São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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A escada era alta. Eu havia contado os degraus mil vezes, tanto subindo quanto descendo, mas já não tenho o número presente na memória. Nunca soube se devia dizer um com o pé sobre a calçada, dois com o outro pé sobre o primeiro degrau, e assim por diante, ou se a calçada não devia ser levada em conta. No alto dos degraus topava com o mesmo dilema. No outro sentido, quero dizer, de cima para baixo, dava no mesmo, a palavra não é forte demais. Não sabia por onde começar nem por onde terminar, a verdade é essa. Chegava portanto a três números totalmente diferentes, sem nunca saber qual o certo. E, quando digo que já não tenho o número presente na memória, quero dizer que já não tenho nenhum dos três números presente na memória. É verdade que reencontrando, em minha memória, onde certamente se encontra, apenas um desses números, encontrarei somente ele, sem daí poder deduzir os outros dois. E mesmo se recuperasse dois deles, não saberia o terceiro. Não, seria preciso reencontrar os três, em minha memória, para poder saber todos os três. São de matar, as lembranças. Então não se deve pensar em certas coisas naquelas que nos são mais caras ou, antes, deve-se pensar nelas, pois não pensando nelas corre-se o risco de encontrá-las, na memória, pouco a pouco. Quer dizer que se deve pensar nelas durante um tempo, um bom tempo, todos os dias várias vezes ao dia, até que a lama as recubra com uma camada intransponível. É uma ordem.
No final das contas o número de degraus não vem ao caso. Eu precisava guardar que a escada não era alta, e isso guardei. Mesmo para uma criança, não era alta, comparada a outras escadas que conhecia, de tanto vê-las todos os dias, de tanto subir e descer, e de tanto jogar nos degraus ossinhos e outros jogos cujos nomes ela esqueceria.

Extraído de "O Expulso", de Beckett.
Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.


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