|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ brasil 502 d.C.
Um enigma iconográfico
Evaldo Cabral de Mello
A ilha da Madeira foi o plano piloto da colonização do Nordeste.
Dela, nosso sistema açucareiro
não recebeu apenas a separação
entre a etapa agrícola e a manufatureira
ou o vocabulário especializado (senhor
de engenho é designação de sabor medieval que nos chegou por meio da Madeira). Recebeu também o decantado
"triângulo rural do Nordeste" (casa-grande, fábrica e capela), sem que tivesse
havido criação brasileira, no máximo
adaptação às condições ecológicas da
terra. Essa forma de organização espacial
já pode ser observada nas telas dos pintores nassovianos, em especial de Frans
Post.
Como na Madeira, onde a fábrica de
açúcar podia existir à ilharga do núcleo
citadino e até mesmo no interior das
quintas do Funchal, o engenho de açúcar
constituiu inicialmente entre nós o prolongamento do comércio e da vida urbana, inclusive porque quem se afoitasse a
construí-los à distância corria o risco de
vê-los destruídos pela indiada hostil. Ao
longo do primeiro século, o estilo de vida
dos donos de terras e de fábricas de açúcar ainda não se ruralizara e, embora tal
processo se tivesse iniciado antes da ocupação holandesa, foi esta quem verdadeiramente o consumou no Nordeste.
Embora originalmente os prédios do
"triângulo rural" não mantivessem entre
si disposição rígida, a iconografia neerlandesa já indica algumas constantes, ao
menos em termos de ocupação dos níveis do terreno: a instalação da casa de
moagem nas proximidades do rio ou riacho de que dependia para a força motriz
e para outros usos, como no caso das fábricas movidas a animais; a construção
da casa de vivenda na área mais elevada,
via de regra na meia encosta, em decorrência da necessidade prática de controle
das atividades produtivas e simbólica de
expressão de domínio; e a ereção da capela à mesma altura da casa-grande ou
pouco mais acima, conotando o valor do
sagrado.
Como indicou Geraldo Gomes, a quem
se deve um valioso estudo sobre a arquitetura dos engenhos pernambucanos, só
muito depois do período holandês essa
configuração viria a assumir a forma do
pátio retangular que será descrito pelo
engenheiro francês L.-L. Vauthier nos
anos 40 do século 19, disposição que pode ter resultado do modelo das colônias
inglesas e francesas do Caribe, divulgado
entre nós por publicações como "O Fazendeiro do Brasil" ou o "Manual do
Agricultor Brasileiro", mas que, contudo, não se generalizou a toda a região
açucareira, de que Vauthier só conheceu
a parte sul e a central.
O fato é que, ainda em começos do século 20, Gilberto Freyre observara a diferença de tipos entre os engenho do sul e
do norte de Pernambuco, para não mencionar os da Paraíba. Tal disparidade,
que ele se limitou a constatar, dizia certamente respeito à organização espacial.
Em primeiro lugar, ela tinha de levar em
conta as peculiaridades ecológicas de
ambas regiões, em que os geógrafos distinguem entre a mata seca ou norte e a
mata úmida ou meridional em razão da
pluviosidade da topografia e da composição do solo. Em segundo lugar, a organização espacial devia ser também afetada pelo fato de que, desde finais do século 18, o engenho da mata seca se tivesse
aproveitado do surto algodoeiro provocado pela Revolução Industrial, ao contrário do seu congênere da mata úmida,
cujas condições físicas não eram favoráveis ao algodão.
A única adição brasileira ao "triângulo
rural" importado da Madeira foi a senzala. É significativo que as referências aos
engenhos quinhentistas da ilha, que se
contêm na crônica coeva de Gaspar Frutuoso intitulada "Saudades da Terra",
não aludam a instalações separadas para
escravos, o que, em princípio, pareceria
compaginar-se com as características
domésticas que a escravidão assumira
ali. Não havia necessidade de habitação
própria para a mão-de-obra servil onde
ela só era utilizada por 16% dos cultivadores de cana, que, em sua grande maioria, não possuíam mais de cinco africanos, como indicam os estudos de Alberto
Vieira. O valor da mão-de-obra limitava-se a 5% do investimento, o que seria impensável no Brasil.
"Casas dos negros" Nas telas dos
pintores nassovianos, a senzala brilha
pela ausência, embora Geraldo Gomes
vá demasiado longe quando assinala que
"as fontes bibliográficas e iconográficas
da ocupação holandesa de Pernambuco
no século 17 não revelam a existência de
nenhum tipo de edifício que se destinasse especificamente à habitação dos escravos". Por conseguinte, a senzala não
existiria àquela altura como tipo característico de construção, segundo os entendidos, aporte da cultura ioruba, constituído pela "série de cubículos contíguos
em linha, com um alpendre comum ao
longo de todo o edifício e cobertos com
um mesmo telhado de duas águas", consoante descrição do mesmo autor.
A primeira ressalva a fazer a tal generalização é a ilustração de Frans Post ao
mapa de Georg Marcgraf intitulado
"Praefectura Paranambuca pars borealis", reproduzido na história do governo
de Nassau escrita por Barléus (1647), a
qual indica nitidamente, ao lado da casa
senhorial, uma edificação daquele tipo,
coberta de palha. Por outro lado, o quadro de Zacarias Wagner representando a
casa luso-brasileira do Recife que Nassau
ocupou à sua chegada ao Brasil contém,
no pátio interno, o que são sem sombra
de dúvida dependências destinadas aos
escravos do serviço doméstico.
Quanto às referências textuais, Geraldo
Gomes refere documento pouco posterior ao domínio holandês, as instruções
que João Fernandes Vieira deu a seu feitor-mor, as quais mencionam as "casas
dos negros", documento que, como ele
mesmo assinala, alude igualmente às
"senzalas dos negros". Cabe aduzir testemunho da guerra batava, o do "Valeroso
Lucideno", de frei Manuel Calado do Salvador, relativo ao engenho do Escurial
em Alagoas, o qual também menciona as
"casas dos negros". Do plural, não se deve, porém, concluir tratar-se de habitações separadas, pois no português da
época, "casas" designava os vários aposentos de um único edifício.
Não é provável, portanto, que se tratasse de choças individuais reunidas ou dispersas pelo campo, como a que os holandeses viram no quilombo dos Palmares e
como as que existiam nas possessões
açucareiras do Caribe, fenômeno que
pode ter resultado da geografia antilhana, cuja configuração arquipelágica desencorajava as veleidades de fuga. Dada a
continentalidade brasileira, semelhante
sistema só poderia ser implantado entre
nós a partir da altura em que a família escrava tivesse ganho a consistência social
que a sedentarizasse, tornando-a relativamente imune à aventura da liberdade.
Daí que, em finais do século 18, Stuart
Schwartz identifique nos engenhos do
Recôncavo Baiano não só as senzalas,
"construções enfileiradas divididas em
compartimentos", como as "cabanas separadas, de paredes de barro e telhados
de sapé".
Ainda no plano das referências textuais, gostaria de chamar a atenção para
documento atinente à Bahia, o inventário de Mem de Sá (1572), o qual permite
afirmar a existência, desde o século 16, de
edificação própria para os escravos, segundo a descrição da senzala feita por
Geraldo Gomes. E o que é mais, de instalações adaptadas ao caráter misto da
mão-de-obra de então. O engenho de
Sergipe do Conde, onde o terceiro governador-geral possuía escravatura tanto
indígena quanto africana, sendo a primeira bem mais numerosa, possuía,
além da casa de vivenda, da capela e da
fábrica, "duas casas de palha grandes em
que se agasalham os negros da terra", isto é, os índios, ademais de "outra casa
comprida em que se agasalham os negros de Guiné, que é de palha nova".
Devido à presença de forças de trabalho de diferente origem étnica, é plausível que os engenhos primitivos dispusessem de duas senzalas, construídas segundo o estilo de habitação da categoria
de mão-de-obra a que se destinava, tanto
mais que, nesse particular, não havia
precedente madeirense a que recorrer.
Com efeito, ao passo que no inventário
de Mem de Sá as "casas de palha" destinadas aos indígenas são caracterizadas como "grandes", sendo na realidade, as
ocas que pouco depois descreverá Fernão Cardim como verdadeiros "labirintos" em que podiam residir mais de 200
pessoas, a habitação dos africanos é descrita como "comprida", conforme o tipo
mencionado por Geraldo Gomes, o que
implica que ela abrigava número bem inferior de indivíduos. Essa especialização
racial tendeu, porém, a desaparecer, do
momento em que, no primeiro quartel
do século 17, a escravidão africana passou a dominar numericamente a outra.
Há, contudo, um problema com o Sergipe do Conde: ele não pode ser tido na
conta de engenho típico ou médio.
Temos, portanto, que no Brasil do primeiro surto açucareiro de finais de Quinhentos já havia o tipo de edificação que
ficará conhecido sob o nome de senzala.
Ocorria apenas que ele era normalmente
designado por "casas dos negros", de vez
que o vocábulo "senzala", de origem
banto, tardou a se impor.
Sheila Siqueira de Castro Faria, historiadora da área canavieira do Rio de Janeiro, informa que "senzala" só se teria
generalizado no decorrer do século 18,
em conexão com o predomínio de africanos daquela procedência. O problema
que se coloca, por conseguinte, é o de explicar a ausência daquele gênero de
construção nas telas de Frans Post e dos
demais pintores nassovianos. Como indica esclarecedor estudo de Beatriz e Pedro Corrêa do Lago, já "foram identificados cerca de 160 óleos do primeiro pintor
da paisagem brasileira, dos quais mais de
150 realizados após sua volta à Holanda e
apenas sete pintados nos anos que o artista passou no Nordeste", embora tivesse executado "pelo menos dezoito telas
durante sua permanência no Brasil". De
regresso a seu país, Post terá seguramente trabalhado com base em esboços feitos
em Pernambuco.
Que ele não tenha pintado a senzala e
que só a tenha representado uma única
vez na ilustração do mapa de Marcgraf se
presta a uma hipótese, que tentarei formular, mas que não passa disto, de hipótese. No século 17, os proprietários dos
contingentes mais numerosos de escravos não eram os senhores de engenho,
mas os lavradores de cana, que cultivavam a matéria-prima para as fábricas de
açúcar. Disso decorreria a desconcentração da escravatura, que habitaria na proximidade dos partidos de cana e da residência dos seus donos.
Ao tempo do domínio holandês, a
mão-de-obra escrava empregada diretamente pelo senhor de engenho reduzia-se aos africanos empregados seja na sua
fábrica seja nos seus partidos de cana,
podendo ser abrigada, por conseguinte,
em construção que, por suas dimensões
modestas, se confundiria, na perspectiva
do pintor, da "moita" do engenho, isto é,
do prédio fabril e seus anexos. Por sua
vez, os serviçais da casa de vivenda abrigar-se-iam na "loja", isto é, no andar térreo das casas-grandes, de vez que a prática lusitana reservava às famílias o "sobrado", isto é, o andar superior, deixando a "loja", ou andar térreo, aos criados e
aos depósitos, à maneira dos habitantes
de Olinda, segundo se conclui da documentação inquisitorial.
Somente a partir do momento (segunda metade do século 17 e século 18, posterior, portanto, ao período holandês) em
que se verificou a expansão da área diretamente cultivada pelo senhor de engenho, aumentou a mão-de-obra sob seu
controle imediato, consequente também
ao acesso crescente de escravos às funções especializadas do fabrico do açúcar
e às tarefas artesanais. Só então se teria
posto em marcha, especialmente naqueles engenhos de Setecentos que, conforme a crônica de Loreto Couto, já não admitiam lavradores, encarregando-se
também das fainas agrícolas, um processo de concentração, tendente a agregar a
maior parte da escravaria no interior do
"triângulo rural". Daí que se detectem
modificações espaciais de signo oposto.
Por um lado, reuniu-se o grosso da
mão-de-obra africana nas proximidades
da casa de vivenda e da fábrica, de outro,
os escravos domésticos deixaram de ser
agasalhados no recesso das casas-grandes. Originou-se assim a outra dualidade
de senzalas assinalada por Geraldo Gomes, mediante a qual numa se haveriam
aglomerado os escravos do serviço do
campo e da fábrica e, na outra, os do serviço doméstico.
Linguagem da escravaria À generalização tardia da palavra senzala, cabe
acrescentar que o fenômeno ainda foi
mais lento no tocante à designação de
"casa-grande". Embora já a registre Koster nos começos do século 18, os documentos, inclusive notariais, do Nordeste
açucareiro mencionam invariavelmente
a residência senhorial como "casa de vivenda" ou, menos frequentemente, "casa de morada", jamais como "casa-grande"; e isto ainda em fins do Segundo Reinado. É provável, portanto, que "casa-grande" se tenha originado no linguajar
da escravaria e dos estratos subalternos
do engenho, como ocorreu com a expressão "big houses" no velho Sul dos
Estados Unidos, consoante afirma Eugene D. Genovese.
De qualquer maneira, é preferível usar
a expressão "casa de vivenda" ou "casa-grande" do que a de "casa de fazenda",
que desinformadamente é a consagrada
nas cartelas dos quadros de Frans Post
existentes em museus paulistas. "Casa de
fazenda" é designação apropriada ao Sudeste e ao Nordeste da pecuária, o "outro
Nordeste" do título da obra de Djacir
Menezes, mas não ao Nordeste canavieiro, onde "fazenda" era empregado na
acepção restrita da área territorial, não
na geral, do conjunto da propriedade.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de,
entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
Texto Anterior: Quem é Habermas Próximo Texto: + cultura - Betty Milan: As mulheres de véu Índice
|