São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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Série de sucesso

O premiado filme "Entre os muros", de Laurent Cantet, retrata um ano letivo em uma classe de adolescentes na periferia de Paris

JEAN-LUC DOUIN

Câmara de eco dos questionamentos, inquietações, dilemas e disputas que agitam o mundo há vários anos em matéria de educação, identidade, cultura e integração, "Entre les Murs" [Entre os Muros, que deve estrear no Brasil em março] abrange como poucos uma grande paleta de emoções. É ao mesmo tempo grave, sutil, incisivo, perturbador, engraçado, comovente. A recompensa para quem o vê é indiscutível.
Seu impacto ultrapassa de longe as fronteiras da França, como comprova a recepção em Cannes -júri, imprensa e distribuidores totalmente cativados [o filme é o indicado francês ao Oscar de filme estrangeiro].
O filme é um cara-a-cara entre um homem e um grupo constituído de indivíduos de sensibilidade à flor da pele. Um professor de francês numa sala de "quatrième" [equivalente à 8ª série do ensino fundamental brasileiro] num colégio parisiense do 20º "arrondissement" [equivalente a bairro]. É a história de um ano letivo, condensado em duas horas -logo, reduzida a seus momentos de tensão, a suas crises ou instantes significativos.
É também a história de um pedagogo adulto, de temperamento otimista, confrontado com a juventude, o imprevisto, a intolerância, a ingratidão, as dificuldades de comunicação, os abismos dialéticos, o choque de culturas, as armadilhas do descontrole, os riscos da profissão, a solidão.
Esse homem, François, interpretado com perfeição por François Bégaudeau (entusiasta, cúmplice, irônico, cansado, obstinado, idealista, amargo), ex-professor e autor do livro no qual o filme é baseado, corre o risco de desentender-se não apenas com seus alunos, mas também com seus colegas professores, às vezes exaustos, irritados, repressivos. "Estou de saco cheio desses palhaços -não agüento mais vê-los", solta o professor de tecnologia.
Nessa escola francesa -lugar de mistura social, caixa de ressonância dos problemas de imigração, dos sem-documentos-, François, seus alunos e também seus pais vivem as relações de poder e de resistência à autoridade.

Homofobia
Em "Entre as Paredes", a dificuldade em ficarem juntos e em rejeitar a resignação sem provocar a violência e a exclusão é algo que é vivido dos dois lados da mesa do professor. O filme relata como François -apesar de seu talento para a improvisação, seu dom de colocar seus alunos à vontade, de conversar de igual para igual com eles, de respeitar a subjetividade de cada um- se choca com a indisciplina, a insolência, a recusa, o desinteresse e a rebelião e escorrega, esquece o peso que têm as palavras, dá um passo em falso e ultrapassa seu limite de tolerância.
E também como sua classe manifesta homofobia e anti-semitismo, como um aluno de origem malinesa expulso depois de passar pelo conselho disciplinar é condenado a retornar a seu país. Há uma constante no cinema de Laurent Cantet: a do fracasso, da derrota do indivíduo diante do corpo social. Polêmica sobre a oportunidade de aprender o imperfeito do subjuntivo ("Se a gente o usar, todo o mundo vai dizer: "Eles estão doentes ou o quê?'"), paranóia de Khoumba, que se recusa a ler um texto ("O senhor está com raiva e está descontando em mim!"), o saco cheio de Juliette e de suas amigas, fartas de serem "tratadas como baleias assim que a gente ganha alguns quilos", a dignidade de uma mãe africana que não fala uma palavra de francês, diante do diretor que lhe diz que seu filho é um elemento perturbador.

"Vagabunda"
A magia do filme está na destreza com que Cantet capta essa vida agitada entre quatro paredes, esse zunzunzum permanente, a timidez e vergonha de alguns e a fanfarronice de outros, as discussões intermináveis, os debates tempestuosos, os protestos contra um professor demasiado "venerado", e a explosão brutal da emoção, o espetáculo de um aluno perdido, de um rejeitado indefeso.
Sob o controle desse professor que vive sua missão como um sacerdócio, estarrecidos com o falar instigante desses adolescentes rebeldes que falam alto porque representam, como se estivessem no teatro, o espectador se diverte muito, mesmo quando seus risos ficam amarelos.
Esse é o caso quando Boubacar e Souleymane chamam a atenção para a suposta sexualidade do professor ("dizem que o senhor gosta de homens"), quando Sandra se queixa de ter sido "xingada de vagabunda" -convencida de que vagabunda é o mesmo que prostituta ("não é normal ser xingada pelos professores da escola!"). A sala do diretor é apelidada de "Guantánamo".
"Entre os Muros" filma a guerra da palavra, e o faz de modo esplendoroso. De um lado o ensinar, saber responder, dar uma réplica instantânea, administrar o instante no que ele tem de mais incômodo; de outro, ter o direito de tomar a palavra, de surpreender o professor. Construído sobre a base da maiêutica, o filme rende homenagem a esse professor capaz de levar seus alunos a decodificar o saber, falando com eles como adultos.
Leitora de Sócrates, que sua irmã mais velha lhe recomendara, Sandra se orgulha tremendamente de poder dizer a seu professor que "não é um livro de vagabunda". Pois o que está em jogo, aqui, é ter a última palavra.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain



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