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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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Obras de divulgação histórica, "O Livro das Cortesãs" e "Virgens de Veneza" exemplificam respectivamente a opção pelo pitoresco e pela pesquisa acadêmica

Feministas e freiras de fino trato

Mary del Priore
especial para a Folha

Quer saber quem estuprou Bela Otero aos 11 anos? Como foi a primeira vez da Dama das Camélias? Quem frequentava os salões de Ninon de Lenclos? Quantos fios de pérola tinha o colar de Liane de Pougy ou como era a cama de pau-rosa de Alice Ozy? Enfim, quer olhar pelo buraco da fechadura da alcova dessas mulheres? Pois, basta folhear este "O Livro das Cortesãs - Um Catálogo de Suas Virtudes", de Susan Griffin, rol sobre curiosidades e práticas dessas que viveram durante a "era convulsiva" ou o Segundo Império francês. A fascinação do adultério e a história da "teúda e manteúda" já foram tratadas com brilho por historiadores como Alain Corbin ou Edward Shorter. E ela não foi sempre a mesma. A lenta emergência da burguesia substituiu a relação de dominação, típica do Antigo Regime, por outra, certamente mais venal, maquilada de respeitabilidade e apimentada por sentimentos. Nascia, em meados do século 18, o modelo da amante sustentada que foi se aperfeiçoando à medida que a vulgaridade do bordel era substituída pelo cenário íntimo e luxuoso do rendez-vous, onde ela recebia coberta de jóias. Paralelamente à difusão do romance, mulheres pobres das grandes cidades passavam a sonhar com o ideal do "amor romanesco", ideal capaz de oferecer às filhas sem dote, às viúvas alegres ou mulheres abandonadas um rico papel numa família paralela. O período enfocado no livro é também interessante. Paris, palco dessa história, assistia ao aparecimento de uma burguesia cuja singularidade Marx já descrevera: não se tratava da burguesia que reinara com Luís Felipe, mas uma fração dela, feita de banqueiros, reis da Bolsa de Valores ou proprietários de minas de carvão. Se na primeira metade do século 19 Balzac não tinha a menor dificuldade em descrever os burgueses sobreviventes da Revolução, mudanças na segunda metade do século vão deixar Zola completamente zonzo sobre a origem dos tipos que ele via circular. Constituíam-se, então, as grandes escolas de medicina, direito ou obras públicas, atraindo milhares de estudantes. Trabalhadores vindos da província para atender à brutal industrialização se viam empurrados para a periferia, onde se agasalhavam em barracos. Multiplicavam-se as greves, nascia a imprensa socialista e, como sinal supremo da fermentação desse mundo tão inquieto, Haussmann dividia os bairros.


A cortesã nunca foi uma revolucionária sexual capaz de unir qualidades masculinas e femininas


Estórias, história
Em Saint-Germain se reconstitui a arrogante sociedade aristocrática com dinheiro ainda suficiente para levar uma vida luxuosa. Os notáveis do império começavam a se isolar nos "beaux quartiers" -Chaussée d'Antin ou Faubourg Saint-Honoré- enquanto essa nova burguesia se deslocava do coração da cidade para os "boulevards" da margem direita do Sena, se alegrando com cafés mundanos, teatros, iluminação pública e cerveja recém-industrializada. Mas Susan Griffin prefere passar como gato por brasa sobre todas essas questões e nos oferecer um inventário de platitudes. Sem considerar as mudanças, ela se limita a enumerar o pitoresco da vida de algumas mulheres por meio de informações pinçadas de biografias romanceadas. Conta-nos, assim, muitas estórias e pouca história. Abarrota-nos de amenidades. O texto, também, é fraco, servindo chavões do tipo "quase todas as atividades se transformam em algo extraordinário se feitas com graça" ou "negócios dependem tanto de relacionamentos quanto de matemática".

Timing e atrevimento
No ritmo de tais conclusões, suas cortesãs atravessam incólumes quase 500 anos de história, imunes a todas as transformações pelas quais passava a sociedade, inspiradas, apenas, no que ela chama de "um legado de virtudes": a reunião de timing -um senso de oportunidade agudíssimo-, charme, beleza, brilho, graça e -por que não?- atrevimento. Tudo muito simples, muito óbvio e -por que não dizê-lo?- muito chatinho. Esse é o problema da maioria dos livros de divulgação histórica. Em vez de oferecer ao leitor a possibilidade de compreender um processo, ou seja, a dialética entre mudanças e permanências, serve uma galeria de retratos fora de foco. Do ponto de vista da história, a cortesã nunca foi uma feminista avant la lettre, uma revolucionária sexual capaz de unir qualidades masculinas e femininas, como deseja Griffin. Ela é, sim, o produto de uma época em que se exibir com uma prostituta famosa ou uma cantora de café-concerto era parte de uma estratégia de acumulação de valores simbólicos tão corriqueira quanto colecionar quadros holandeses ou frequentar bons restaurantes. Ao contrário de inovar, uma respeitável "cocotte" legitimava, simplesmente, a posição conservadora do burguês. Mary Laven se esforça mais. Nestas "Virgens de Veneza" (ah! Os títulos capazes de atrair leitores incautos) procura resgatar o cotidiano nos conventos venezianos do Renascimento. Apresentado, originalmente, como tese de doutorado, o livro tem o bom e o ruim do trabalho acadêmico. O melhor é a pesquisa, a reconstituição da cidade dos Doges com seus pintores, comerciantes, grandes famílias aristocráticas e povo miúdo, atuando, juntamente com as freiras, no mesmo cenário histórico. Eram 50 conventos em meados do século 17, reunindo religiosas cujos votos decorriam, na maior parte das vezes, de pressões familiares. Filhas solteiras sem dote para o casamento, viúvas ou, em casos extremos, mulheres cujos maridos se ausentavam por longo tempo acabavam por aí se encontrar. Tudo demasiadamente humano. Ligações familiares e status social definiam o lugar de cada uma. Egressas de três camadas sociais, "nobili", "cittadini" e "popolani", tinham que achar, cada qual, um lugar ao sol. As bem-nascidas tornavam-se abadessas. As pobres serviam como domésticas. Grupinhos brigavam entre si.

Binômio batido
Os votos de pobreza não correspondiam aos enxovais caríssimos nem às preocupações com a vaidade pessoal, ambos corriqueiros e perseguidos por confessores ou bispos visitadores com os quais elas não hesitavam em se bater ou contrariar. As comunicações com leigos eram comuns, e, os parlatórios, centros de intensa vida social. As fofocas grassavam e elas disputavam no preparo de doces e bolos que seriam distribuídos entre familiares ou admiradores, deixando, muitas vezes, de comer para guardar ovos e farinha necessários ao preparo de tais "presentes".
Não faltam os processos contra os "monachini", homens que as cortejavam e cometiam o crime de ter relações sexuais com as noivas de Cristo.
O texto se acompanha de um bonito caderno iconográfico e tem como fio condutor um problema batido: o binômio ordem e desordem nos claustros durante os anos em que a Contra-Reforma buscava disciplinar fiéis e clero católico. Um livro para os interessados no assunto, mas nada de comparável a "Atos Impuros", de Judith Brown, um relato histórico da melhor qualidade sobre os amores homoeróticos de madre Benedetta na mesma época.
Se ambos os livros não revelam autores excelentes, demonstram a excelência de editoras interessadas em alargar o campo de leitores de história. A iniciativa, pelo menos, merece aplauso. O resto é o resto...

Mary del Priore é historiadora e autora de "O Mal sobre a Terra - Uma História do Terremoto de Lisboa de 1755" (ed. Topbooks).


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