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BRASIL 500 D.C.
De Varnhagen a FHC, intérpretes do Brasil sempre quiseram mostrar o que se pode esperar do país
O afeto de cada um
LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha
Dois ingredientes se alternam
nas obras de síntese: a apreensão
do caráter sistemático que atravessa as obras examinadas ou a
divulgação de sua temática. Com
frequência, domina o caráter de
divulgação. Não é o caso de "As
Identidades Brasileiras", do historiador baiano José Carlos Reis
(Fundação Getúlio Vargas Editora, 1999). Seu objeto é formado
pela análise de algumas das obras
que, entre 1854-57 (quando Varnhagen publica os cinco volumes
de "A História Geral do Brasil") e
1975, data do ensaio "Notas sobre
o Estado Atual dos Estudos sobre
a Dependência", de Fernando
Henrique Cardoso, consideraram
a especificidade histórico-social
da formação brasileira.
Uma questão primeira se levanta: o termo "identidades" é cabível? Se o for, qualquer análise macroscópica de um processo de formação social equivaleria a um estudo de identidade. Mas, em vez
de análise de processos, o que diferencia um estudo de identidade
não é precisamente a determinação de uma constância, de uma
marca ou complexo nacional, que
confunde ou tende a confundir
identidade com essência? Se a distinção for legítima, alguns dos capítulos haveriam de ser subtraídos.
No conjunto, oito autores são
considerados: Varnhagen, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre,
Sergio Buarque de Holanda, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado
Jr., Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso. A obra tem
um caráter de sistematização,
porque nela sempre volta a questão: que se espera de um país submetido ao processo de formação
social que os autores lhe conferem? É óbvio que esse processo é
relacionado ao próprio equacionamento proposto por cada autor; sendo cada um deles condicionado por sua própria situação
temporal. Assim, para Varnhagen, quando a independência
apenas se consolidava, o problema consistia em afirmar a unidade nacional, tendo por sujeitos "o
homem branco e o Estado imperial". Problema tanto mais agudo
porque "a colônia tinha legado
uma sociedade heterogênea, incompatível social e etnicamente".
Em um momento alto de seu livro, Reis demonstra a repulsa que
Varnhagen manifestava quanto à
escravidão, menos por ser escravidão do que por envolver a vinda
da raça negra. Nosso inconfessado racismo já se manifestava em
nosso primeiro historiador sistemático.
A identidade nacional haveria,
pois, de supor a permanência das
"elites brancas que fizeram a independência", sob a égide da monarquia. Portanto, antes mesmo
que o evolucionismo se difundisse entre nós, a escrita da história
brasileira já continha um traço racista. A questão sistemática principia, pois, com o destaque de um
certo grupo como agente da identidade nacional. Mesmo por acentuar esse traço, Reis passa de Varnhagen diretamente a G. Freyre,
ao qual dedica o capítulo mais extenso de sua obra. Agora, naqueles anos de 1930, ante a crise da
oligarquia, Freyre tranquilizava
seu leitor quanto às próprias possibilidades do país: a miscigenação, sobretudo com o negro, que
criara, no fim do 19, a imagem de
um futuro sombrio, passa a encontrar uma resposta positiva.
O escravo, pela maneira como o
senhor o tratara, nos legara uma
meiguice de trato e à sociedade
uma plasticidade elogiável. A
meiga plasticidade da "democracia racial". Se, como Varnhagen,
Freyre é favorável à manutenção
do legado português, afasta-se
portanto do historiador imperial
pelo louvor do homem moreno.
(Aqui não cabe, embora bem o faça Reis, acentuar que o afastamento do fator étnico em Freyre
está longe de ser unívoco, como
ele, em seus prefácios, apregoava.) Em suma, em "Casa Grande"
a "plasticidade" lusa, fonte de
nossa "democracia racial", justificava a permanência do legado colonial. Como bem diz Reis, com
Freyre "o Brasil se densifica para
trás".
Se seguimos o autor em falar depois de Capistrano, não deixamos
de alertar que, por esse deslocamento, prejudica-se a apreciação
do historiador cearense. De qualquer modo, fica claro que, neste, a
"identidade" brasileira estabelece-se a partir doutra variável: o
historiador cearense afasta-se da
casa grande litorânea para ressaltar a conquista do sertão. Essa
mudança contudo não afeta outra
constante: a preocupação com o
futuro do país. Se, em Varnhagen,
o futuro dependia da manutenção
do regime monárquico que, poucas décadas depois da edição da
"História Geral", sucumbiria; se,
em Freyre, o otimismo dependia
da preservação da lição do passado; em Capistrano, o exame do
desbravamento do país concluía
com uma visão pessimista: a "verdadeira independência econômico-social-mental" não se cumprira.
Destacá-la tem aqui a função de
alertar como o otimismo ou o
pessimismo quanto ao país
acompanha as diversas interpretações propostas. Para seus intérpretes, o Brasil sempre foi um objeto de afeto. Sendo impossível
detalhar as interpretações consideradas, apenas se acentue: o conservadorismo otimista de Freyre
encontrará direção diversa no
"Raízes do Brasil", de Sergio
Buarque. Já não mais caberá a
simples alternativa, pessimismo
ou otimismo. Escrevendo no
mesmo momento da crise das oligarquias, Sergio Buarque adensa
para frente. O futuro do país dependia do Estado que se formasse
a partir do destaque dos centros
urbanos, da industrialização apenas nascente, da capacidade, em
suma, que tivessem os agentes políticos em implantar, contra o
"homem cordial" -aquele que,
guiado por suas afeições, não distingue o público do privado e que,
então, faz da máquina do Estado o
prolongamento de sua propriedade e o dirige como coisa própria
-, o tempo da racionalidade. Dizê-lo é implicitamente chamar a
atenção para o weberianismo de
Sergio Buarque.
(Tem razão o autor em acentuar
a pouca importância de se determinar se foi Sergio Buarque o primeiro, entre nós, a falar de Weber;
basta saber que foi o primeiro a
efetivamente fecundá-lo. Mesmo
por isso, entretanto, dado o sentido amplo que o autor concede a
"identidades", caberia perguntar
por que não incluiu um capítulo
sobre "Os Donos do Poder", de
Raymundo Faoro.)
Nos quatro capítulos restantes,
a questão obsessiva que se pode
esperar do país receberá outra tematização: o culturalismo de Sergio Buarque cederá ao marxismo
de diversos matizes dos autores
então considerados. Se em Werneck Sodré o otimismo se liga à
suposição de que o país está pronto para o salto socialista, se, no
Caio Prado de "A Revolução Brasileira" (1966), o otimismo se
transmuda em crítica agressiva
contra a rigidez do marxismo oficial, que provocara a conduta do
PC quanto à política de João Goulart e a menosprezar a reação que
afinal se impôs quase sem resistência, crê-se, entretanto, ainda
possível manter-se o otimismo.
Nos dois últimos autores tratados, F. Fernandes e F.H. Cardoso,
a análise da dependência quanto
ao capitalismo internacional muda o teor da resposta. À medida
mesmo que Fernandes denunciava o economicismo das análises
marxistas precedentes, compreendia os limites da burguesia
nacional. Esta restringe sua modernização à esfera econômica;
nas demais, apenas faz um discurso farsesco e decorativo. Já em
F.H. Cardoso, surpreendentemente, esse reconhecimento da
dependência não prejudica o otimismo. Daí a comparação que
Reis faz dele com Freyre: assim
como este tomara a miscigenação
como fonte de otimismo, assim
Cardoso separa a "dependência
estrutural" da subordinação colonialista.
A dependência, inevitável -"a
realidade latino-americana é a da
dependência capitalista"-, não
equivaleria à permanência da colonização. É o caso de perguntar:
era o sociólogo que falava ou a
teoria sociológica já servia de
trampolim para o homem político? A consideração da alternativa
nos lembra o início do "Que País
É Este?" (Revan, 1999), do ex-ministro João Sayad: "Não temos
um projeto para o país, deixamos
de ousar, chegamos sem idéias
novas". Terá sido esse o preço a
pagar pela dependência sem subordinação?
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Uerj e da PUC-RJ, autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".
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