São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Teatro da violência

Uso do terror para fins políticos é fenômeno novo, que tomou o lugar do cogumelo atômico no imaginário ocidental

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil pegar um jornal na mão hoje em dia sem encontrar as palavras "terrorismo" e "terrorista" entre as manchetes. Ao mesmo tempo, nem sempre é fácil determinar exatamente o que se quer dizer com o uso dessas palavras carregadas de emoção.
É demasiado fácil operar, pelo menos em nível inconsciente, com um padrão de dois pesos e duas medidas, pelo qual pessoas que empregam a violência em prol de causas que desaprovamos são "terroristas", enquanto as que estão ao nosso lado são simplesmente "guerrilheiras", "soldados" ou "policiais".
A "palavra com T" (ou "palavrão que começa com T"), como poderíamos descrevê-la, tornou-se muito fácil de manipular para persuadir ou mesmo, ironicamente, amedrontar as pessoas para que votem em governos que prometem ser duros contra o terrorismo.
É fácil manipular porque, na imaginação pública de hoje, as torres do World Trade Center parecem ter tomado o lugar da nuvem em formato de cogumelo que assombrava os sonhos da geração da bomba atômica e da Campanha pelo Desarmamento Nuclear.
O que se pode fazer numa situação como essa? Para começar, precisamos procurar compreender o que está acontecendo. Poderia ajudar a reflexão mais clara sobre o problema se abandonássemos por completo a "palavra com T". Hoje essa é uma opção que provavelmente é pouco realista, mas poderíamos, pelo menos, nos esforçar para empregar o termo com o máximo possível de precisão, em vez de usá-lo como sinônimo de violência política.
Isso significa reconstruir os pontos de vista e os objetivos das pessoas que cometem atentados a bomba e outros atos violentos, por menos que possamos nos solidarizar com os meios que escolheram para promover seus objetivos.

Robespierre pioneiro
Para resumir esses objetivos numa única frase, poderíamos dizer que a Al Qaeda, como os Tigres Tâmeis [grupo separatista do Sri Lanka], o IRA [Exército Republicano Irlandês] e muitos outros grupos militantes, optou por atuar num "teatro do terror".
A violência política é tão antiga quanto a própria guerra, mas a preocupação com a manipulação do terror para finalidades políticas é algo muito mais recente. Pensando no terror como arma utilizada pelo Estado, poderíamos enxergar Robespierre, o líder do partido Jacobino durante a Revolução Francesa, como o pioneiro nesse campo específico.
Afirmando que "a virtude sem o terror é destituída de poder", Robespierre, na década de 1790, começou a enviar mais e mais de seus adversários políticos ao cadafalso.
Essa campanha de execuções na guilhotina acabou sendo conhecida como "o Terror" e terminou pondo fim à vida do próprio Robespierre, além do rei Luís 16, Maria Antonieta e revolucionários mais moderados, como Danton.
Na década de 1970, os regimes militares da Argentina, do Brasil e do Chile estiveram entre os muitos governos posteriores que, conscientemente ou não, seguiram o rastro deixado por Robespierre.
Se, por outro lado, nos preocupamos especialmente com o terror como arma empregada pelas oposições políticas, não precisamos retroceder mais que ao final do século 19, aos anarquistas na Rússia, Itália, nos EUA e em outros países.
Discípulos de Michael Bakunin, Peter Kropotkin e outros acreditavam no que chamavam de "a filosofia da bomba" ou "a propaganda pelo ato" (em circunstâncias semelhantes, uma geração posterior falou de "conscientização" política).
Os meios que empregavam eram geralmente o assassinato de líderes políticos -czares, presidentes, generais, bispos, arquiduques e assim por diante-, mas seu verdadeiro alvo era o público, especialmente a imaginação pública. Os anarquistas queriam mostrar ao público que o regime era vulnerável e queriam distanciar a população do governo, provocando o governo a reagir de maneira excessiva à ameaça.
Eles tentavam fazer com que o regime se deslegitimasse ao praticar atos ilegítimos, como a detenção de suspeitos sem julgamento, a tortura de suspeitos e assim por diante.
Mais tarde, seqüestradores, autores de atentados a bomba e de seqüestros políticos compartilharam essas metas -na década de 1960, [o brasileiro] Carlos Marighella chegou a explicitá-las em seu "Minimanual do Guerrilheiro Urbano", um livro que ficou tão famoso em sua época que a Penguin publicou sua tradução inglesa.
Utilizados contra sociedades que se vêem como "civilizadas" e "democráticas", eles as obrigam a apoiar seus valores básicos, empregando métodos incivilizados e antidemocráticos.

Cenas para a TV
É essa "propaganda pelo ato" que eu descrevo como "teatro". Não estou, é claro, negando que edifícios reais são destruídos, que sangue real corre, corpos reais são mutilados e vidas reais são ceifadas com violência. O que quero mostrar é que as pessoas que cometem esses atos pensam, pelo menos em primeiro lugar, no efeito que eles terão sobre os espectadores, especialmente os milhões de pessoas que vêem esses atos pela televisão.
Para citar um exemplo que causou sensação em sua época, o seqüestro do político italiano Aldo Moro, em 1978, e seu subseqüente assassinato foram descritos por um sociólogo como "drama social" (e até mesmo como "teatro de moralidade", já que as Brigadas Vermelhas, que o seqüestraram, encenaram julgamento e execução).
A destruição das Torres Gêmeas e de milhares de pessoas que trabalhavam nelas, no 11 de Setembro, foi percebida por muitos espectadores, entre os quais eu me incluo, como uma performance encenada propositalmente para ser transmitida pela televisão. A política, de modo geral, pode ser vista como drama ou melodrama, com líderes que se apresentam como salvadores de seus países ou heróis de uma peça de teatro de moralidade na qual a trama principal é a luta contra o mal. Nesse teatro, a violência constitui um dos roteiros principais.
Os anarquistas do século 19 concentravam seus esforços na morte de pessoas importantes, de modo que seus atos podem ser descritos não apenas como simbólicos, mas também como utilitários, visando mudanças de regime e também o que enxergavam como sendo a purificação da sociedade por meio da violência.
Hoje, pelo contrário, embora o assassinato do presidente George W. Bush seja facilmente imaginável, os assassinatos reais de pessoas comuns escolhidas aleatoriamente vêm se tornando mais freqüentes -e não apenas porque elas são alvos mais fáceis, sobretudo quando estão usando meios de transporte.
Os assassinatos aleatórios são ao mesmo tempo mais assustadores -poderiam acontecer com qualquer um de nós- e mais evidentemente simbólicos, já que não existe vantagem política a ser auferida deles, exceto o terror que provocam.

Resistência à ocupação
Por quanto tempo essa onda de violência vai durar? Existe pouco consolo em saber que o terror é uma arma freqüentemente empregada por grupos políticos pequenos, tais como os anarquistas ou as Brigadas Vermelhas, que sabem que não podem contar muito com o apoio público.
Por outro lado, pode-se auferir um pouco mais de consolo de outra generalização política, referente às situações nas quais ocorre o recurso ao terror.
Um contexto recorrente desses atos é a resistência à ocupação estrangeira ou à ocupação que seja vista como sendo estrangeira -por exemplo, na Palestina, na Irlanda do Norte, no País Basco ou, voltando mais atrás no tempo, na Argélia sob a dominação francesa ou na França sob a ocupação nazista.
Quando a ocupação termina, a cortina se fecha sobre o teatro da violência.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.


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