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PONTO DE FUGA
Transe nº 9
JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York
Tecer os mais belos sons jamais produzidos. Há mais do
que técnica, há mais do que
precisão. Nenhuma orquestra
-e existem, cada vez mais,
muitas, esplêndidas- consegue a transfiguração sonora da
mítica, da excelsa, Filarmônica
de Berlim. Depois dos fraseados longos, eternidades em fluxo, provocadores de vertigens
espiritualizadas, regidos por
Furtwängler durante tantos
anos, seguiu-se a busca da
mais impossível beleza nos
timbres, das expansões harmônicas aéreas e cintilantes,
na era Karajan. A Karajan sucedeu Claudio Abbado, o primeiro italiano titular da lendária falange. O Carnegie Hall,
em NY, é imenso, mas, dentre
todas as grandes salas de concerto, possui talvez a mais sensível acústica, transparente,
dosada. Ali não há lugares privilegiados, porque tudo se ouve com precisão cristalina de
qualquer poltrona, mesmo da
mais distante. Nessa sala única,
Abbado e sua orquestra alemã
deram um concerto. Estrearam, nos EUA, a suíte de "Prometeo", na qual Luigi Nono se
renovava à escuta de Scelsi.
Depois, interpretaram a "Nona
Sinfonia" de Gustav Mahler.
Abbado transformou as sonoridades incandescentes e douradas de Karajan no veludo e
na seda de que é feita a roupa
dos anjos. Os pianíssimos e os
silêncios entremeados do final
pulsavam entre o corpóreo e o
intocável.
Com Abbado, a Filarmônica
de Berlim adquiriu uma espessura sensual, sensualidade que
pode ser também caminho para a transcendência, como tantos grandes místicos sempre
souberam.
Celulite - Na Gagosian Gallery do Soho, imensas telas de
Jenny Saville, artista britânica
também presente na exposição
"Sensation", do Soho. Ela havia feito fotografias de si própria, esmagando suas carnes
balofas contra uma placa
transparente, num resultado
inquietador, sugerindo as deformações de Bacon.
As pinturas evocam mais Lucien Freud, mas as referências
não subtraem interesse específico: são corpos femininos quase sempre, grotescos, excessivos, esparramando-se sem limites, revelando, por trás da
pele, mundos orgânicos doentios, quase pútridos, azulados e
róseos.
Paira uma fatalidade obesa
sobre essas mulheres imensas.
Das belezas frescas e plenas, sadias e jovens, pintadas por Rubens às "Banhistas" de Courbet, nas quais Proudhon via
mulheres deformadas pela gula e pela ociosidade burguesas,
chega-se, numa descida, às
monstruosas imagens de
Jenny Saville. São feitas amorosamente, com a melhor e mais
cuidada qualidade pictural.
Nada dos gordos gozadinhos
de Botero, mas uma inversão
radical no tratamento do nu feminino, o tema mais encantador e erótico da história das artes.
Porgi amor - "Le Nozze di Figaro", de Mozart, no Met.
Montagem neutra, direção
precisa, mas rotineira, de Edo
de Waart, maestro que nunca
primou nem pela vivacidade
nem pela poesia. Mas a condessa cantada por Hei-Kyung
Hong, com um timbre profundo e caloroso, demonstra que a
atual escola coreana de canto
não produz apenas uma impressionante quantidade de artistas: ela atinge também níveis
muito altos de qualidade vocal.
Eternidade - A glória de Pernalonga e Patolino chegará ao
fim dos séculos. É o governo federal americano quem garante. "Duck Amuk", genial desenho de 7 minutos de Chuck Jones e Mel Blanc, foi incluído
pela Biblioteca do Congresso
Americano numa lista especial
-a National Film Registry-
que escolhe obras por suas
qualidades "culturais, artísticas ou estéticas". Entrar nessa
classificação, de certo modo,
significa adquirir imortalidade
física, já que o governo americano se compromete em preservar "for all time" os filmes
ali presentes.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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