São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O filósofo alemão discute como a tensão histórica entre sociedade secular e religião sofreu uma reviravolta crucial a partir dos atentados de 11 de setembro

Fé e conhecimento

Associated Press
Turistas passeam em teleférico com as torres da catedral de Colônia (Alemanha) ao fundo


por Jürgen Habermas

Quando a opressora atualidade nos rouba a escolha do tema, é grande a tentação de disputar qual dos Johns Waynes entre nós, intelectuais, vai sacar a arma e disparar mais rápido. Ainda há pouco os espíritos divergiam sobre um outro tema quanto à questão de se e até que ponto devemos nos submeter à auto-instrumentalização da engenharia genética ou mesmo perseguir o objetivo da auto-otimização. Quanto aos primeiros passos nesse caminho, havia se detonado entre os pregadores de uma ciência organizada e os das igrejas uma luta das potências da fé.
Um lado temia o obscurantismo e uma limitação cética, com resquícios de sentimentos arcaicos, em relação à ciência. O outro lado voltava-se contra a crença cientificista no progresso de um naturalismo cru, que sepulta a moral. Em 11 de setembro, no entanto, a tensão entre sociedade secular e religião explodiu de uma maneira totalmente diferente.
Os assassinos decididos ao suicídio que deram a aviões comerciais civis a função de armas vivas e os direcionaram contra as fortalezas da civilização ocidental foram, pelo que se soube do testamento de Atta e depois pela boca de Osama bin Laden, motivados por convicções religiosas. Para eles, os símbolos da modernidade globalizada encarnam o Grande Satã. Porém também para nós, testemunhas oculares do acontecimento "apocalíptico" na tela de TV, irrompem imagens bíblicas quando vemos repetido de modo masoquista-lascivo o desmoronamento das torres gêmeas de Manhattan. E o discurso de retaliação, com o qual não só o presidente norte-americano reagiu contra o inconcebível, adquire um tom de Velho Testamento. Como se o atentado ensandecido tivesse feito vibrar no mais íntimo da sociedade secular uma corda religiosa, por todos os lados lotaram-se as sinagogas, igrejas e mesquitas.
Essa correspondência encoberta, aliás, não se transformou em uma atitude simétrica de ódio na prece da comunidade civil-religiosa no estádio de Nova York, há algumas semanas: em meio a todo o patriotismo, não se levantou nenhuma voz pela liberação bélica do direito penal nacional.
Apesar de sua linguagem religiosa, o fundamentalismo é um fenômeno exclusivamente moderno e, portanto, não apenas um problema dos outros. Nos autores islâmicos do crime logo chamou a atenção o assincronismo entre os motivos e os meios. Aí se espelha um assincronismo de cultura e sociedade nas terras natais dos acusados, o qual só se desenvolveu devido a uma modernização acelerada e radicalmente desenraizadora. O que para nós em circunstâncias mais favoráveis podia ser experimentado pelo menos como um processo de destruição criativa não abre ali nenhuma perspectiva de compensação que se possa experimentar para a dor da desintegração de formas tradicionais de vida.
Além disso, a perspectiva de melhora das condições materiais de vida é uma só. Decisiva é a reviravolta espiritual bloqueada por sentimentos de humilhação, reviravolta que se expressa politicamente na separação de religião e Estado. Também na Europa, a quem a história reservou séculos para achar uma atitude sensível em relação à cabeça de Jano da era moderna, a "secularização" continua sendo, como se pode observar na controvérsia em torno da engenharia genética, carregada de sentimentos ambivalentes.
Ortodoxias ferrenhas existem tanto no Ocidente quanto no Orientes Médio e Extremo, entre cristãos e judeus, da mesma forma como entre muçulmanos. Quem quer evitar uma guerra entre culturas deve se lembrar da dialética inconclusa do próprio processo, ocidental, de secularização. A "guerra contra o terrorismo" não é guerra nenhuma, e no terrorismo se expressa também o choque funesto e sem palavras de mundos que, para além da violência muda dos terroristas ou dos mísseis, têm de desenvolver uma linguagem comum.

A sociedade pós-secular Diante de uma globalização que se impõe sobre mercados ilimitados, muitos de nós desejam um retorno do dado político em outra forma, não no modelo hobbesiano original do Estado de segurança globalizado, ou seja, nas dimensões de polícia, serviço secreto e aparato militar, mas como força civilizadora determinante em nível mundial. No momento, não nos resta muito mais do que a pálida esperança de uma artimanha da razão e um pouco de auto-reflexão. Pois aquele abalo da mudez rompe também os próprios domínios.
Só vamos ter a dimensão exata dos riscos de uma secularização que sai dos trilhos em certos locais quando nos estiver claro o que a secularização significa em nossas sociedades pós-seculares. É com essa intenção que retomo o velho tema "fé e conhecimento".
A palavra "secularização" teve, de início, o significado jurídico da expropriação forçada dos bens da igreja com sua cessão ao poder estatal secular. Esse significado foi vertido na íntegra para caracterizar o surgimento da modernidade cultural e social. Desde então, ligam-se à "secularização" avaliações opostas, dependendo daquilo que colocamos em primeiro plano: a bem-sucedida domesticação ("Zähmung") da autoridade eclesiástica pelo poder mundano ou o ato da apropriação ilegal. Segundo uma leitura, modos de pensar e de viver religiosos são levados à substituição por equivalentes racionais, em todo caso superiores; segundo a outra leitura, as formas de vida e pensamento modernas são objeto de descrédito como bens subtraídos ilegitimamente.
O modelo do deslocamento forçado sugere uma interpretação progressista-otimista da modernidade desencantada; o modelo da desapropriação, uma interpretação teórica que fala em decadência, em desabrigo da modernidade. Ambas as interpretações cometem o mesmo erro. Ambas vêem a secularização como uma espécie de jogo entre as forças produtivas da ciência e da tecnologia desencadeadas pelo capitalismo, de um lado, e os poderes persistentes da religião e da igreja, de outro, cujo resultado seria sempre zero. Um só pode vencer à custa do outro e, mais especificamente, segundo regras de jogo liberais, as quais privilegiam as forças impulsivas da modernidade.
Essa imagem não se ajusta a uma sociedade pós-secular que se prepara para a continuidade de existência de comunidades religiosas num ambiente de secularização incessante. Fica desfocado o papel civilizatório de um "common sense" democraticamente ilustrado, que ao mesmo tempo, em meio ao vozerio do tipo "Kulturkampf" [luta comandada por Bismark, na Alemanha, contra os católicos, entre 1871 e 1878", trilha um caminho próprio como terceiro partido entre ciência e religião. Claro que, na visão do Estado liberal, só merecem o predicado de "razoáveis" as comunidades religiosas que "por seu próprio juízo" abram mão de uma imposição violenta de suas verdades de fé e da obrigação de uma consciência militante contra os próprios adeptos e mais ainda de uma manipulação para atentados suicidas. Tal juízo se deve a uma tripla reflexão dos fiéis sobre sua posição numa sociedade pluralista.
A consciência religiosa deve, primeiramente, processar o encontro dissonante, do ponto de vista cognitivo, com outras confissões e outras religiões. Em segundo lugar, deve se ajustar à autoridade de ciências que se investem do monopólio social de conhecimento de mundo. Por fim, deve responder a premissas de um Estado constitucional que se justifique a partir de uma moral profana. Sem esse surto de reflexão, os monoteísmos desenvolvem, em sociedades modernizadas de maneira irresponsável, um potencial destrutivo.
A expressão "surto de reflexão" ("Reflexionsschub") sugere certamente a falsa idéia de um processo conduzido de maneira unilateral e inconcluso. De fato, esse trabalho reflexivo ganha uma continuação em todo novo conflito nos postos de transbordo da opinião pública democrática.
Tão logo uma questão relevante do ponto de vista existencial chegue à agenda política, tanto cidadãos fiéis quanto infiéis entrarão em choque com suas convicções impregnadas de certa visão de mundo e experimentarão, enquanto se exaurem nas estridentes dissonâncias do debate público de opiniões, o desagradável fato comprovado do pluralismo de visões de mundo. Quando tiverem de lidar com esse fato conscientes da própria falibilidade, pacificamente, portanto sem ter dilacerado o vínculo social de uma comunidade política, eles reconhecerão o que significam numa sociedade pós-secular as bases de decisão seculares fixadas por escrito na Constituição. Na contenda entre exigências do conhecimento e exigências da fé, o Estado com visão de mundo neutra cria precedentes, decisões políticas que não favoreçam, de modo algum, um dos lados. A razão pluralizada do público cidadão segue uma dinâmica de secularização somente na medida em que ela necessita, no resultado, de proporcional distanciamento de fortes tradições e conteúdos marcados por determinadas visões de mundo. Continua, porém, pronta para aprender, sem ceder sua autonomia, aberta por osmose a ambos os lados.

A ciência do senso comum Naturalmente o "common sense", que cria para si muitas ilusões em relação ao mundo, deve se deixar iluminar sem reservas pelas ciências. Mas as teorias científicas que incidem no mundo vivido ("Lebenswelt") deixam a armação de nosso saber cotidiano, a qual está engrenada com a autocompreensão de pessoas capazes para a linguagem e para a ação, essencialmente intocada. Quando aprendemos algo novo sobre o mundo e sobre nós como seres no mundo, se altera o conteúdo de nossa autocompreensão. Copérnico e Darwin revolucionaram a imagem geocêntrica e antropocêntrica de mundo. No caso, a destruição da ilusão astronômica quanto à órbita dos astros deixou no mundo vivido vestígios menores do que o desilusionamento biológico em relação à posição do homem na história natural. Descobertas científicas parecem incomodar nossa autocompreensão tanto mais quanto mais elas diretamente nos põem em xeque.
As pesquisas sobre o cérebro nos ensinam sobre a fisiologia de nossa consciência. Mas alteram com isso aquela consciência intuitiva de autoria e responsabilidade que acompanha todas as nossas ações?
Se voltarmos o olhar, com Max Weber, para os primórdios do "desencantamento do mundo", veremos o que está em jogo. A natureza é despersonalizada na medida em que lhe abrem o acesso para a observação objetivante e a explicação causal. A natureza como objeto de pesquisa científica se aparta do sistema social de referências de pessoas viventes que agem e falam umas com as outras, atribuindo-se mutuamente intenções e motivos. O que será, porém, dessas pessoas se elas pouco a pouco subsumirem a si mesmas entre descrições das ciências naturais? Aceitará o "common sense" finalmente não apenas a lição do conhecimento contra-intuitivo das ciências como também o deixar-se ser inteiramente consumido? O filósofo Winfrid Sellars levantou essa questão em 1960 (em uma famosa palestra sobre "Philosophy and the Scientific Image of Man") e respondeu-a com o cenário de uma sociedade na qual os antiquados jogos de linguagem de nosso cotidiano são revogados em favor da descrição objetivante de processos da consciência.
O ponto de fuga dessa naturalização do espírito é uma imagem científica do homem na conceituação extensional de física, neurofisiologia ou teoria da evolução que dessocializa por completo também nossa autocompreensão. Isso só pode ser plenamente alcançado, claro, se a intencionalidade da consciência humana e a normatividade de nosso agir numa tal autodescrição resultarem em uma conta exata. As indispensáveis teorias devem explicar, por exemplo, como pessoas podem seguir ou infringir regras, sejam elas gramaticais, conceituais ou morais. Discípulos de Sellar se equivocaram ao entender o experimento conceitual aporético de seu mestre como programa de pesquisa. O intento de uma modernização de nossa psicologia cotidiana sobre as bases das ciências naturais levou até mesmo a tentativas de uma semântica que quer explicar biologicamente os conteúdos do pensamento. Mas também essas abordagens mais avançadas parecem fracassar na medida em que o conceito de conveniência ("Zweckmäigkeit"), que enfiamos no jogo linguístico darwinista de mutação e adaptação, seleção e sobrevivência, é pobre demais para atingir aquela diferença de ser e dever, que defendemos quando ferimos regras, quando aplicamos um predicado incorretamente ou praticamos algo que contraria um mandamento moral.
Quando se descreve como uma pessoa fez algo que não queria e não deveria ter feito, se descreve essa pessoa, mas não como se faz com um objeto das ciências naturais. Pois na descrição de pessoas entram, implícitos, elementos da autocompreensão pré-científica de sujeitos capazes de linguagem e de ação. Quando descrevemos um processo como a ação de uma pessoa, sabemos por exemplo que estamos descrevendo algo que não somente pode ser explicado mas também, se for o caso, justificado como um processo natural. Como pano de fundo está a imagem de pessoas que podem prestar contas umas às outras, pessoas que estão desde sempre envolvidas em interações reguladas normativamente e que se encontram num universo de motivos públicos.
Essa perspectiva que levamos conosco no cotidiano explica a diferença entre o jogo linguístico da justificativa e da mera descrição. Nesse dualismo também as estratégias de explicação não-reducionistas encontram seu limite. Também elas visam afinal a descrições a partir de uma perspectiva observadora, pela qual a perspectiva participante (de que também a práxis justificadora da pesquisa se nutre) de nossa consciência cotidiana não se deixa ordenar ou subordinar. No trato cotidiano dirigimos o olhar a destinatários que tratamos por "você".
Só nessa posição perante segundas pessoas entendemos o "sim" e o "não" dos outros, as criticáveis tomadas de posição que devemos aos outros ou esperamos uns dos outros. Essa consciência de autoria obrigatoriamente responsável é o cerne de uma autocompreensão que se deduz somente da perspectiva de um envolvido, mas escapa a uma observação científica revisionária. A fé cientificista numa ciência que um dia não apenas complemente, mas destitua a autocompreensão pessoal por meio de uma autodescrição objetivante não é ciência, e sim má filosofia. Não haverá ciência que prive o "common sense" cientificamente ilustrado de, por exemplo, avaliar como nós, entre descrições de biologia molecular que tornam possíveis intervenções da engenharia genética, devemos lidar com a vida humana pré-pessoal.

A tradução de conteúdos religiosos O "common sense" está, portanto, entrelaçado com a consciência de pessoas que podem tomar iniciativas, cometer e corrigir erros. Ele afirma, perante as ciências, uma obstinada estrutura perspectiva. Essa mesma consciência de autonomia, não palpável naturalisticamente, também justifica, por outro lado, o distanciamento em relação a uma tradição religiosa de cujos conteúdos normativos nós igualmente nos nutrimos. Com sua exigência por explicações racionais, a ilustração científica parece trazer para junto de si um "common sense" que tomou lugar no edifício do Estado constitucional democrático construído segundo o direito racional.
Certamente, também o direito racional igualitário tem raízes religiosas, raízes naquela revolução do modo de pensar que coincide com a ascensão das grandes religiões mundiais. Porém essa legitimação jurídico-racional de direito e política alimenta-se de fontes da tradição religiosa há muito tempo profanizadas. Diante da religião, o "common sense" democraticamente ilustrado insiste em razões aceitáveis não apenas para adeptos de uma comunhão de fé. É por isso que por sua vez o Estado liberal desperta nos fiéis a suspeita de que a secularização ocidental poderia ser uma via de mão única que deixa a religião à margem.
O reverso da liberdade religiosa é de fato uma pacificação do pluralismo de visões de mundo, o qual teve encargos desiguais. Até agora o Estado liberal só exige dos fiéis entre seus cidadãos que dividam sua identidade em cotas de participação públicas e privadas. São elas que devem traduzir suas convicções religiosas em uma linguagem secular, antes que seus argumentos tenham a perspectiva de serem aprovados por maiorias. Assim, católicos e protestantes de hoje, quando reclamam para o óvulo fecundado fora do útero o status de portador de direitos fundamentais, tentam (talvez se precipitando) traduzir a semelhança-à-imagem-de-Deus para a linguagem secular da Lei Fundamental.
A busca de razões visando a uma aceitabilidade generalizada só não levaria a uma exclusão desleal da religião em relação à opinião pública e não subtrairia à sociedade secular os importantes recursos da instituição de sentido ("Sinnstiftung") se também o lado secular conservasse para si uma sensibilidade para o poder de articulação das linguagens religiosas. A linha que divide razões seculares e razões religiosas, em todo caso, é tênue. Por isso a fixação do controverso limite deveria ser entendida como uma tarefa cooperativa, exigindo de ambos os lados a capacidade de se colocar na perspectiva do outro.
A política liberal não pode exteriorizar o contínuo embate quanto à autocompreensão secular da sociedade, ou seja, empurrá-lo cabeça adentro nos fiéis. O "common sense" democraticamente ilustrado não é um singular, e sim descreve o estado mental de uma opinião pública de muitas vozes. Maiorias seculares não podem forçar resoluções em tais questões antes de dar ouvidos ao protesto de oponentes que se sentem feridos em suas convicções religiosas; elas devem ver esse protesto como uma espécie de veto postergador, para testar que lição podem tirar daí. Tendo em vista a origem religiosa de seus fundamentos morais, o Estado liberal deveria contar com a possibilidade de a "cultura do senso comum" (Hegel), diante de desafios inéditos, não alcançar o nível de articulação da própria história de seu surgimento.
A linguagem do mercado invade hoje todos os poros e pressiona todas as relações inter-humanas para o esquema da orientação auto-referencial às próprias preferências individuais. O laço social, que é atado a partir do reconhecimento mútuo, não se abre, no entanto, nos conceitos de contrato, de escolha racional e de maximização de lucros.
Por isso Kant não quis deixar que o imperativo categórico desaparecesse no turbilhão do auto-interesse ilustrado. Ele ampliou o livre-arbítrio para autonomia e, com isso seguindo a metafísica, deu o primeiro grande exemplo para uma desconstrução ao mesmo tempo secularizante e salvadora de verdades de fé. Em Kant a autoridade dos mandamentos divinos encontra na incondicional validação de deveres morais um eco impossível de não ser ouvido. Com seu conceito de autonomia, Kant por um lado destrói a idéia tradicional da filiação divina. Por outro, porém, ele se antecipa às consequências banais de um deflacionamento esvaziante por meio de um apossar-se crítico do conteúdo religioso. Sua tentativa posterior de traduzir o mal radical da linguagem bíblica para a linguagem da religião da razão pode nos convencer menos.
Como mostra novamente nos dias de hoje o modo sem limitações de lidar com a herança bíblica, ainda não dispomos de um conceito adequado para a diferença semântica entre o que é moralmente errado e aquilo que é definitivamente mau. O diabo não existe, mas o arcanjo rebelde continua fazendo as suas como nunca no travestido bem do monstruoso mal, mas também no irrefreado ímpeto para a retaliação que segue os passos desse mal.
Linguagens seculares que apenas eliminam aquilo que um dia foi alegado deixam irritações atrás de si. Quando o pecado se converteu em culpa, quando a transgressão contra mandamentos divinos se transformou em agressão a leis humanas, algo se perdeu. Pois ao desejo de perdão continua ligado o desejo não sentimental de desfazer o sofrimento imposto aos outros. O que antes de mais nada na verdade nos intranquiliza é a irreversibilidade do sofrimento passado, a injustiça em relação aos inocentemente maltratados, desonrados e assassinados, injustiça que ultrapassa toda escala de reparação humana possível. Perdeu-se a esperança na ressurreição, e isso deixa atrás de si um vazio notável.
O ceticismo justificado de Horkheimer contra a esperança desmedida de Benjamin no poder reparador da rememoração humana -"os abatidos estão realmente abatidos"- não desmente, com efeito, o impulso inconsciente de afinal de contas querer mudar algo no inalterável.

Passado processado As cartas trocadas entre Benjamin e Horkheimer são da primavera de 1937. Ambos, o verdadeiro impulso e o desfalecimento, prosseguiram após o Holocausto na práxis ao mesmo tempo necessária e desesperada de um "processamento do passado" (Adorno). De modo disfarçado expressa-se o mesmo impulso ainda no crescente lamento quanto à inadequação dessa práxis. Em tais momentos, os filhos e filhas infiéis da modernidade parecem acreditar ser mais culpados uns em relação aos outros e mesmo necessitarem de mais do que lhes é acessível, traduzido, da tradição religiosa, como se os potenciais semânticos desta ainda não estivessem esgotados.
A história da filosofia alemã desde Kant pode ser entendida como um processo judicial no qual se tratam essas circunstâncias inexplicadas da herança. A helenização do cristianismo havia levado a uma simbiose de religião e metafísica. Essa só torna a ser dissolvida por Kant. Ele traça uma nítida fronteira entre a fé moral da religião da razão e a fé positiva da revelação, a qual, se por um lado contribuiu para a "melhora das almas", por outro, "com seus apêndices, estatutos e preceitos... aos poucos" teria se tornado "aprisionamento". Para Hegel, isso é o puro "dogmatismo da Ilustração". Ele zomba da vitória de Pirro de uma razão que iguala vencedores -os quais são, ao espírito da nação submissa, porém, bárbaros derrotados, na medida em que ela só conserva "a supremacia segundo o domínio externo".
Em Hegel, no lugar da delimitadora entra uma razão arrecadante. Hegel faz da crucificação do filho de Deus o centro de um pensamento que quer se apossar da forma positiva do cristianismo. A antropomorfização de Deus simboliza a vida do espírito filosófico. Também o Absoluto tem de exteriorizar a si mesmo no Outro, porque só pode se experimentar como poder absoluto se se retrabalhar a partir da dolorosa negatividade da autolimitação. Desse modo, por um lado os conteúdos religiosos são suspensos na forma do conceito filosófico. Mas Hegel sacrifica a dimensão de história da salvação do futuro num processo mundial que gira em torno de si mesmo.

Conteúdo profano Discípulos de Hegel rompem com o fatalismo dessa antevisão desconsolada de um Eterno Retorno do Mesmo. Eles não querem prolongar a suspensão da religião no pensamento, e sim concretizar seu conteúdo profanizado por meio do esforço solidário. Esse patos de uma realização dessublimada do reino de Deus sobre a Terra é sustentado pela crítica da religião, de Feuerbach e Marx a Bloch, Benjamin e Adorno: "Nenhum conteúdo teológico continuará existindo intransformado; cada um deverá submeter-se à prova de migrar para o secular, profano" (Adorno).
Até então o curso da história havia mostrado, de fato, que a razão exige demais das próprias forças com um tal projeto. Como a razão assim desgastada desespera-se de si mesma, Adorno assegurou-se, ainda que somente com intenção metodológica, da ajuda do campo de visão messiânico: "O conhecimento não tem nenhuma luz senão a que brilha sobre o mundo a partir da redenção" ("Minima Moralia"). Nesse Adorno procede a frase que Horkheimer cunhou para a teoria crítica no todo: "Ela sabe que Deus não existe, mas mesmo assim acredita nele". Sob outras premissas, Jacques Derrida defende hoje uma posição semelhante. Do messianismo ele só quer reter "o mais mísero dado messiânico, que esteja despido de tudo".
A região limítrofe entre filosofia e religião é certamente um terreno minado. Uma razão que se desmente a si mesma logo acaba por cair na tentação de meramente tomar emprestados de um sacro desprovido de seu núcleo, anonimizado, a autoridade e o gesto. Em Heidegger devoção ("Andacht") sofre mutação para se tornar evocação, lembrança ("Andenken"). Mas porque o Dia do Juízo da história bíblica da salvação se volatiliza no acontecimento indefinido da história do ser, nós não ganhamos nenhum novo entendimento. Se o pós-humanismo deve se preencher no retorno dos primórdios arcaicos antes de Cristo e antes de Sócrates, soa a hora do kitsch religioso. Aí as lojas de departamentos da arte abrem suas portas para os altares de todo o mundo, para os sacerdotes e xamãs vindos de todos os pontos cardeais para a vernissage.
Diante disso, a profana, mas não-derrotista, razão tem respeito demais pelo núcleo incandescente que se reacende continuamente na questão da teodicéia para poder se aproximar da religião. Ela sabe que a desconsagração do sacro começa com aquelas religiões mundiais que desencantaram a magia, superaram o mito, sublimaram o sacrifício e revelaram o mistério. Essa ambivalência pode levá-la à atitude razoável de distanciamento em relação à religião, sem que se feche à perspectiva daquela.

O exemplo da genética Uma tal atitude também pode comandar a auto-ilustração de uma sociedade burguesa dilacerada pela luta cultural para a direção certa. A sociedade pós-secular continua o trabalho que a religião concretizou no mito, na própria religião. Certamente não na intenção híbrida de uma apropriação hostil, mas pelo interesse de reagir no próprio domínio à entropia sorrateira do escasso recurso do sentido. O "common sense" democraticamente ilustrado tem de temer também os efeitos do desdém dos meios e trivialização tagarela de todas as diferenças de peso. Sensibilidades morais que até hoje só possuíam uma expressão suficientemente diferenciada na linguagem religiosa podem encontrar repercussão geral, tão logo se coloque para algo já quase esquecido, mas implicitamente perdido, uma fórmula salvadora. Uma secularização que não aniquila se realiza no modus da tradução. É isso que o Ocidente, como potência secularizadora em nível mundial, pode aprender de sua própria história.
Assim, na controvérsia que se dá em torno da manipulação de embriões humanos, ainda há hoje muitas vozes a evocar: "Deus criou o homem à sua imagem, à sua imagem Deus o criou". Não é preciso crer que Deus, que é amor, cria em Adão e Eva seres livres, à sua semelhança, para entender o que se quer dizer com imagem-à-semelhança. O amor não pode existir sem o reconhecimento em um outro, a liberdade não pode existir sem a admissão mútua. Aquele que se encontra defronte, em forma humana, tem de ser, por sua vez, livre, para que possa retribuir o desvelo de Deus. Apesar de sua imagem-à-semelhança, esse outro certamente se apresenta ainda como criatura de Deus.
Quanto à sua origem, ele não pode ter nascido como um par de Deus. Essa criaturabilidade da símile-imagem expressa uma intuição, que em nosso contexto também pode dizer algo ao religiosamente surdo. Hegel tinha uma sensibilidade especial para a diferença entre "criatura" divina e o mero "provir" de Deus. Deus só permanece como um "Deus de homens livres" até o momento em que nós não nivelarmos a diferença absoluta entre criador e criatura. Até esse momento, aliás, a forma dada por Deus não significa uma determinação que impeça a autodeterminação humana.
Esse criador, por ser Deus criador e redentor num só, não precisa operar segundo leis da natureza, como um técnico, ou segundo as regras de um código cifrado, como um profissional de informática. A voz de Deus chamando à vida comunga/comunica ("kommuniziert") de imediato no interior de um universo moralmente sensível. Por isso Deus pode, nesse sentido, "determinar" ao homem que ele ao mesmo tempo seja capacitado para e comprometido com a liberdade. No entanto não é preciso crer nas premissas teológicas para entender a consequência que uma dependência totalmente diversa, apresentada como causal, entraria em jogo se desaparecesse a diferença suposta no conceito de criação e um par tomasse o lugar de Deus. Se um homem, então, por suas preferências interviesse na combinação casual de grupos de cromossomos maternos-paternos, sem com isso poder pelo menos contrafactualmente alegar um consenso com o outro, o afetado.
Essa leitura retoma a questão de que tratei anteriormente. Não teria o primeiro homem, que determina por vontade própria um outro homem no seu ser-assim ("Sosein") natural, de destruir também aquelas liberdades equivalentes que existem entre nascidos como pares, para assegurar a diferença entre eles?

Tradução de Marcelo Rondinelli.


Texto Anterior: + 5 livros Sobre sexualidade feminina
Próximo Texto: Quem é Habermas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.