou em paralelo (ao modo hipertextual) desses dois livros arma um cenário compreensivo do tema ao tratá-lo como um dado e como uma questão. O pós-humano já é um dado, algo que se usa mais do que se discute, para o livro-roteiro de Beiguelman, um peso leve fruto de pesquisa apoiada pela Vitae, inspiradora e tolerante fundação (humana) cujo prematuro fim lamentaremos ainda mais se as coisas seguirem como se ensaiam neste pós-janeiro de 2003, quando o centralismo e o dirigismo cultural (e outros) tocados por esse ente ainda tão inevitável quanto abominável, o Estado (esse sim, velho e autêntico pós-humano), ensaia seu retorno ao quadro brasileiro.
E o pós-humano ainda é uma questão para o livro de Santaella, peso mais pesado que aborda também, entre tantas outras coisas humanas, a genética e o protético (versão atual do protéico) como modos do "pós-humano". Também este livro está isento dos habituais moralismos e falsos problemas que assombram o tema, deixando firme, em palavras em parte tradicionais e em parte minhas -e uma vez que não somos um destino, mas uma escolha- a idéia de que nada do que é humano nos é estranho, que nada do que é estranho entre os homens deixa de ser humano e que o pós-humano nunca poderá (é essa sua forma) ser outra coisa se não humano, demasiado humano -ainda que por marca de origem, herança ou memória, a memória, que, lembra Kundera, é o grande instrumento contra a tirania.


Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras).


O Livro depois do Livro
96 págs., R$ 29,00
de Giselle Beiguelman. Ed. Peirópolis (r. Girassol, 128, CEP 05433-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3816-0699).

Culturas e Artes do Pós-Humano
360 págs., R$ 32,20
de Lucia Santaella. Ed. Paulus (r. Francisco Cruz, 229, CEP 04117-091, SP, tel. 0/xx/11/5575-7362).


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