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Série de sucesso
O premiado filme
"Entre os muros",
de Laurent Cantet, retrata um ano letivo em uma
classe de adolescentes
na periferia de Paris
JEAN-LUC DOUIN
Câmara de eco dos
questionamentos,
inquietações, dilemas e disputas que
agitam o mundo há
vários anos em matéria de educação, identidade, cultura e integração, "Entre les Murs"
[Entre os Muros, que deve estrear no Brasil em março]
abrange como poucos uma
grande paleta de emoções.
É ao mesmo tempo grave, sutil, incisivo, perturbador, engraçado, comovente.
A recompensa para quem o
vê é indiscutível.
Seu impacto
ultrapassa de longe as fronteiras da França, como comprova
a recepção em Cannes -júri,
imprensa e distribuidores totalmente cativados [o filme é o
indicado francês ao Oscar de
filme estrangeiro].
O filme é um cara-a-cara entre um homem e um grupo
constituído de indivíduos de
sensibilidade à flor da pele. Um
professor de francês numa sala
de "quatrième" [equivalente à
8ª série do ensino fundamental
brasileiro] num colégio parisiense do 20º "arrondissement" [equivalente a bairro].
É a história de um ano letivo,
condensado em duas horas
-logo, reduzida a seus momentos de tensão, a suas crises
ou instantes significativos.
É também a história de um
pedagogo adulto, de temperamento otimista, confrontado
com a juventude, o imprevisto,
a intolerância, a ingratidão, as
dificuldades de comunicação,
os abismos dialéticos, o choque
de culturas, as armadilhas do
descontrole, os riscos da profissão, a solidão.
Esse homem, François, interpretado com perfeição por
François Bégaudeau (entusiasta, cúmplice, irônico, cansado,
obstinado, idealista, amargo),
ex-professor e autor do livro no
qual o filme é baseado, corre o
risco de desentender-se não
apenas com seus alunos, mas
também com seus colegas professores, às vezes exaustos, irritados, repressivos.
"Estou de saco cheio desses
palhaços -não agüento mais
vê-los", solta o professor de
tecnologia.
Nessa escola francesa -lugar
de mistura social, caixa de ressonância dos problemas de
imigração, dos sem-documentos-, François, seus alunos e
também seus pais vivem as relações de poder e de resistência
à autoridade.
Homofobia
Em "Entre as Paredes", a dificuldade em ficarem juntos e
em rejeitar a resignação sem
provocar a violência e a exclusão é algo que é vivido dos dois
lados da mesa do professor.
O filme relata como François
-apesar de seu talento para a
improvisação, seu dom de colocar seus alunos à vontade, de
conversar de igual para igual
com eles, de respeitar a subjetividade de cada um- se choca
com a indisciplina, a insolência,
a recusa, o desinteresse e a rebelião e escorrega, esquece o
peso que têm as palavras, dá
um passo em falso e ultrapassa
seu limite de tolerância.
E também como sua classe
manifesta homofobia e anti-semitismo, como um aluno de
origem malinesa expulso depois de passar pelo conselho
disciplinar é condenado a retornar a seu país.
Há uma constante no cinema
de Laurent Cantet: a do fracasso, da derrota do indivíduo
diante do corpo social.
Polêmica sobre a oportunidade de aprender o imperfeito
do subjuntivo ("Se a gente o
usar, todo o mundo vai dizer:
"Eles estão doentes ou o
quê?'"), paranóia de Khoumba,
que se recusa a ler um texto ("O
senhor está com raiva e está
descontando em mim!"), o saco
cheio de Juliette e de suas amigas, fartas de serem "tratadas
como baleias assim que a gente
ganha alguns quilos", a dignidade de uma mãe africana que
não fala uma palavra de francês, diante do diretor que lhe
diz que seu filho é um elemento
perturbador.
"Vagabunda"
A magia do filme está na destreza com que Cantet capta essa vida agitada entre quatro paredes, esse zunzunzum permanente, a timidez e vergonha de
alguns e a fanfarronice de outros, as discussões intermináveis, os debates tempestuosos,
os protestos contra um professor demasiado "venerado", e a
explosão brutal da emoção, o
espetáculo de um aluno perdido, de um rejeitado indefeso.
Sob o controle desse professor que vive sua missão como
um sacerdócio, estarrecidos
com o falar instigante desses
adolescentes rebeldes que falam alto porque representam,
como se estivessem no teatro, o
espectador se diverte muito,
mesmo quando seus risos ficam amarelos.
Esse é o caso quando Boubacar e Souleymane chamam a
atenção para a suposta sexualidade do professor ("dizem que
o senhor gosta de homens"),
quando Sandra se queixa de ter
sido "xingada de vagabunda"
-convencida de que vagabunda é o mesmo que prostituta
("não é normal ser xingada pelos professores da escola!").
A sala do diretor é apelidada
de "Guantánamo".
"Entre os Muros" filma a
guerra da palavra, e o faz de
modo esplendoroso.
De um lado o ensinar, saber
responder, dar uma réplica instantânea, administrar o instante no que ele tem de mais incômodo; de outro, ter o direito de
tomar a palavra, de surpreender o professor.
Construído sobre a base da
maiêutica, o filme rende homenagem a esse professor capaz
de levar seus alunos a decodificar o saber, falando com eles
como adultos.
Leitora de Sócrates, que sua irmã mais velha
lhe recomendara, Sandra se orgulha tremendamente de poder dizer a seu professor que
"não é um livro de vagabunda".
Pois o que está em jogo, aqui, é
ter a última palavra.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain
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