São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PONTO DE FUGA

Transe nº 9

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

Tecer os mais belos sons jamais produzidos. Há mais do que técnica, há mais do que precisão. Nenhuma orquestra -e existem, cada vez mais, muitas, esplêndidas- consegue a transfiguração sonora da mítica, da excelsa, Filarmônica de Berlim. Depois dos fraseados longos, eternidades em fluxo, provocadores de vertigens espiritualizadas, regidos por Furtwängler durante tantos anos, seguiu-se a busca da mais impossível beleza nos timbres, das expansões harmônicas aéreas e cintilantes, na era Karajan. A Karajan sucedeu Claudio Abbado, o primeiro italiano titular da lendária falange. O Carnegie Hall, em NY, é imenso, mas, dentre todas as grandes salas de concerto, possui talvez a mais sensível acústica, transparente, dosada. Ali não há lugares privilegiados, porque tudo se ouve com precisão cristalina de qualquer poltrona, mesmo da mais distante. Nessa sala única, Abbado e sua orquestra alemã deram um concerto. Estrearam, nos EUA, a suíte de "Prometeo", na qual Luigi Nono se renovava à escuta de Scelsi. Depois, interpretaram a "Nona Sinfonia" de Gustav Mahler. Abbado transformou as sonoridades incandescentes e douradas de Karajan no veludo e na seda de que é feita a roupa dos anjos. Os pianíssimos e os silêncios entremeados do final pulsavam entre o corpóreo e o intocável.
Com Abbado, a Filarmônica de Berlim adquiriu uma espessura sensual, sensualidade que pode ser também caminho para a transcendência, como tantos grandes místicos sempre souberam.

Celulite - Na Gagosian Gallery do Soho, imensas telas de Jenny Saville, artista britânica também presente na exposição "Sensation", do Soho. Ela havia feito fotografias de si própria, esmagando suas carnes balofas contra uma placa transparente, num resultado inquietador, sugerindo as deformações de Bacon.
As pinturas evocam mais Lucien Freud, mas as referências não subtraem interesse específico: são corpos femininos quase sempre, grotescos, excessivos, esparramando-se sem limites, revelando, por trás da pele, mundos orgânicos doentios, quase pútridos, azulados e róseos.
Paira uma fatalidade obesa sobre essas mulheres imensas. Das belezas frescas e plenas, sadias e jovens, pintadas por Rubens às "Banhistas" de Courbet, nas quais Proudhon via mulheres deformadas pela gula e pela ociosidade burguesas, chega-se, numa descida, às monstruosas imagens de Jenny Saville. São feitas amorosamente, com a melhor e mais cuidada qualidade pictural. Nada dos gordos gozadinhos de Botero, mas uma inversão radical no tratamento do nu feminino, o tema mais encantador e erótico da história das artes.

Porgi amor - "Le Nozze di Figaro", de Mozart, no Met. Montagem neutra, direção precisa, mas rotineira, de Edo de Waart, maestro que nunca primou nem pela vivacidade nem pela poesia. Mas a condessa cantada por Hei-Kyung Hong, com um timbre profundo e caloroso, demonstra que a atual escola coreana de canto não produz apenas uma impressionante quantidade de artistas: ela atinge também níveis muito altos de qualidade vocal.

Eternidade - A glória de Pernalonga e Patolino chegará ao fim dos séculos. É o governo federal americano quem garante. "Duck Amuk", genial desenho de 7 minutos de Chuck Jones e Mel Blanc, foi incluído pela Biblioteca do Congresso Americano numa lista especial -a National Film Registry- que escolhe obras por suas qualidades "culturais, artísticas ou estéticas". Entrar nessa classificação, de certo modo, significa adquirir imortalidade física, já que o governo americano se compromete em preservar "for all time" os filmes ali presentes.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com



Texto Anterior: A explosão do imponderável
Próximo Texto: Risco no disco - Ledusha Spinardi: Agenda condicional
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.