São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Ponto de fuga

Formas e cores

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há alguns meses, a Neue Nationalgalerie de Berlim, museu de arte moderna, organizou uma retrospectiva consagrada a Ernst Kirchner (1880-1938). Ele foi gravador, pintor, escultor, um dos fundadores do movimento "Die Brücke" (A Ponte), de Dresden, em 1905, abrindo portas para a arte moderna na Alemanha. Teve um destino trágico. Em 1937, os nazistas confiscam 639 obras suas, que rotulavam de degeneradas. No ano seguinte, suicida-se.
Kirchner e "Die Brücke" foram classificados, a posteriori, entre os expressionistas. Ora, expressionismo nunca foi um movimento claramente estruturado, como o cubismo e o futurismo. Subjetivo, pressupõe irrupções singulares de angústia, de mal-estar insuportável provocado pelo mundo contemporâneo. "O Grito", de [Edvard] Munch (1893), é tela emblemática, precoce e inaugural: seu tom de desespero está, porém, bem distante daquele criado pelos companheiros da "Die Brücke".
Kirchner vibra cores exploradas por Gauguin, por Matisse, em transparências cristalinas, dispostas sobre superfícies que são contidas por um contorno firme. Alonga as formas, equilibra-as precariamente, com um sentido enérgico do dinamismo.
Tudo é tenso, lírico, mesmo quando a ironia desponta e adquire uma beleza expansiva. O "Nu Deitado diante de um Espelho" (1909-10), é uma espécie de Matisse renovado na vivacidade das linhas, pulsando em acordes de verde e amarelo, favoritos do pintor. "A Casa entre Árvores", de 1913, transforma as copas em leques exuberantes, agitados pelo vento.

Lá e cá - A exposição Kirchner de Berlim impõe a lembrança de Lasar Segall [1891-1957], que morou em Dresden nos tempos da "Die Brücke". Saltam aos olhos as afinidades nas formas, na composição, nas cores, de suas obras com as de Kirchner ou de Heckel. Uma visão nacionalista das coisas diz que Segall descobriu luz e cor no Brasil. Vera d'Horta, no seu livro essencial sobre o pintor, transcreve o texto em que ele conta como, olhando através de pedaços de vidros vermelhos, amarelos, verdes, azuis, teve, na infância, experiência cromática definitiva, que combina muito com suas telas de Dresden.
Mas, ao mesmo tempo, a comparação com Kirchner revela o quanto Segall é mais grave, mais estruturado, mais "apolíneo", como disse dele Gilda de Mello e Souza. Sua angústia não é emblemática nem imediata: ela se insinua aos poucos, por meio da estrutura rigorosa. As crenças peremptórias das ideologias nacionalistas fizeram de Segall um "expressionista brasileiro", ele que, de fato, pouco deixou se contaminar pelas convicções nacionais embutidas no modernismo local.
Kirchner nunca esteve no Brasil. Mas seus tons de bandeira auriverde, sua exuberância que faz uma gravura de banhistas parecer cena de indígenas nos trópicos, são infinitamente mais capitosos e "brasileiros" que os de Segall. Kirchner não foi imune aos exotismos generalizados do tempo: suas paisagens sensuais correspondem bastante ao imaginário que os brasileiros andavam fabricando para uso próprio.

Sorte - Ainda bem que não foi Kirchner quem veio ao Brasil. Se a pressão nacionalista se exerceu em algumas interpretações sobre Segall, imagine-se o que não se faria com as obras de Kirchner. Ainda mais: seria muito difícil convencer que seu "tropicalismo" foi mental e imaginário. Como o são todos, e o nosso também, por sinal.

Incõe - A coerção ideológica era forte, e Segall não podia ficar inteiramente insensível ao clima nacional-brasileiro da modernidade e do Estado Novo. Mas foi uma adesão de superfície. "Bananal", da Pinacoteca de São Paulo (1927), é, antes de tudo, uma construção soberana de prismas verdes por trás da cabeça de um negro. Na verdade, a grandeza de Segall possui vínculo definitivo com a cultura judaica, do qual ele nunca abdicou e que alimentou algumas de suas obras-primas mais humanistas, como o "Navio de Emigrantes" ou "Guerra".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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