São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Verso e reverso

Estudo busca mostrar o nexo entre poesia e política na obra de Ferreira Gullar

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Defendido originariamente como tese de doutoramento na Universidade Federal do Rio de Janeiro, "Poesia e Política - A Trajetória de Ferreira Gullar", de Eleonora Ziller Camenietzki, procura acompanhar, em quatro tempos, a atuação política do autor e a maneira como esta se apresenta na sua poesia e em seus textos de crítica de cultura.
O primeiro desses tempos diz respeito aos anos 50, quando o poeta escreve "A Luta Corporal" [José Olympio] e atua como crítico de arte no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", preocupado com a difusão das vanguardas internacionais no Brasil e a compreensão das "etapas" da arte contemporânea.
É também o período de aproximação e posterior rompimento com o concretismo, do qual resulta o movimento neoconcreto carioca, que pretendia recolocar a questão da subjetividade e expressividade no projeto de ruptura com a cultura sentimental que o grupo paulista pretendia radicalizar.
O segundo momento proposto pela tese ocupa a década de 60 e se interrompe com a publicação de "Dentro da Noite Veloz" [José Olympio], em 1975. O seu início se dá com a ida de Gullar para Brasília, como diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal, disposto a "tornar-se brasileiro", o que, em seu caso, vai se traduzir no esforço de conjugar vanguarda e cultura popular.
Em 62, como presidente do Centro Popular de Cultura (os cepecês, da UNE), empenha-se no "grande esforço nacional para a educação e conscientização das camadas populares". Para esse fim, compõe alguns poemas no gênero do cordel, como "João Boa-Morte" (composto a pedido de Vianninha para uma peça sobre reforma agrária), "Quem Matou Aparecida" e "Peleja de Zé Molesta com o Tio Sam".
No conhecido ensaio "Cultura Posta em Questão", Gullar defende então a necessidade de artistas e intelectuais tomarem posição política, o que ele próprio faz, aproximando ao máximo a atividade de poeta da vida política mais imediata.

Anos de exílio
O terceiro momento proposto por Camenietzki refere os anos do exílio e os sucessivos desastres vividos pelas esquerdas latino-americanas, interpretados sobretudo por meio da análise de "Poema Sujo" [José Olympio], o mais conhecido e celebrado poema de Gullar. Apoiando-se numa idéia política de exílio e na noção musical de sinfonia, Camenietzki o entende como um poema no qual "através da memória entrelaçam-se a história do sofrimento individual e a história social e política", produzindo-se então um ato de revisão do legado da cultura socialista e de sua história oficial.
Neste ponto, embora tributário de uma "poética do engajamento", Ferreira Gullar já a questiona, dando curso a uma "mescla de sonhos e fatos" que não apenas já não traduz um programa político partidário, como revela críticas em relação à ação da esquerda.
O quarto movimento inclui os três livros escritos depois do exílio: "Na Vertigem do Dia", "Barulhos" e "Muitas Vozes" [todos lançados pela José Olympio], que Camenietzki reúne sob a idéia do "desexílio", de Mario Benedetti, para ressaltar as dificuldades experimentadas pelo retornado para reencontrar a própria cidade e o seu cotidiano depois dos anos de ausência forçada.
Em termos políticos, nesse período Gullar sustenta ainda a posição histórica do Partido Comunista, favorável a amplas alianças políticas com setores democráticos nacionais para derrotar o regime militar e o imperialismo internacional, contrariamente à posição "classista" e pretensamente mais radical do então charmoso Partido dos Trabalhadores.

Relação "natural"
Nesses livros, ela observa que a relação entre poesia e política, antes dada como "natural", é agora "problematizada", sendo progressivamente rarefeitas as referências dos poemas à vida política do país.
Bem feito em linhas gerais, não é difícil notar que o estudo se ressente, entretanto, de se apoiar na idéia muito batida de "trajetória", isto é, de um movimento contínuo, com sentido determinado, que se esclarece por fases ou etapas principais.
Isso amortiza a acurácia da análise dos problemas e poemas particulares. Para a autora, o que se esclarece fundamentalmente é que, em toda a obra de Gullar, poesia e política sempre estiverem articuladas, sem que uma desqualificasse a outra, isto é, sem que a atuação política o impedisse de levar a sério questões subjetivas ou de composição poética, assim como estas nunca o fizeram esquecer de seu compromisso com questões sociais e coletivas.
Parece justo. Mas, como a grande maioria das teses do gênero, a "trajetória" acaba tomando um feitio de apologia, isto é, de justificação. Em sentido estrito, uma apologia é também uma resposta. E a quem responde Camenietzki para garantir a excelência da obra que defende? Para dar um único título central, trata-se de rebater o ensaio de João Luiz Lafetá, "Traduzir-Se - Ensaio sobre a Poesia de Ferreira Gullar", de 1982, o qual apontava um "desvio populista" naqueles poemas de cordel e na sua obra mais diretamente vinculada aos anos do CPC.
Nesse ponto, porém, a defesa não convence, sobretudo porque sua análise se mostra demasiado dependente de analogias circunstanciais e paráfrases de conteúdo, sem o devido traquejo de análise poética.
Mas não é apenas isso: a bela crítica de Lafetá não parece ser o alvo mais estratégico para a tese. Com ou sem desvio populista, não há nada menos carente de defesa atualmente do que a poesia de Gullar. Crítica de qualidade, por outro lado, sim, faz falta.
Aliás, diante da pobre vida política e literária do país, hoje, melhor mesmo seria defender Gullar de ser transformado no príncipe dos poetas do Brasil.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

POESIA E POLÍTICA - A TRAJETÓRIA DE FERREIRA GULLAR
Autor: Eleonora Ziller Camenietzki
Editora: Revan (tel. 0/xx/21/2502-7495)
Quanto: R$ 32 (240 págs.)



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