São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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Arbítrio dos outros

Demissão de professor reacende debate sobre censura e revela muito sobre o estatuto da arte na sociedade de consumo

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Procuro pensar sobre a incidência de dois fenômenos de nosso cotidiano, que encontram na mídia tratamento oposto.
O primeiro, o que está na cara de qualquer um, teria uma "bibliografia" considerável.
Bastará ouvir os informativos televisivos sobre "fatos diversos" -como a preservação dos casarões das velhas fazendas de café do Vale do Paraíba ou a arte das rendeiras no interior do Ceará- ou ler jornais que ofereçam uma cobertura mais ampla do país e do mundo. Poder-se-á verificar que cada vez mais se acentua a tendência de reutilização de dejetos industriais e orgânicos -desde latas de cerveja até papelões de tamanhos variados ou dos restos do dia-a-dia de um restaurante.
Ser esse fenômeno amplamente noticiado não precisa de explicação: a reutilização de dejetos vai positivamente de encontro a uma sociedade do desperdício.
Nesse sentido, faz parte de uma mais ampla mudança de hábitos: diz respeito à conduta da sociedade quanto às fontes naturais, cuja abundância começa a escassear.
Poderíamos acrescentar que as modificações aludidas se tornam forçosas pelo próprio modo de produção capitalista; que, por conseguinte, enfatizá-las seria optar pela adoção de paliativos, em vez de ressaltar-se a própria raiz do problema.
Sem que seja falsa, essa resposta, no entanto, torna-se cada vez menos eficaz.
A queda do Muro de Berlim (1989) não decretou que, a partir de então, o capitalismo não tinha alternativa.
A queda do muro, no máximo, escancarou para todos o que o pensamento político mais agudo há décadas já havia formulado: o socialismo havia deixado de ser uma alternativa para o capitalismo desde que se impôs o padrão stalinista.
(Suponho que ninguém pensará que a atual combinação chinesa de poder ditatorial e produção regida por um capitalismo selvagem represente alguma alternativa).
Se, portanto, o modo de produção capitalista deixou de ter um competidor pelo menos desde 1928, quando Stálin assumiu o poder absoluto na União Soviética, a queda do muro era apenas a primeira manifestação patente da dissolução, mais rápida do que qualquer outra já sucedida, do império soviético.
Se o estado de coisas acima descrito é acessível mesmo a um não especialista como eu, parece evidente que a oposição ao modo de ser, pensar e agir capitalista precisa mudar de estratégia.
Daí que, embora não deixe de ser um paliativo, a reutilização do lixo orgânico e industrial é uma maneira de, quando nada, aumentarmos o tempo de sobrevida de um mundo que, em nome do lucro, se autodestrói; tempo de sobrevida para que, sem o advento de uma catástrofe (nuclear?), a expansão do capitalismo ou assuma outra direção ou seja rompida.
Mas alguém saberá o que, de fato, sucederá? Se, como já foi dito, hoje perdemos a dimensão do futuro e vivemos em um monótono "presentismo", é o caso de nos indagarmos o que já não se perdeu e já não pode ser reciclado.

Reificação
Leio em um texto recente: "A arte está morrendo? Cercada por uma natureza segunda e hostil, a arte agoniza entre nós, por nós, mas não para nós".
Isso me lembra que, há 38 anos, em sua obra póstuma, "Teoria Estética", [o filósofo alemão] T.W. Adorno declarava, a propósito do cubismo, que "por ele, pela primeira vez, a arte se dava conta de que a vida não vive".
A afirmação, contudo, era feita por alguém que discordaria em absoluto da mudança que aqui se defende. Muito ao contrário, para Adorno, qualquer concessão ao mundo das relações reificadas, isto é, ao mundo em que, pelo capitalismo, tudo se converte em coisa e, portanto, em objeto de troca, não merece outro nome senão o de concessão criminosa. Quanto à arte -objeto de seu último livro e a que dedicara seu máximo empenho na vida-, seria então criminosa qualquer tentativa de torná-la comunicável. Para Adorno, é a própria comunicação, a exemplo da que aqui tentamos, que, no tempo do capitalismo avançado, se torna criminosa.

Sem condições
Não vamos daí inferir que sua posição ajudaria a explicar o tom cabalístico de seu estilo. Mais cautelosamente, diríamos: talvez Adorno se permitisse o hermetismo porque acreditasse que, como todo fenômeno histórico, o capitalismo um dia terminaria e, à medida que as relações fossem perdendo seu caráter de puramente reificadas, sua linguagem deixaria de ser o obstáculo que é. Mas o problema com que hoje nos defrontamos é diferente de como se apresentava na década de 1970.
Já não se trata de apostar em que as relações capitalistas algum dia deixarão de ser a bússola reguladora das relações humanas, mas, sim, se sua inflexão drástica será cumprida antes que termine a agonia do que tanto prezamos, a exemplo da arte.
Pois, se os dejetos orgânicos e industriais podem ser reutilizados, é na medida que são matéria, algo passível de reaproveitamento. Essa regra não se aplica ao que supõe um investimento valorativo. Um valor que agonize pode, no melhor do casos, ante condições favoráveis, converter-se em outra coisa.
Que adianta especularmos sobre o que poderá ser a transformação da arte dita autônoma, quando nem sequer sabemos se a humanidade ainda conhecerá condições que a favoreçam? Se acima está a reflexão de imediato despertada pela questão da reciclagem, passemos mais rapidamente para um fenômeno sobre o qual pouco nos detemos.

Sem defesa
Refiro-me especificamente à censura intelectual. Ressalto um fato concreto, que sucede no momento mesmo em que escrevo, e não noutro lugar senão que no Rio de Janeiro. Um professor de português que tem a má sorte de ser também um poeta e ensina(va) em um colégio secundário particular da zona sul, por ter publicado, no seu blog, um conjunto de poemas eróticos, é sumária e discretamente demitido.
A medida foi tomada pela instituição ante a reclamação de pais de alunos, que acharam que escrever poemas eróticos não é tarefa para um professor de seus filhos. Não chamo nem sequer a atenção para o fato de que tal colégio foi fundado com uma plataforma liberal, que, ao ir crescendo, etc. etc.
Pergunto-me, sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar para a cegueira desses pais ou para a covardia hipócrita de tal direção. A questão concreta é como pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se ante uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência material?
Não acentuo nem sequer a discrepância entre os princípios de uma sociedade que se diz liberal, recém-saída de uma ditadura, e uma medida assim absurda. Acentuo, sim, que o marginal ao noticiário midiático revela o aspecto autoritário que, como sombra perversa, permanece entranhado na sociedade brasileira.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


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