São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006 |
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+ Livros O irlandês voador Saem no Brasil três novelas de Beckett que antecipam elementos revolucionários de "Esperando Godot", como o anonimato e a solidão
CÉLIA BERRETTINI ESPECIAL PARA A FOLHA N este ano do centenário de nascimento do criador da mundialmente conhecida "Esperando Godot", ano em que proliferam as homenagens que recordam seu papel revolucionário não apenas no domínio da arte cênica, nada mais natural e mesmo oportuno que a publicação de traduções de obras fundamentais do autor irlandês que se consagrou, com várias obras-primas em francês, sem abandonar sua prestigiosa língua materna. A editora Martins Fontes lança a tradução, feita por Eloisa Araújo Ribeiro, de três novelas -"O Expulso", "O Calmante" e "O Fim"-, compostas em Paris, em 1946, mas que, por razões que aqui não cabem, só foram reunidas em 1955. Ao retornar a Paris, após anos de exílio na Provença, onde foi obrigado a refugiar-se, fugindo da Gestapo, encontra Beckett [1906-89] um clima desolador, com problemas de toda espécie, que não poderiam deixar de afetá-lo. É quando nascem suas novelas curtas ou contos (como preferem alguns), agora em pauta. Mas a década de 40 é das mais ricas de sua produção: "Esperando Godot" (1948-49, mas encenada em 1953) e a famosa "Trilogia" de romances ("Molloy", "Malone Morre", "O Inominável", 1947-1949, em francês), obras revolucionárias em seu gênero, o comprovam. Eu ambíguo . As novelas apresentam ainda elementos "realistas" que logo seriam rejeitados como ultrapassados, mas já exibem elementos que anunciam os romances inovadores da "Trilogia": um "eu" ambíguo que conta uma história, e esse "eu" que ocupa o centro da ficção duvida do que ele próprio narra, da sua veracidade. O final de "O Expulso" é revelador. Lê-se: "Não sei por que contei essa história. Poderia muito bem ter contado outra. Talvez outra hora poderei contar outra. Almas vivas, verão que elas se parecem" (na tradução, aparece o futuro do indicativo, "poderei", em lugar do presente do subjuntivo, "possa", preservando a forma em francês: "Peut-être (...) je pourrai en raconter une autre". Questão de preferência?) Os três personagens-narradores são anônimos, sem rosto, solitários, caminhando sem rumo certo e sem suportarem a presença dos demais, vistos via de regra como não-acolhedores, agressivos.
Pobres solitários que erram todo o tempo sem um espaço onde possam encaixar-se -é a irremediável solidão inerente à criatura humana- ao mesmo tempo em que caem em uma degradação progressiva, cujo clímax está em "O Fim". Se o primeiro narrador é expulso de sua casa confortável e acaba dormindo com o cavalo de um cocheiro de um fiacre, o terceiro também o é, mas de um asilo e, de degradação em degradação, chega a mendigar e a abstrair-se completamente do convívio humano, do mundo. Só lhe resta a morte -"o fim"-, após ter tomado o calmante referido na novela que leva esse título. Aliás, "O Calmante" tem um começo curioso: "Não sei quando morri". Para acalmar-se, o narrador que tem medo de "apodrecer" conta uma história, havendo convergência entre relato e episódio. Diz ele: "O que conto esta noite se passa esta noite, nesta hora que passa". Imóvel, evoca caminhadas. Porém, só encontra o nada. A "expulsão" e a "errança" solitária são recorrentes. Se já surgem em "O Primeiro Amor" (1945), vêm sendo interpretadas a primeira como o "nascimento" (que é uma ruptura) e a segunda como a "vida", na sua sucessão de dias e noites, sem cessar, à procura da calma e do silêncio. O nada. Ou: nascimento/vida/morte. Ou: berço/sepultura. Ou: ventre materno/ sepultura -obsessões beckettianas ilustradas até visualmente, em "Ato sem Palavras 2", pantomima de 1959. É o esquema elementar da existência. Temas ampliados As novelas merecem leitura por sua revelação de um Beckett "antes" de "Esperando Godot", com temas que logo seriam retomados e ampliados. E sua tradução, a despeito de deslizes compreensíveis e falta de notas, representa sem dúvida uma contribuição para ampliar o conhecimento dos "beckettianos" que ainda não tiveram acesso direto às novelas. CÉLIA BERRETTINI é professora emérita da Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Samuel Beckett - Escritor Plural" (ed. Perspectiva), entre outros livros.
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