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Teatro da violência
Uso do terror para fins políticos é fenômeno novo, que tomou o lugar do cogumelo atômico no imaginário ocidental
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
É
difícil pegar um jornal
na mão hoje em dia
sem encontrar as palavras "terrorismo" e
"terrorista" entre as
manchetes. Ao mesmo tempo,
nem sempre é fácil determinar
exatamente o que se quer dizer
com o uso dessas palavras carregadas de emoção.
É demasiado fácil operar, pelo menos em nível inconsciente, com um padrão de dois pesos e duas medidas, pelo qual
pessoas que empregam a violência em prol de causas que
desaprovamos são "terroristas", enquanto as que estão ao
nosso lado são simplesmente
"guerrilheiras", "soldados" ou
"policiais".
A "palavra com T" (ou "palavrão que começa com T"), como poderíamos descrevê-la,
tornou-se muito fácil de manipular para persuadir ou mesmo, ironicamente, amedrontar
as pessoas para que votem em
governos que prometem ser
duros contra o terrorismo.
É fácil manipular porque, na
imaginação pública de hoje, as
torres do World Trade Center
parecem ter tomado o lugar da
nuvem em formato de cogumelo que assombrava os sonhos
da geração da bomba atômica e
da Campanha pelo Desarmamento Nuclear.
O que se pode fazer numa situação como essa? Para começar, precisamos procurar compreender o que está acontecendo. Poderia ajudar a reflexão
mais clara sobre o problema se
abandonássemos por completo
a "palavra com T". Hoje essa é
uma opção que provavelmente
é pouco realista, mas poderíamos, pelo menos, nos esforçar
para empregar o termo com o
máximo possível de precisão,
em vez de usá-lo como sinônimo de violência política.
Isso significa reconstruir os
pontos de vista e os objetivos
das pessoas que cometem atentados a bomba e outros atos
violentos, por menos que possamos nos solidarizar com os
meios que escolheram para
promover seus objetivos.
Robespierre pioneiro
Para resumir esses objetivos
numa única frase, poderíamos
dizer que a Al Qaeda, como os
Tigres Tâmeis [grupo separatista do Sri Lanka], o IRA
[Exército Republicano Irlandês] e muitos outros grupos militantes, optou por atuar num
"teatro do terror".
A violência política é tão antiga quanto a própria guerra, mas
a preocupação com a manipulação do terror para finalidades
políticas é algo muito mais recente. Pensando no terror como arma utilizada pelo Estado,
poderíamos enxergar Robespierre, o líder do partido Jacobino durante a Revolução
Francesa, como o pioneiro nesse campo específico.
Afirmando que "a virtude
sem o terror é destituída de poder", Robespierre, na década de
1790, começou a enviar mais e
mais de seus adversários políticos ao cadafalso.
Essa campanha de execuções
na guilhotina acabou sendo conhecida como "o Terror" e terminou pondo fim à vida do próprio Robespierre, além do rei
Luís 16, Maria Antonieta e revolucionários mais moderados,
como Danton.
Na década de 1970, os regimes militares da Argentina, do
Brasil e do Chile estiveram entre os muitos governos posteriores que, conscientemente ou
não, seguiram o rastro deixado
por Robespierre.
Se, por outro lado, nos preocupamos especialmente com o
terror como arma empregada
pelas oposições políticas, não
precisamos retroceder mais
que ao final do século 19, aos
anarquistas na Rússia, Itália,
nos EUA e em outros países.
Discípulos de Michael Bakunin, Peter Kropotkin e outros
acreditavam no que chamavam
de "a filosofia da bomba" ou "a
propaganda pelo ato" (em circunstâncias semelhantes, uma
geração posterior falou de
"conscientização" política).
Os meios que empregavam
eram geralmente o assassinato
de líderes políticos -czares,
presidentes, generais, bispos,
arquiduques e assim por diante-, mas seu verdadeiro alvo
era o público, especialmente a
imaginação pública. Os anarquistas queriam mostrar ao público que o regime era vulnerável e queriam distanciar a população do governo, provocando o governo a reagir de maneira excessiva à ameaça.
Eles tentavam fazer com que
o regime se deslegitimasse ao
praticar atos ilegítimos, como a
detenção de suspeitos sem julgamento, a tortura de suspeitos
e assim por diante.
Mais tarde, seqüestradores,
autores de atentados a bomba e
de seqüestros políticos compartilharam essas metas -na
década de 1960, [o brasileiro]
Carlos Marighella chegou a explicitá-las em seu "Minimanual
do Guerrilheiro Urbano", um
livro que ficou tão famoso em
sua época que a Penguin publicou sua tradução inglesa.
Utilizados contra sociedades
que se vêem como "civilizadas"
e "democráticas", eles as obrigam a apoiar seus valores básicos, empregando métodos incivilizados e antidemocráticos.
Cenas para a TV
É essa "propaganda pelo ato"
que eu descrevo como "teatro".
Não estou, é claro, negando que
edifícios reais são destruídos,
que sangue real corre, corpos
reais são mutilados e vidas
reais são ceifadas com violência. O que quero mostrar é que
as pessoas que cometem esses
atos pensam, pelo menos em
primeiro lugar, no efeito que
eles terão sobre os espectadores, especialmente os milhões
de pessoas que vêem esses atos
pela televisão.
Para citar um exemplo que
causou sensação em sua época,
o seqüestro do político italiano
Aldo Moro, em 1978, e seu subseqüente assassinato foram
descritos por um sociólogo como "drama social" (e até mesmo como "teatro de moralidade", já que as Brigadas Vermelhas, que o seqüestraram, encenaram julgamento e execução).
A destruição das Torres Gêmeas e de milhares de pessoas
que trabalhavam nelas, no 11 de
Setembro, foi percebida por
muitos espectadores, entre os
quais eu me incluo, como uma
performance encenada propositalmente para ser transmitida pela televisão.
A política, de modo geral, pode ser vista como drama ou melodrama, com líderes que se
apresentam como salvadores
de seus países ou heróis de uma
peça de teatro de moralidade
na qual a trama principal é a luta contra o mal. Nesse teatro, a
violência constitui um dos roteiros principais.
Os anarquistas do século 19
concentravam seus esforços na
morte de pessoas importantes,
de modo que seus atos podem
ser descritos não apenas como
simbólicos, mas também como
utilitários, visando mudanças
de regime e também o que enxergavam como sendo a purificação da sociedade por meio da
violência.
Hoje, pelo contrário, embora
o assassinato do presidente
George W. Bush seja facilmente imaginável, os assassinatos
reais de pessoas comuns escolhidas aleatoriamente vêm se
tornando mais freqüentes -e
não apenas porque elas são alvos mais fáceis, sobretudo
quando estão usando meios de
transporte.
Os assassinatos aleatórios
são ao mesmo tempo mais assustadores -poderiam acontecer com qualquer um de nós- e
mais evidentemente simbólicos, já que não existe vantagem
política a ser auferida deles, exceto o terror que provocam.
Resistência à ocupação
Por quanto tempo essa onda
de violência vai durar? Existe
pouco consolo em saber que o
terror é uma arma freqüentemente empregada por grupos
políticos pequenos, tais como
os anarquistas ou as Brigadas
Vermelhas, que sabem que não
podem contar muito com o
apoio público.
Por outro lado, pode-se auferir um pouco mais de consolo
de outra generalização política,
referente às situações nas quais
ocorre o recurso ao terror.
Um contexto recorrente desses atos é a resistência à ocupação estrangeira ou à ocupação
que seja vista como sendo estrangeira -por exemplo, na Palestina, na Irlanda do Norte, no
País Basco ou, voltando mais
atrás no tempo, na Argélia sob a
dominação francesa ou na
França sob a ocupação nazista.
Quando a ocupação termina, a
cortina se fecha sobre o teatro
da violência.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.
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