São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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+ cultura

Cientista social francesa analisa o valor simbólico da vestimenta feminina nos países islâmicos

As mulheres de véu

Betty Milan
especial para a Folha

Juliette Minces se formou em russo e chinês no Instituto de Línguas e Civilizações Orientais e se diplomou na Escola Prática de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Três anos de pesquisa sistemática levaram-na a escrever em 1973 o primeiro livro de fôlego sobre os imigrantes na França, "Les Travailleurs Etrangers en France" (Os Trabalhadores Estrangeiros na França). Passou depois dez anos fazendo pesquisas na África, no Oriente e na Ásia e se tornou uma autoridade em tudo o que diz respeito ao islã e à mulher no mundo muçulmano. Publicou vários livros sobre o assunto. Destacam-se entre eles "A Mulher no Mundo Árabe" (1982), "La Femme Voilée" (A Mulher Velada, ed. Hachette, 1992), "Le Coran et les Femmes" (O Corão e as Mulheres, Hachette, 1996).
Na entrevista a seguir, ela discute, entre outros assuntos, o significado do véu no mundo muçulmano.

Por que você escreveu "O Corão e as Mulheres", editado com sucesso em 1996 e agora reeditado?
Porque me dei conta de que não havia clareza quanto à relação entre o texto sagrado e a tradição.

Você escreveu um livro que se chama "A Mulher Velada". Qual o significado do véu no mundo muçulmano?
O véu não tem a mesma significação nas origens e hoje. Em quase todas as sociedades, as mulheres usaram o véu. Nos anos 40, na Europa, uma mulher que saísse sem chapéu era considerada sem honra. Precisava sair de chapéu e com luvas, esconder o cabelo e não pegar na mão de um desconhecido.
O cabelo e a mão são importantes em todas as civilizações. O cabelo é um objeto sexual, e, na tradição antiga, no judaísmo, as mulheres raspavam a cabeça quando se casavam. No que diz respeito à mão, tanto no judaísmo quanto no islamismo, existe a interdição do contato físico entre um homem e uma mulher que não sejam da mesma família.
A história do véu é muito antiga e é provável que as mulheres não estivessem sistematicamente veladas na época de Maomé. Mas ele teve que deixar Meca, porque as pessoas não queriam um pregador que exigia dos ricos esmola para os pobres. Quando Maomé chegou em Medina, ele recorreu ao véu para distinguir as mulheres que eram crentes das outras. O véu também permitia distinguir a mulher livre da escrava.

O que o Corão diz sobre o uso do véu?
Diz que é preciso cobrir o pescoço e as jóias porque eles tornam a mulher mais bonita. Mas não dá nenhuma indicação sobre a maneira como o véu deve ser usado. No mundo muçulmano o véu é uma maneira de proteger os homens da sedução exercida pelas mulheres e de proteger as mulheres da cobiça dos homens.
Hoje em dia, o véu é usado por razões políticas. Assim, na Argélia, a Frente de Liberação Nacional, que lutava contra a colonização francesa, pressionava as mulheres que já não usavam o véu a usá-lo, enquanto os militares franceses faziam pressão sobre as muçulmanas para que o tirassem. Essa história mostra claramente que a mulher e o véu são utilizados como símbolos políticos. A mesma coisa aconteceu no Irã. Quando o aiatolá Khomeini tomou o poder, muitas mulheres que não usavam o véu passaram a usá-lo para mostrar que estavam de acordo com Khomeini, e ele depois se aproveitou disso para tornar o véu obrigatório.
Há países onde as mulheres põem o véu para não serem importunadas. Por exemplo, no Egito, onde os Irmãos Muçulmanos jogavam ácido nas pernas das que se apresentavam na universidade sem o véu. Ou no Afeganistão, onde os talebans o impuseram a todas as mulheres, inclusive as que tinham postos de grande responsabilidade.

Quais os versículos do Corão diretamente relacionados à submissão das mulheres?
Nos capítulos do Corão não existe um desenvolvimento longo sobre esse ponto preciso. Há referências às mulheres ao longo do Corão, versículos que dizem respeito a elas. Os dois versículos mais importantes são a "Repúdio" e "Das Mulheres". O Corão diz que tanto o homem quanto a mulher devem ser punidos quando se comportam mal e diz ainda que os homens e as mulheres são iguais diante de Deus, ou seja, quando mortos. Porém também diz que o homem tem preeminência sobre a mulher ou que ele é superior e a mulher lhe deve obediência -como ele deve obediência a Deus.

A mulher é tida como menor.
Assim, quando há casamento, ela precisa de um tutor matrimonial para se casar, e o futuro marido, não. Para testemunhar na Justiça é preciso duas mulheres para um homem.
A mulher só tem direito à metade da herança, não pode ser polígama, claro. A poligamia é um direito exclusivo dos homens. A mulher também não pode repudiar o marido, o repúdio é unilateral.

Em que condições se dá o repúdio?
Em quaisquer condições. Por ser estéril, por não ter filhos homens, por não cozinhar bem, ter mau humor, enfim, por qualquer coisa. E o homem não tem que prestar contas a ninguém. Basta usar a fórmula do repúdio, com ou sem testemunha, e o que resta à mulher é ir embora. Outra forma de expressão da menoridade é ela não poder ser tutora das crianças. Só quem pode ter a guarda, ou seja, tomar as decisões importantes em relação aos filhos é o pai.

Onde a mulher vai viver depois de ser repudiada?
Tradicionalmente vai para a casa do pai ou do irmão mais velho.

E como ela é recebida?
Normalmente, uma vez que o repúdio se faz com muita facilidade e porque a mulher volta com o dote e pode se casar novamente depois de três meses. O casamento no mundo muçulmano não é um sacramento.

O repúdio, então, é um recurso usado para legalizar a separação...
Certos pesquisadores dizem que, graças ao repúdio, as mulheres podem conhecer muitos homens na sua vida. O drama é que a mulher fica privada das suas crianças.

E o que acontece com uma mulher adúltera?
Considera-se que ela merece a morte. Mas, nos países que modernizaram a lei muçulmana, a condenação é rara. Só que, então, a família a mata, porque a mulher adúltera compromete a sua honra. Os crimes de honra existem mesmo quando não são reconhecidos pela lei -o líder iraquiano Saddam Hussein, por exemplo, legalizou esse crime.

O estatuto da mulher não é o mesmo em todos os Estados muçulmanos, ou seja, nos que aceitaram modernizar a lei e nos estados islâmicos como o Afeganistão e o Irã. Seria possível falar sobre a diferença?
Nos países que modernizaram a lei, a mulher conquistou o direito ao divórcio, porém em condições muito especiais. A mulher deve provar que o marido não tem mais relações sexuais com ela, que tem uma doença sexualmente transmissível ou que não a sustenta. O marido, para repudiar a mulher, não precisa de nada disso.

Qual é o país islâmico mais liberal?
A Tunísia é o mais liberal. A Turquia é um país laico. As mulheres das cidades vivem satisfeitas.

Há místicas entre as muçulmanas?
Sim.

E elas são reconhecidas?
Sim e não, porque eles consideram que os místicos todos se comparam a Deus e isso é muito malvisto.

Como é a relação entre os homens e as mulheres em casa?
Se marido e mulher escolheram um ao outro e se deram bem, pode haver afeição e mesmo amor. Isso acontece quando o marido não é despótico, quando a educação não o levou a isso. O Corão, aliás, diz que o homem é uma vestimenta para a mulher e vice-versa, ou seja, que deve haver respeito entre os dois. E as coisas podem se passar bem. Porém as únicas mulheres nas quais os homens muçulmanos têm confiança são as mães ou as irmãs. Todas as outras mulheres são proibidas. Quanto às relações sexuais, elas só existem no interior do casamento. Não existe proibição sexual -a não ser à sodomia, que, por sinal, é bastante praticada.

Qual o papel que as mulheres muçulmanas podem desempenhar em uma reforma do islã?
Um papel importante, educando os meninos de outra maneira, ensinando-os a não serem misóginos. Por outro lado, há um trabalho a fazer com os textos sagrados para que o espírito do texto continue a vigorar, e a letra, não.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão" (Cultura Editores Associados), entre outros livros.


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