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Os escolados
Sociólogo elogia proteção oferecida pela escola pública no Brasil, mas diz que falta de conteúdos prejudica a democracia
LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
Mesmo que exista
uma violência
muito grande
no meio em que
a escola pública
brasileira está inserida, a violência da instituição propriamente não é relevante. No Brasil a escola pública aparece como espaço de proteção contra a
violência externa.
"Por outro lado, ela não permite aos alunos mais em dificuldade -e por isso digo que a
escola brasileira é também um
fator de construção da delinqüência- depositar grandes
esperanças na escola."
A citação é do sociólogo francês Benjamin Moignard, em
entrevista exclusiva dada em
Paris à Folha para falar de seu
livro "L'École et la Rue - Fabriques de Délinquance" (A Escola e a Rua - Fábricas de Delinqüência, ed. PUF, 232 págs.,
26, R$ 62).
Ganhador do Prêmio Le
Monde de pesquisa universitária, o livro faz parte de uma coleção dirigida pelo sociólogo e
filósofo Edgar Morin. Nele,
Moignard estuda as relações de
duas escolas, uma francesa e
uma carioca, com a sociedade
em geral e com as comunidades
nas quais estão inseridas.
O sociólogo tomou como
exemplos uma escola de uma
"banlieue" (bairro pobre da periferia) de Paris e outra situada
numa grande favela carioca, na
qual se reconhece imediatamente a Rocinha. Os nomes
dos personagens, das escolas e
dos lugares foram mudados.
"Nas pesquisas quantitativas, a França aparece, em nível
europeu, como o último país na
questão da violência na escola,
isto é, onde há mais casos de
tensão e violência", diz Moignard, que tinha apenas 27 anos
quando viveu no Rio.
Na França, os jovens se sentem excluídos da sociedade e
são vistos como estrangeiros.
No Brasil, têm a percepção de
si mesmos como pessoas pobres. "Na França, a escola é exterior ao bairro pobre. No Brasil tem-se uma escola do bairro,
na França tem-se uma escola
no bairro, o que faz toda a diferença. E acho que isso é uma
das explicações, mas não a única, que diferencia a violência
na escola na França e no Brasil.
Pesquisador do Observatório
Internacional e Europeu de
Violência Escolar e professor
na Universidade de Bordeaux
2, Moignard concluiu, baseado
em sua pesquisa, que a violência nas escolas francesas é bem
maior do que nas brasileiras.
Para ele, mesmo se na França
a escola se posiciona como um
meio de integração e de emancipação muito forte, o que é
verdadeiro de maneira geral,
ela participa da construção das
desigualdades sociais ao não
garantir a ascensão social de alguns grupos.
"Esses alunos sabem que não
basta estudar para ascender socialmente.
Isso é um sentimento partilhado por alunos tanto
brasileiros quanto franceses."
FOLHA - O sr. diz em seu livro que
que o clima de violência é bem menor nas escolas brasileiras que nas
francesas. Por quê?
BENJAMIN MOIGNARD - Posso apenas levantar hipóteses. Há níveis de violência diferentes na
escola francesa e na brasileira,
sobretudo no clima e na relação
entre os professores e os alunos. Nos dois países existe uma
relação muito diferente com a
escola, seja da parte dos alunos,
seja da parte dos professores.
Na França, tem-se uma concepção republicana da escola,
que rompe totalmente com o
meio que a cerca. E a escola
francesa tem exigências de
aprendizado que são muito
grandes.
FOLHA - Mesmo nos bairros pobres
de periferia ?
MOIGNARD - Pode haver certa
adaptação, mas o básico permanece, ao contrário do Brasil,
onde a prioridade não é tanto
ensinar, mas educar.
A prioridade no Brasil é dada
à escolarização dos alunos,
principalmente na favela e nas
escolas públicas situadas nesses bairros pobres.
O discurso dos professores é:
"O importante não é o que os
alunos aprendam em termos
de saber acadêmico, mas que
venham à escola e sejam escolarizados e protegidos do
meio". A escola brasileira faz
parte da comunidade na qual
está inserida.
FOLHA - A escola é vista de forma
positiva mesmo quando situada numa favela onde existem traficantes?
MOIGNARD - Sim, mesmo se há
tráfico, para as pessoas da comunidade e para os alunos a escola faz parte da comunidade.
FOLHA - Há muita violência nas escolas da periferia de Paris?
MOIGNARD - Em nível internacional, a França está muito mal
colocada nesse quesito. Há
mais violência na escola na
França que no Brasil.
FOLHA - A violência na escola existe ou não no Brasil?
MOIGNARD - Ela é relativa
quando comparada com a violência do meio que a cerca, mas,
por outro lado, não permite aos
alunos depositar grandes esperanças na escola. É por isso que
digo que a escola brasileira é
também um fator de construção da delinqüência.
Os alunos que acompanhei e
que trabalhavam para o tráfico
diziam claramente: "De qualquer forma, mesmo com boas
notas na escola, não terei um
bom salário no futuro nem um
bom emprego. Por isso, é melhor viver pouco, mas intensamente, indo à escola porque para meus pais é importante".
FOLHA - Consideram que não podem esperar ascensão social por
meio da escola?
MOIGNARD - Exatamente. A escola não é vista como fator de
ascensão social. E vejo nisso
um desafio à democracia muito
forte. Mesmo se pode educar, a
escola pública deve poder dar
um saber acadêmico que esteja
à altura da ambição brasileira.
No Brasil a desigualdade de
acesso à universidade entre os
alunos da escola pública e da
privada é enorme. Os alunos
sabem que, sendo escolarizados na rede pública, têm poucas chances de acesso às universidades públicas para alcançar posições sociais melhores.
Na França, o que ocorre é a
construção escolar da delinqüência, ligada a um modo de
controle do que chamo "núcleos duros delinqüentes". Esse
controle acaba por construir
esses núcleos duros, alimentando a estruturação de quadrilhas de adolescentes, condutas
anti-escolares etc.
No Brasil [esse controle] é
mais insidioso: a escola protege
do ambiente externo, consegue
não ser violenta, com algumas
exceções, mas acho que ela favorece a delinqüência, pois os
alunos entram para o tráfico dizendo que "a escola não dá alternativa melhor".
FOLHA - O que o sr. quer dizer com:
"A escola participa da construção
das situações sociais que ela teme"?
MOIGNARD - Isso é de certa forma uma provocação, pois a escola não é o único elemento.
Mesmo participando da
construção da delinqüência, ela
não o faz de maneira deliberada. No caso francês, a escola
tenta limitar a ação de alguns
alunos mais difíceis em turmas
especiais, promovendo uma segregação interna.
Ela os coloca juntos para preservar os outros alunos, menos
difíceis, que vêm de meios sociais mais favorecidos.
Para tentar manter a mistura
de classes sociais no estabelecimento, os professores concentram os alunos mais difíceis.
Em nenhum momento os diretores pensam que, fazendo isso,
estão ajudando a construir as
gangues juvenis.
FOLHA - o sr. pode explicar a lógica
repressiva da escola francesa e como ela participa na formação das
gangues?
MOIGNARD - A lógica repressiva
existe porque os alunos vêm de
um meio visto como um perigo
permanente, e a escola pensa
que é preciso se proteger.
Para isso, a idéia de tolerância zero é muito difundida. Não
se pode deixar passar nada, para que não transborde. A sanção só faz sentido se for compreendida, mas, quando os alunos ficam retidos todo dia depois da aula, essa punição perde o efeito.
Os alunos vivem isso como
uma opressão da escola e da sociedade.
Chega-se, então, a um nível
de desconfiança recíproca.
A concepção republicana
francesa faz com que a escola
seja cortada de seu ambiente.
Essa postura de ruptura alimenta as condutas anti-escolares, que alimentam, por sua
vez, os processos delinqüentes
que fazem que a escola se torne
uma fábrica de delinqüência.
FOLHA - E quanto ao Brasil?
MOIGNARD - No Brasil, o processo é mais insidioso. A escola
fabrica delinqüência mais sutilmente. Quando eu trabalhava para o Observatório Europeu da Violência na Escola,
concluímos: "A escola brasileira encontrou a solução para lutar contra a violência na escola". Tínhamos um paradoxo:
um meio extremamente violento e uma escola extremamente preservada.
Na favela que estudei, temos
exatamente isso.
Mas, mesmo se a escola preserva da violência, não é um
meio de preservar de maneira
mais ampla. E certo número de
alunos escolhem deliberadamente entrar para o tráfico.
Evidentemente há outros elementos, uma forte pressão do
ambiente, sem a qual os alunos
não cairiam no tráfico.
Mas, como a escola não aparece como alternativa, ela favorece a construção das práticas
delinqüentes.
FOLHA - O sr. compara a favela e a
"banlieue" de Paris a guetos. Que
características aproximam esses lugares da noção de gueto?
MOIGNARD - Utilizei o termo no
sentido em que são bairros que
agrupam populações fortemente marginalizadas ou em
situação de exclusão em relação ao resto da sociedade.
Na França, nos bairros populares, há uma forte concentração de populações cada vez
mais segregadas. Não são guetos étnicos, como nos EUA, onde há bairros de negros, de latinos, mas bairros nos quais há
uma concentração muito grande de populações em dificuldade e onde há cada vez menos a
intervenção do Estado.
Na França, freqüentemente,
o único representante do Estado nesses bairros é a escola. Isso explica na França uma espécie de etnização das relações,
com um choque entre professores e alunos, que não vêm dos
mesmos meios sociais nem dos
mesmos ambientes.
FOLHA - Como comparar o incomparável: uma favela num país em
desenvolvimento numa cidade como o Rio e um bairro pobre da periferia de Paris? Quais são as semelhanças e as diferenças?
MOIGNARD - Comparei o incomparável também na representação de cada um nos dois
países. Na França, pensa-se que
uma favela brasileira vive uma
violência diária e permanente.
Não se imagina que também seja um espaço de vida social com
comércio, festas etc.
Por outro lado, quando dizia
[no Brasil] que eu fazia um trabalho de pesquisa em um bairro pobre francês, as pessoas
sorriam, imaginando problemas muito relativos.
Essas reações colocam a
questão de retrabalhar as representações e estereótipos. O
que há em comum é que tanto
no Brasil quanto na França essas populações ocupam o mesmo lugar na pirâmide social.
A situação de exclusão é parecida, mesmo se a favela é vista no Brasil apenas como um
bairro de pobres e eles mesmos
se vêem como pobres.
Na França, mesmo se a questão da pobreza é levantada, os
jovens falam de "bairro de estrangeiros". Nos colégios, as
concentrações étnicas são muito fortes. Por causa da exclusão,
espera-se muito da escola, tanto na França quanto no Brasil.
A escola é vista como a única
alternativa possível, mesmo
sem muita ilusão.
FOLHA - Com foi seu dia-a-dia em
uma favela carioca? Sua vida chegou a ser ameaçada?
MOIGNARD - Não, nunca fui
ameaçado, mas o trabalho na
favela foi longo. Fiquei quase
dois anos no Rio. Não cheguei à
favela do dia para a noite.
Primeiramente, fui trabalhar na
escola e, como estava próximo
de alguns alunos entre os quais
havia membros do tráfico, pude
me integrar à comunidade.
FOLHA - O sr. foi de certa forma
protegido por pessoas que o adotaram como amigo?
MOIGNARD - Exatamente, nunca fui sozinho à favela, sempre
estive acompanhado. Fui lá
praticamente todos os dias, durante um ano.
FOLHA - No início ficaram desconfiados?
MOIGNARD - Um francês já é para eles sinal exterior de riqueza;
além do mais pesquisador. Era
algo que não era visto de maneira muito positiva.
FOLHA - O sr. diz que, "no Brasil, os
excessos dos policiais e dos militares
fazem quase sempre mortos e feridos a bala". Na França, os jovens das
"banlieues" raramente são mortos
em intervenções da polícia. Por que
os policiais são odiados tanto na favela quanto na "banlieue"?
MOIGNARD - Há um comportamento policial e militar muito
próximo dos traficantes, inclusive no controle imposto aos
habitantes. Nas favelas, os habitantes se protegem da polícia. Fui abordado várias vezes
na favela para mostrar documentos, e esses controles são
particularmente violentos.
FOLHA - E na França?
MOIGNARD - Não se deve pôr todos os policiais no mesmo saco,
mas, em alguns "quartiers" em
que trabalhei, o sentimento antipolícia é alimentado por comportamentos intrusivos fortes,
ligados à idéia de que não pode
haver territórios onde a República esteja ausente.
Há formas de controle de
identidade, e os jovens podem
ser abordados cinco vezes numa mesma noite. Isso não é
uma espécie de reapropriação
de territórios para afastar os jovens de seus próprios bairros?
Não digo que os jovens devam ser os únicos donos de
seus territórios, mas na França
e no Brasil a polícia tende a se
posicionar de maneira a criar
um confronto com os jovens
que se organizam em gangues.
FOLHA - Com uma diferença: na
França a polícia não mata os jovens
das "banlieues".
MOIGNARD - Na França, existem excessos, atiram com balas
de borracha. A Brigada Anticriminalidade que trabalha nas
"banlieues" usa cada vez mais
"flash-ball" [arma que permite
à polícia dominar insurreições
sem fazer mortos].
Da mesma forma, a intervenção das forças da CRS [Companhia Republicana de Segurança, unidade de controle de tumultos] nos bairros populares é
constante, ficam permanentemente em alguns locais. E,
mesmo que a imprensa não fale
disso, as insurreições continuam. O confronto entre jovens e policiais aumentou muito nos últimos cinco anos.
FOLHA - Sobre o Brasil o sr. escreve:
"Se a escola evita a violência e em
certa medida a delinqüência, não
somente ela não é um meio de prevenir a violência, mas reforça as desigualdades sociais". Como isso
acontece?
MOIGNARD - Claro que é importante educar e a escola pública
brasileira é formidável no trabalho que faz com o meio no
qual se insere. Mas, na minha
opinião e de outros sociólogos,
ela não pode abandonar suas
exigências em termos acadêmicos se quiser se tornar um fator
de emancipação.
Nas pesquisas internacionais
sobre aprendizagem, a escola
pública brasileira é muito mal
posicionada, não corresponde
ao nível econômico do país.
O fosso entre a escola pública
e a escola privada é um desafio
para a democracia brasileira. O
desafio é este: a escola pública
vai poder assumir seu papel
emancipador?
FOLHA - Como se manifesta a violência nas escolas francesas?
MOIGNARD - Essa violência não
é apenas feita de tiros e facadas.
Manifesta-se também em microviolências, uma acumulação
de pequenos fatos repetidos
que são vividos pelos professores como violência.
Por exemplo, alunos que se
empurram nos corredores e
chegam a se altercar muitas vezes com violência. Ou então gritos e discussões em sala. Isso
pode ser vivido pelos professores como um impedimento para dar prosseguimento à aula.
FOLHA - Como a escola trabalha
para dissolver a tensão e resolver o
problema?
MOIGNARD - A dificuldade é que
não há uma única maneira de
ver a questão. Na França, as escolas das zonas violentas não
combatem a questão da violência porque os educadores pensam que ela não é ligada à escola. As pessoas pensam que é
culpa do meio, que é violento.
Acham que não há nada a fazer.
Mas sabemos que há um número de fatores decisivos na
construção da violência escolar. Por exemplo, a estabilidade
das equipes, que é um fator determinante para lutar contra a
violência na escola.
Mas sabe-se também que na
França a nomeação dos professores é feita de tal forma que,
para as zonas mais pobres, são
enviados os professores mais
jovens, que procuram sair logo
que podem das escolas consideradas "difíceis".
Logo, estamos dentro de mecanismos que alimentam a
construção da violência, com
equipes pouco estáveis, atitudes muito repressivas, gestão
da ordem escolar vista pelos
alunos como uma forma de violência simbólica da parte da
instituição e com formas de segregação interna aos estabelecimentos, que fazem com que
se concentrem numa mesma
sala os alunos com dificuldade.
FOLHA - O sr. acredita que na França os alunos vêem a repressão da
violência na escola e como uma continuação da repressão da polícia?
MOIGNARD - Isso existe porque
há fortes expectativas em relação à escola francesa. Os alunos
dos bairros pobres têm confiança na escola, e ela tem uma
legitimidade social muito forte.
Quando descobrem que a escola também se torna um fator de
exclusão e de reprodução das
dominações, ela se torna vítima
de comportamentos antiescolares muito fortes.
Porém há estabelecimentos
que deveriam, sociologicamente falando, ter problemas de
violência e não têm, pois souberam resolver a questão, ao envolver os "quartiers", as associações etc.
Isso significa que o meio socioeconômico não explica sozinho a violência na escola.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site www.alapage.fr
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