São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Recém-lançada nos EUA, "Borges - Uma Vida" apequena a obra do escritor argentino, mas faz um bom relato do massacre político de que foi vítima

Borges no divã

Reprodução
O escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) durante viagem à Sicília (Itália), em 1984


DAVID FOSTER WALLACE
PARA O "THE NEW YORK TIMES"

Existe um paradoxo infeliz envolvendo as biografias literárias. A maioria dos leitores interessados em ler a biografia de um escritor, especialmente uma biografia tão longa e abrangente quanto "Borges - A Life", de Edwin Williamson, costuma ser formada por admiradores da obra do dito escritor. Assim, essas pessoas normalmente serão idealizadoras daquele escritor e, conscientemente ou não, perpetradoras de uma falácia intencional. Parte da atração do trabalho desse escritor, para esses fãs, será justamente o selo distintivo da personalidade do escritor, suas predileções, seu estilo, seus tiques e obsessões particulares.
No entanto freqüentemente temos a impressão de que a pessoa que vamos encontrar na biografia literária não poderia, de maneira alguma, ter escrito as obras que admiramos. Quanto mais íntima e completa a biografia, mais forte essa sensação, de maneira geral.
No caso atual, o Jorge Luis Borges que emerge do livro de Williamson -um filhinho da mamãe vaidoso, tímido, pomposo, que durante boa parte de sua vida foi dado a obsessões românticas confusas- é o mais distante que se poderia imaginar do escritor límpido, espirituoso, pansófico e profundamente adulto que conhecemos de seus livros. Corretamente ou não, qualquer pessoa que respeita e admira Borges como um dos melhores e mais importantes ficcionistas do século passado vai opor resistência a essa dissonância e, para explicá-la e mitigá-la, vai procurar defeitos evidentes na biografia redigida por Williamson. O livro não a desapontará.
Edwin Williamson é um acadêmico de Oxford e hispanista respeitado, cujo "Penguin History of Latin America" é uma pequena obra-prima de lucidez e triagem. Assim, não surpreende que seu "Borges" comece bem, com um esboço fascinante da história argentina e do lugar ocupado pela família Borges nessa história. Para Williamson, o maior conflito inerente ao caráter nacional argentino se dá entre a "espada" do liberalismo europeu civilizador e o "punhal" do individualismo romântico dos habitantes dos pampas, e ele argumenta que a vida e obra de Borges só podem ser compreendidas adequadamente quando analisadas dentro do contexto desse conflito, especialmente da maneira como ele se desenrola em sua infância.
No século 19, os avós de ambos os lados de sua família se destacaram em batalhas importantes pela independência da Espanha e o estabelecimento do governo argentino centralizado, e a mãe de Borges era obcecada pela glória histórica da família. O pai de Borges, homem obscurecido pela sombra paterna heróica sob a qual viveu, evidentemente fez coisas como dar a seu filho um punhal de verdade para usar contra os valentões fanfarrões na escola e, mais tarde, o mandou a um bordel para ser desvirginado. O jovem Borges foi reprovado em ambos os "testes", cujas cicatrizes o marcaram para sempre e, para Williamson, aparecem por toda parte em sua ficção.

Leitor atroz
É nessas afirmações sobre coisas pessoais codificadas na arte do escritor que consiste o defeito real do livro. Para sermos justos, isso não passa de um caso pronunciado de uma síndrome que parece ser comum a biografias literárias, tão comum que possivelmente aponte para uma falha do próprio gênero.
O grande problema de "Borges -Uma Vida" é que Williamson é um leitor atroz da obra de Borges; suas interpretações equivalem a um tipo de crítica psicológica simplista e desonesta. Percebe-se por que esse problema talvez seja intrínseco ao gênero. Um biógrafo quer que a história que escreve seja não só interessante, mas literariamente valiosa. Para assegurar que isso aconteça, a biografia precisa fazer com que a vida pessoal e a do escritor e as provações psicológicas pelas quais ele passa pareçam cruciais para sua obra.
A idéia é que não podemos interpretar uma obra de arte verbal corretamente a não ser que conheçamos as circunstâncias pessoais e/ou psicológicas que cercam sua criação. O fato de isso simplesmente ser pressuposto como axioma por muitos biógrafos é um problema; outro problema é o fato de que essa abordagem funciona muito melhor com alguns escritores do que com outros.
"Borges - Uma Vida" mostra seu pior lado quando discute trechos específicos de trabalhos à luz da vida pessoal de Jorge Luis Borges. Infelizmente, ele discute praticamente tudo o que Borges escreveu. E, em caso após caso, as leituras resultantes são superficiais, forçadas e distorcidas -como, de fato, não poderiam deixar de ser, se o objetivo é justificar o projeto do biógrafo.
Exemplo aleatório: "A Espera", um conto curtíssimo maravilhoso que aparece na coletânea de contos "O Aleph", de 1949, assume a forma de uma homenagem em camadas a Hemingway, aos filmes de gângster e ao submundo de Buenos Aires.
O problema não é apenas que Williamson interpreta tudo na obra de Borges como tendo correlação com o estado emocional do autor. É que ele tende a reduzir todos os conflitos psíquicos e os problemas pessoais de Borges à busca por mulheres.
Aqui, a teoria de Williamson envolve dois elementos importantes: a incapacidade de Borges de opor resistência a sua mãe dominadora e a sua crença, baseada numa leitura ingênua de Dante, de que "apenas o amor de uma mulher poderia libertá-lo da irrealidade infernal que compartilhava com seu pai e inspirá-lo a escrever uma obra-prima capaz de justificar sua vida". A fórmula é aplicada igualmente a obras famosas, como "O Aleph", cujo subtexto autobiográfico faz referências ao amor frustrado de Borges por Norah Lange, e a contos menos conhecidos, como "O Zahir".
A verdade, dita resumidamente, é que Borges pode ser descrito como a grande ponte entre o modernismo e o pós-modernismo na literatura mundial. Ele é modernista na medida em que sua ficção revela uma mente humana de primeira grandeza destituída de todos os alicerces de certezas religiosas ou ideológicas -assim, uma mente voltada inteiramente sobre si msma. Seus contos são herméticos e voltados para dentro, dotados do terror oblíquo de um jogo cujas regras são desconhecidas e no qual os trunfos que estão em jogo são tudo. E a mente responsável por essas histórias é quase sempre uma mente que vive nos livros e por meio deles.

Moderno e pós-moderno
Isso acontece porque Borges, o escritor, é fundamentalmente um leitor. O caráter alusivo denso e obscuro de sua ficção não é um tique nem sequer, realmente, um estilo; e não é por acaso que seus melhores contos com freqüência são falsos ensaios ou resenhas de livros fictícios ou então possuem textos no centro de suas tramas ou, ainda, têm como protagonistas Homero, Dante ou Averróes. Quer seja por razões artísticas seminais, por motivos pessoais neuróticos ou por ambas as coisas, Borges desmonta o leitor e o escritor e, com eles, forma um novo tipo de agente estético, alguém que cria histórias a partir de histórias, alguém para quem a leitura é, essencial e conscientemente, um ato criativo.
Isso, entretanto, não acontece por Borges ser um metaficcionista ou um crítico inteligentemente disfarçado. É porque ele sabe que, em última análise, não existe diferença -que assassino e vítima, detetive e fugitivo, artista e platéia são o mesmo. Obviamente, isso tem implicações pós-modernas, mas o insight de Borges é, na realidade, místico e profundo. E também assustador, já que a linha que separa monismo e solipsismo é fina e porosa, mais relacionada ao espírito do que à mente propriamente dita. E, como num programa artístico, esse tipo de colapso/transcendência da identidade individual também é paradoxal, exigindo uma auto-obsessão intensa associada a um apagar quase total do eu e da personalidade.
Deixando manias e obsessões de lado, o que faz um conto de Borges ser borgiano é o senso estranho e inevitável que se tem de quem ninguém o fez e todos o fizeram.
É por isso, por exemplo, que é tão irritante ver Williamson descrever "O Imortal" e "A Escrita de Deus" -dois dos maiores e mais arrepiantes contos místicos de todos os tempos, ao lado dos quais as epifanias de Joyce ou as redenções de O'Connor parecem pálidas e grosseiras -como produtos respectivamente da "aflição multifacetada" de Borges ou de sua "indiferença para com seu próprio destino", depois de ter sido abandonado por várias namoradas idealizadas.
A biografia é provavelmente mais valiosa enquanto relato da evolução política de Borges. Uma fofoca literária comumente feita a respeito do escritor diz que a razão pela qual ele não recebeu um Prêmio Nobel foi que ele teria apoiado as pavorosas juntas autoritárias argentinas dos anos 1960 e 1970. Por meio de Williamson, porém, ficamos sabendo que as posições políticas de Borges na realidade foram muito mais complexas e mais trágicas do que isso.
Filho de uma família liberal tradicional e, em sua juventude, esquerdista declarado, Borges chegou a ser um dos primeiros e mais ousados adversários públicos do fascismo europeu e do nacionalismo de direita que este suscitou na Argentina. O que o modificou foi Perón, cuja assustadora ditadura populista de direita gerou em Borges uma repulsa tamanha que ele se aliou à Revolución Libertadora, repressivamente contrária a Perón.
A situação de Borges após a primeira derrocada de Perón, em 1955, é repleta de paralelos preocupantes para o leitor americano. Como o peronismo ainda gozava de enorme popularidade entre a classe trabalhadora pobre da Argentina, o ditador exilado conservou poder político enorme e teria ganho qualquer eleição nacional democrática que tivesse sido realizada nos anos 1950.
Isso levou aqueles que acreditavam na democracia liberal (como era o caso de Borges) ao mesmo tipo de impasse que os EUA iriam enfrentar alguns anos mais tarde no Vietnã: como defender a democracia quando se sabe que, se tiver a oportunidade para isso, a maior parte do eleitorado vai votar pelo fim do voto democrático? Basicamente, então, Borges concluiu que as massas argentinas tinham sido a tal ponto ludibriadas por Perón e sua mulher que o retorno à democracia seria possível apenas depois que o país tivesse sido limpo do peronismo.
A análise que Williamson faz da situação difícil em que essa decisão colocou Borges e seu relato do massacre que a esquerda argentina cometeu com a reputação política de Borges -em retaliação por tê-la abandonado- formam os melhores capítulos do livro.

David Foster Wallace é um dos principais escritores norte-americano atuais e autor de "Oblivion" (Little, Brown). A íntegra deste texto foi publicada no "New York Times Book Review".
Tradução de Clara Allain.


Borges - A Life
574 págs., US$ 34,95 de Edwin Williamson. Ed. Viking.

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.com



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