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Verso e reverso
Estudo busca mostrar o nexo entre poesia e política na obra de Ferreira Gullar
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Defendido originariamente como tese de doutoramento na Universidade
Federal do Rio de
Janeiro, "Poesia e Política - A
Trajetória de Ferreira Gullar",
de Eleonora Ziller Camenietzki, procura acompanhar, em
quatro tempos, a atuação política do autor e a maneira como
esta se apresenta na sua poesia
e em seus textos de crítica de
cultura.
O primeiro desses tempos
diz respeito aos anos 50, quando o poeta escreve "A Luta Corporal" [José Olympio] e atua
como crítico de arte no "Suplemento Dominical" do "Jornal
do Brasil", preocupado com a
difusão das vanguardas internacionais no Brasil e a compreensão das "etapas" da arte
contemporânea.
É também o período de aproximação e posterior rompimento com o concretismo, do
qual resulta o movimento neoconcreto carioca, que pretendia recolocar a questão da subjetividade e expressividade no
projeto de ruptura com a cultura sentimental que o grupo
paulista pretendia radicalizar.
O segundo momento proposto pela tese ocupa a década
de 60 e se interrompe com a
publicação de "Dentro da Noite
Veloz" [José Olympio], em
1975. O seu início se dá com a
ida de Gullar para Brasília, como diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal, disposto a "tornar-se brasileiro", o
que, em seu caso, vai se traduzir no esforço de conjugar vanguarda e cultura popular.
Em 62, como presidente do
Centro Popular de Cultura (os
cepecês, da UNE), empenha-se
no "grande esforço nacional
para a educação e conscientização das camadas populares".
Para esse fim, compõe alguns
poemas no gênero do cordel,
como "João Boa-Morte" (composto a pedido de Vianninha
para uma peça sobre reforma
agrária), "Quem Matou Aparecida" e "Peleja de Zé Molesta
com o Tio Sam".
No conhecido ensaio "Cultura Posta em Questão", Gullar
defende então a necessidade de
artistas e intelectuais tomarem
posição política, o que ele próprio faz, aproximando ao máximo a atividade de poeta da vida
política mais imediata.
Anos de exílio
O terceiro momento proposto por Camenietzki refere os
anos do exílio e os sucessivos
desastres vividos pelas esquerdas latino-americanas, interpretados sobretudo por meio
da análise de "Poema Sujo" [José Olympio], o mais conhecido
e celebrado poema de Gullar.
Apoiando-se numa idéia política de exílio e na noção musical de sinfonia, Camenietzki o
entende como um poema no
qual "através da memória entrelaçam-se a história do sofrimento individual e a história
social e política", produzindo-se então um ato de revisão do
legado da cultura socialista e de
sua história oficial.
Neste ponto, embora tributário de uma "poética do engajamento", Ferreira Gullar já a
questiona, dando curso a uma
"mescla de sonhos e fatos" que
não apenas já não traduz um
programa político partidário,
como revela críticas em relação
à ação da esquerda.
O quarto movimento inclui
os três livros escritos depois do
exílio: "Na Vertigem do Dia",
"Barulhos" e "Muitas Vozes"
[todos lançados pela José
Olympio], que Camenietzki
reúne sob a idéia do "desexílio",
de Mario Benedetti, para ressaltar as dificuldades experimentadas pelo retornado para
reencontrar a própria cidade e
o seu cotidiano depois dos anos
de ausência forçada.
Em termos políticos, nesse
período Gullar sustenta ainda a
posição histórica do Partido
Comunista, favorável a amplas
alianças políticas com setores
democráticos nacionais para
derrotar o regime militar e o
imperialismo internacional,
contrariamente à posição
"classista" e pretensamente
mais radical do então charmoso Partido dos Trabalhadores.
Relação "natural"
Nesses livros, ela observa que
a relação entre poesia e política,
antes dada como "natural", é
agora "problematizada", sendo
progressivamente rarefeitas as
referências dos poemas à vida
política do país.
Bem feito em linhas gerais,
não é difícil notar que o estudo
se ressente, entretanto, de se
apoiar na idéia muito batida de
"trajetória", isto é, de um movimento contínuo, com sentido
determinado, que se esclarece
por fases ou etapas principais.
Isso amortiza a acurácia da
análise dos problemas e poemas particulares.
Para a autora, o que se esclarece fundamentalmente é que,
em toda a obra de Gullar, poesia
e política sempre estiverem articuladas, sem que uma desqualificasse a outra, isto é, sem
que a atuação política o impedisse de levar a sério questões
subjetivas ou de composição
poética, assim como estas nunca o fizeram esquecer de seu
compromisso com questões sociais e coletivas.
Parece justo. Mas, como a
grande maioria das teses do gênero, a "trajetória" acaba tomando um feitio de apologia,
isto é, de justificação.
Em sentido estrito, uma apologia é também uma resposta. E
a quem responde Camenietzki
para garantir a excelência da
obra que defende? Para dar um
único título central, trata-se de
rebater o ensaio de João Luiz
Lafetá, "Traduzir-Se - Ensaio
sobre a Poesia de Ferreira Gullar", de 1982, o qual apontava
um "desvio populista" naqueles
poemas de cordel e na sua obra
mais diretamente vinculada
aos anos do CPC.
Nesse ponto, porém, a defesa
não convence, sobretudo porque sua análise se mostra demasiado dependente de analogias circunstanciais e paráfrases de conteúdo, sem o devido
traquejo de análise poética.
Mas não é apenas isso: a bela
crítica de Lafetá não parece ser
o alvo mais estratégico para a
tese. Com ou sem desvio populista, não há nada menos carente de defesa atualmente do que
a poesia de Gullar. Crítica de
qualidade, por outro lado, sim,
faz falta.
Aliás, diante da pobre vida
política e literária do país, hoje,
melhor mesmo seria defender
Gullar de ser transformado no
príncipe dos poetas do Brasil.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária
da Universidade Estadual de Campinas e autor
de "Máquina de Gêneros" (Edusp).
POESIA E POLÍTICA - A TRAJETÓRIA DE FERREIRA GULLAR
Autor: Eleonora Ziller Camenietzki
Editora: Revan (tel. 0/xx/21/2502-7495)
Quanto: R$ 32 (240 págs.)
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