São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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+ brasil 502 d.C.

Um enigma iconográfico

Evaldo Cabral de Mello

A ilha da Madeira foi o plano piloto da colonização do Nordeste. Dela, nosso sistema açucareiro não recebeu apenas a separação entre a etapa agrícola e a manufatureira ou o vocabulário especializado (senhor de engenho é designação de sabor medieval que nos chegou por meio da Madeira). Recebeu também o decantado "triângulo rural do Nordeste" (casa-grande, fábrica e capela), sem que tivesse havido criação brasileira, no máximo adaptação às condições ecológicas da terra. Essa forma de organização espacial já pode ser observada nas telas dos pintores nassovianos, em especial de Frans Post.
Como na Madeira, onde a fábrica de açúcar podia existir à ilharga do núcleo citadino e até mesmo no interior das quintas do Funchal, o engenho de açúcar constituiu inicialmente entre nós o prolongamento do comércio e da vida urbana, inclusive porque quem se afoitasse a construí-los à distância corria o risco de vê-los destruídos pela indiada hostil. Ao longo do primeiro século, o estilo de vida dos donos de terras e de fábricas de açúcar ainda não se ruralizara e, embora tal processo se tivesse iniciado antes da ocupação holandesa, foi esta quem verdadeiramente o consumou no Nordeste.
Embora originalmente os prédios do "triângulo rural" não mantivessem entre si disposição rígida, a iconografia neerlandesa já indica algumas constantes, ao menos em termos de ocupação dos níveis do terreno: a instalação da casa de moagem nas proximidades do rio ou riacho de que dependia para a força motriz e para outros usos, como no caso das fábricas movidas a animais; a construção da casa de vivenda na área mais elevada, via de regra na meia encosta, em decorrência da necessidade prática de controle das atividades produtivas e simbólica de expressão de domínio; e a ereção da capela à mesma altura da casa-grande ou pouco mais acima, conotando o valor do sagrado.
Como indicou Geraldo Gomes, a quem se deve um valioso estudo sobre a arquitetura dos engenhos pernambucanos, só muito depois do período holandês essa configuração viria a assumir a forma do pátio retangular que será descrito pelo engenheiro francês L.-L. Vauthier nos anos 40 do século 19, disposição que pode ter resultado do modelo das colônias inglesas e francesas do Caribe, divulgado entre nós por publicações como "O Fazendeiro do Brasil" ou o "Manual do Agricultor Brasileiro", mas que, contudo, não se generalizou a toda a região açucareira, de que Vauthier só conheceu a parte sul e a central.
O fato é que, ainda em começos do século 20, Gilberto Freyre observara a diferença de tipos entre os engenho do sul e do norte de Pernambuco, para não mencionar os da Paraíba. Tal disparidade, que ele se limitou a constatar, dizia certamente respeito à organização espacial. Em primeiro lugar, ela tinha de levar em conta as peculiaridades ecológicas de ambas regiões, em que os geógrafos distinguem entre a mata seca ou norte e a mata úmida ou meridional em razão da pluviosidade da topografia e da composição do solo. Em segundo lugar, a organização espacial devia ser também afetada pelo fato de que, desde finais do século 18, o engenho da mata seca se tivesse aproveitado do surto algodoeiro provocado pela Revolução Industrial, ao contrário do seu congênere da mata úmida, cujas condições físicas não eram favoráveis ao algodão.
A única adição brasileira ao "triângulo rural" importado da Madeira foi a senzala. É significativo que as referências aos engenhos quinhentistas da ilha, que se contêm na crônica coeva de Gaspar Frutuoso intitulada "Saudades da Terra", não aludam a instalações separadas para escravos, o que, em princípio, pareceria compaginar-se com as características domésticas que a escravidão assumira ali. Não havia necessidade de habitação própria para a mão-de-obra servil onde ela só era utilizada por 16% dos cultivadores de cana, que, em sua grande maioria, não possuíam mais de cinco africanos, como indicam os estudos de Alberto Vieira. O valor da mão-de-obra limitava-se a 5% do investimento, o que seria impensável no Brasil.

"Casas dos negros" Nas telas dos pintores nassovianos, a senzala brilha pela ausência, embora Geraldo Gomes vá demasiado longe quando assinala que "as fontes bibliográficas e iconográficas da ocupação holandesa de Pernambuco no século 17 não revelam a existência de nenhum tipo de edifício que se destinasse especificamente à habitação dos escravos". Por conseguinte, a senzala não existiria àquela altura como tipo característico de construção, segundo os entendidos, aporte da cultura ioruba, constituído pela "série de cubículos contíguos em linha, com um alpendre comum ao longo de todo o edifício e cobertos com um mesmo telhado de duas águas", consoante descrição do mesmo autor.
A primeira ressalva a fazer a tal generalização é a ilustração de Frans Post ao mapa de Georg Marcgraf intitulado "Praefectura Paranambuca pars borealis", reproduzido na história do governo de Nassau escrita por Barléus (1647), a qual indica nitidamente, ao lado da casa senhorial, uma edificação daquele tipo, coberta de palha. Por outro lado, o quadro de Zacarias Wagner representando a casa luso-brasileira do Recife que Nassau ocupou à sua chegada ao Brasil contém, no pátio interno, o que são sem sombra de dúvida dependências destinadas aos escravos do serviço doméstico.
Quanto às referências textuais, Geraldo Gomes refere documento pouco posterior ao domínio holandês, as instruções que João Fernandes Vieira deu a seu feitor-mor, as quais mencionam as "casas dos negros", documento que, como ele mesmo assinala, alude igualmente às "senzalas dos negros". Cabe aduzir testemunho da guerra batava, o do "Valeroso Lucideno", de frei Manuel Calado do Salvador, relativo ao engenho do Escurial em Alagoas, o qual também menciona as "casas dos negros". Do plural, não se deve, porém, concluir tratar-se de habitações separadas, pois no português da época, "casas" designava os vários aposentos de um único edifício.
Não é provável, portanto, que se tratasse de choças individuais reunidas ou dispersas pelo campo, como a que os holandeses viram no quilombo dos Palmares e como as que existiam nas possessões açucareiras do Caribe, fenômeno que pode ter resultado da geografia antilhana, cuja configuração arquipelágica desencorajava as veleidades de fuga. Dada a continentalidade brasileira, semelhante sistema só poderia ser implantado entre nós a partir da altura em que a família escrava tivesse ganho a consistência social que a sedentarizasse, tornando-a relativamente imune à aventura da liberdade. Daí que, em finais do século 18, Stuart Schwartz identifique nos engenhos do Recôncavo Baiano não só as senzalas, "construções enfileiradas divididas em compartimentos", como as "cabanas separadas, de paredes de barro e telhados de sapé".
Ainda no plano das referências textuais, gostaria de chamar a atenção para documento atinente à Bahia, o inventário de Mem de Sá (1572), o qual permite afirmar a existência, desde o século 16, de edificação própria para os escravos, segundo a descrição da senzala feita por Geraldo Gomes. E o que é mais, de instalações adaptadas ao caráter misto da mão-de-obra de então. O engenho de Sergipe do Conde, onde o terceiro governador-geral possuía escravatura tanto indígena quanto africana, sendo a primeira bem mais numerosa, possuía, além da casa de vivenda, da capela e da fábrica, "duas casas de palha grandes em que se agasalham os negros da terra", isto é, os índios, ademais de "outra casa comprida em que se agasalham os negros de Guiné, que é de palha nova".
Devido à presença de forças de trabalho de diferente origem étnica, é plausível que os engenhos primitivos dispusessem de duas senzalas, construídas segundo o estilo de habitação da categoria de mão-de-obra a que se destinava, tanto mais que, nesse particular, não havia precedente madeirense a que recorrer. Com efeito, ao passo que no inventário de Mem de Sá as "casas de palha" destinadas aos indígenas são caracterizadas como "grandes", sendo na realidade, as ocas que pouco depois descreverá Fernão Cardim como verdadeiros "labirintos" em que podiam residir mais de 200 pessoas, a habitação dos africanos é descrita como "comprida", conforme o tipo mencionado por Geraldo Gomes, o que implica que ela abrigava número bem inferior de indivíduos. Essa especialização racial tendeu, porém, a desaparecer, do momento em que, no primeiro quartel do século 17, a escravidão africana passou a dominar numericamente a outra. Há, contudo, um problema com o Sergipe do Conde: ele não pode ser tido na conta de engenho típico ou médio.
Temos, portanto, que no Brasil do primeiro surto açucareiro de finais de Quinhentos já havia o tipo de edificação que ficará conhecido sob o nome de senzala. Ocorria apenas que ele era normalmente designado por "casas dos negros", de vez que o vocábulo "senzala", de origem banto, tardou a se impor.
Sheila Siqueira de Castro Faria, historiadora da área canavieira do Rio de Janeiro, informa que "senzala" só se teria generalizado no decorrer do século 18, em conexão com o predomínio de africanos daquela procedência. O problema que se coloca, por conseguinte, é o de explicar a ausência daquele gênero de construção nas telas de Frans Post e dos demais pintores nassovianos. Como indica esclarecedor estudo de Beatriz e Pedro Corrêa do Lago, já "foram identificados cerca de 160 óleos do primeiro pintor da paisagem brasileira, dos quais mais de 150 realizados após sua volta à Holanda e apenas sete pintados nos anos que o artista passou no Nordeste", embora tivesse executado "pelo menos dezoito telas durante sua permanência no Brasil". De regresso a seu país, Post terá seguramente trabalhado com base em esboços feitos em Pernambuco.
Que ele não tenha pintado a senzala e que só a tenha representado uma única vez na ilustração do mapa de Marcgraf se presta a uma hipótese, que tentarei formular, mas que não passa disto, de hipótese. No século 17, os proprietários dos contingentes mais numerosos de escravos não eram os senhores de engenho, mas os lavradores de cana, que cultivavam a matéria-prima para as fábricas de açúcar. Disso decorreria a desconcentração da escravatura, que habitaria na proximidade dos partidos de cana e da residência dos seus donos.
Ao tempo do domínio holandês, a mão-de-obra escrava empregada diretamente pelo senhor de engenho reduzia-se aos africanos empregados seja na sua fábrica seja nos seus partidos de cana, podendo ser abrigada, por conseguinte, em construção que, por suas dimensões modestas, se confundiria, na perspectiva do pintor, da "moita" do engenho, isto é, do prédio fabril e seus anexos. Por sua vez, os serviçais da casa de vivenda abrigar-se-iam na "loja", isto é, no andar térreo das casas-grandes, de vez que a prática lusitana reservava às famílias o "sobrado", isto é, o andar superior, deixando a "loja", ou andar térreo, aos criados e aos depósitos, à maneira dos habitantes de Olinda, segundo se conclui da documentação inquisitorial.
Somente a partir do momento (segunda metade do século 17 e século 18, posterior, portanto, ao período holandês) em que se verificou a expansão da área diretamente cultivada pelo senhor de engenho, aumentou a mão-de-obra sob seu controle imediato, consequente também ao acesso crescente de escravos às funções especializadas do fabrico do açúcar e às tarefas artesanais. Só então se teria posto em marcha, especialmente naqueles engenhos de Setecentos que, conforme a crônica de Loreto Couto, já não admitiam lavradores, encarregando-se também das fainas agrícolas, um processo de concentração, tendente a agregar a maior parte da escravaria no interior do "triângulo rural". Daí que se detectem modificações espaciais de signo oposto.
Por um lado, reuniu-se o grosso da mão-de-obra africana nas proximidades da casa de vivenda e da fábrica, de outro, os escravos domésticos deixaram de ser agasalhados no recesso das casas-grandes. Originou-se assim a outra dualidade de senzalas assinalada por Geraldo Gomes, mediante a qual numa se haveriam aglomerado os escravos do serviço do campo e da fábrica e, na outra, os do serviço doméstico.

Linguagem da escravaria À generalização tardia da palavra senzala, cabe acrescentar que o fenômeno ainda foi mais lento no tocante à designação de "casa-grande". Embora já a registre Koster nos começos do século 18, os documentos, inclusive notariais, do Nordeste açucareiro mencionam invariavelmente a residência senhorial como "casa de vivenda" ou, menos frequentemente, "casa de morada", jamais como "casa-grande"; e isto ainda em fins do Segundo Reinado. É provável, portanto, que "casa-grande" se tenha originado no linguajar da escravaria e dos estratos subalternos do engenho, como ocorreu com a expressão "big houses" no velho Sul dos Estados Unidos, consoante afirma Eugene D. Genovese.
De qualquer maneira, é preferível usar a expressão "casa de vivenda" ou "casa-grande" do que a de "casa de fazenda", que desinformadamente é a consagrada nas cartelas dos quadros de Frans Post existentes em museus paulistas. "Casa de fazenda" é designação apropriada ao Sudeste e ao Nordeste da pecuária, o "outro Nordeste" do título da obra de Djacir Menezes, mas não ao Nordeste canavieiro, onde "fazenda" era empregado na acepção restrita da área territorial, não na geral, do conjunto da propriedade.


Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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