São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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EVENTO

O crepúsculo do dever

ROGÉRIO ORTEGA
Coordenador do Programa de Qualidade

Não há associação automática entre individualismo e egoísmo. É falsa a idéia de crise de valores no que se refere às sociedades atuais. Não vivemos no melhor dos mundos possíveis, mas as coisas já foram piores -especialmente se olharmos para a primeira metade do século 20.
Todas essas idéias -expostas pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky em debate promovido pela Folha e pela Fundação Iberê Camargo no auditório do jornal, em 24 de novembro-, embora não configurem um otimismo à doutor Pangloss, são polêmicas o suficiente para sustentar duas horas de discussão. Esse tempo se mostrou, ao final, curto demais.
Debateram com Lipovetsky Luiz Felipe Pondé, professor do Programa de Ciências da Religião da PUC (Pontifícia Universidade Católica) paulista, e Fernando Schuler, professor de história e ciência política da Universidade Luterana do Brasil (RS) e consultor da Fundação Iberê Camargo.
"Ética e política na sociedade contemporânea" foi o tema do encontro. Ele serviu para que Lipovetsky iniciasse sua exposição falando do descrédito da política, estado de espírito, a seu ver, característico da pós-modernidade.
"Nossa cultura se baseia no culto individualista do presente, e isso tem consequências no espaço político", afirmou o filósofo. Desconfia-se dos sindicatos, dos partidos, do Estado, das ideologias. A ausência dos chamados "grandes homens", líderes capazes de impulsionar o sonho coletivo, precisa ser contrabalançada pela sociedade civil, segundo Lipovetsky, com maiores graus de criatividade e autonomia. Assim, a concretização dos desejos dos indivíduos tem de se dar num lugar diferente da política.
O filósofo vê essa mudança de eixo como essencialmente positiva. Lipovetsky negou que o individualismo se identifique sempre com o egoísmo (aliança que, de acordo com ele, é uma forma "irresponsável" de individualismo) e refutou a afirmação de que as democracias pós-modernas tenham destruído valores morais. O termo de comparação, para ele, são os anos 30, com a ascensão dos regimes totalitários e o que chama de depreciação do humanismo em favor de conceitos como o da luta de classes.
Hoje, malgrado todos os problemas enfrentados pelas sociedades, teríamos valores de tolerância e pluralismo mais firmemente enraizados e uma preocupação com a proteção ao ser humano em níveis nunca vistos.
Para Lipovetsky, isso se relaciona ao que ele considera o "crepúsculo do dever" -conceito diferente do de "desaparecimento do dever". A moral, diz ele, não tem mais um rosto autoritário; é uma espécie de moral "à la carte", adaptada aos valores de bem-estar do individualismo contemporâneo. Nem por isso, porém, deixa de ser uma moral.
Ao final de sua fala, Lipovetsky argumentou com a necessidade de responsabilizar o individualismo, em vez de combatê-lo -e ressaltou o papel do Estado nessa equação. O mercado, eficaz para produzir riqueza, não poderia garantir sozinho a justiça social.
Luiz Felipe Pondé questionou a possibilidade de essas idéias viajarem de um lado a outro do Atlântico sem prejuízos. Isto é, a tendência a abraçar o individualismo de uma maneira radical, sem dialetizá-lo, caracterizaria uma sociedade como a brasileira, onde o "é proibido proibir" estaria em jogo há muito tempo.
Schuler levantou dúvidas sobre o próprio conceito de pós-modernidade. Para ele, algumas supostas manifestações do descrédito na política -como a alta abstenção eleitoral nos EUA- podem, na verdade, representar a confiança no funcionamento de certas instituições, o que seria uma conquista da modernidade.


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