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Ponto de fuga
Formas e cores
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há alguns meses, a Neue Nationalgalerie de Berlim, museu de arte moderna, organizou uma retrospectiva consagrada a Ernst Kirchner (1880-1938). Ele
foi gravador, pintor, escultor, um
dos fundadores do movimento
"Die Brücke" (A Ponte), de Dresden, em 1905, abrindo portas para a
arte moderna na Alemanha. Teve
um destino trágico. Em 1937, os nazistas confiscam 639 obras suas,
que rotulavam de degeneradas. No
ano seguinte, suicida-se.
Kirchner e "Die Brücke" foram
classificados, a posteriori, entre os
expressionistas. Ora, expressionismo nunca foi um movimento claramente estruturado, como o cubismo e o futurismo. Subjetivo, pressupõe irrupções singulares de angústia, de mal-estar insuportável
provocado pelo mundo contemporâneo. "O Grito", de [Edvard]
Munch (1893), é tela emblemática,
precoce e inaugural: seu tom de desespero está, porém, bem distante
daquele criado pelos companheiros da "Die Brücke".
Kirchner vibra cores exploradas
por Gauguin, por Matisse, em
transparências cristalinas, dispostas sobre superfícies que são contidas por um contorno firme. Alonga
as formas, equilibra-as precariamente, com um sentido enérgico
do dinamismo.
Tudo é tenso, lírico, mesmo
quando a ironia desponta e adquire
uma beleza expansiva. O "Nu Deitado diante de um Espelho" (1909-10), é uma espécie de Matisse renovado na vivacidade das linhas, pulsando em acordes de verde e amarelo, favoritos do pintor. "A Casa
entre Árvores", de 1913, transforma
as copas em leques exuberantes,
agitados pelo vento.
Lá e cá - A exposição Kirchner de
Berlim impõe a lembrança de Lasar
Segall [1891-1957], que morou em
Dresden nos tempos da "Die Brücke". Saltam aos olhos as afinidades
nas formas, na composição, nas cores, de suas obras com as de Kirchner ou de Heckel. Uma visão nacionalista das coisas diz que Segall descobriu luz e cor no Brasil. Vera
d'Horta, no seu livro essencial sobre o pintor, transcreve o texto em
que ele conta como, olhando através de pedaços de vidros vermelhos, amarelos, verdes, azuis, teve,
na infância, experiência cromática
definitiva, que combina muito com
suas telas de Dresden.
Mas, ao mesmo tempo, a comparação com Kirchner revela o quanto Segall é mais grave, mais estruturado, mais "apolíneo", como disse
dele Gilda de Mello e Souza. Sua angústia não é emblemática nem imediata: ela se insinua aos poucos, por
meio da estrutura rigorosa. As
crenças peremptórias das ideologias nacionalistas fizeram de Segall
um "expressionista brasileiro", ele
que, de fato, pouco deixou se contaminar pelas convicções nacionais
embutidas no modernismo local.
Kirchner nunca esteve no Brasil.
Mas seus tons de bandeira auriverde, sua exuberância que faz uma
gravura de banhistas parecer cena
de indígenas nos trópicos, são infinitamente mais capitosos e "brasileiros" que os de Segall. Kirchner
não foi imune aos exotismos generalizados do tempo: suas paisagens
sensuais correspondem bastante ao
imaginário que os brasileiros andavam fabricando para uso próprio.
Sorte - Ainda bem que não foi
Kirchner quem veio ao Brasil. Se a
pressão nacionalista se exerceu em
algumas interpretações sobre Segall, imagine-se o que não se faria
com as obras de Kirchner. Ainda
mais: seria muito difícil convencer
que seu "tropicalismo" foi mental e
imaginário. Como o são todos, e o
nosso também, por sinal.
Incõe - A coerção ideológica era
forte, e Segall não podia ficar inteiramente insensível ao clima nacional-brasileiro da modernidade e do
Estado Novo. Mas foi uma adesão
de superfície. "Bananal", da Pinacoteca de São Paulo (1927), é, antes
de tudo, uma construção soberana
de prismas verdes por trás da cabeça de um negro. Na verdade, a
grandeza de Segall possui vínculo
definitivo com a cultura judaica, do
qual ele nunca abdicou e que alimentou algumas de suas obras-primas mais humanistas, como o "Navio de Emigrantes" ou "Guerra".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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