São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

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Minha batalha contra o filme

MICHELANGELO ANTONIONI

A batalha entre o filme e mim se encerra com a publicação deste roteiro. Essa batalha durava desde 1966, quando escrevi a primeira versão da história.
Em paralelo, eu estava desenvolvendo o roteiro de "Blow-Up". Ofereci os dois ao produtor Carlo Ponti [1912-2007], que preferiu o segundo.
Depois de rodar "Blow-Up", finalmente recebi o acordo de Ponti para a realização de "Tecnicamente Doce". Quando tudo estava pronto para a filmagem, roteiro, locações, equipe técnica, atores, o financiamento me foi retirado. Os atores do filme seriam Jack Nicholson e Maria Schneider.
Falei um pouco acima em "batalha". Eis por quê: esse era um filme que eu queria fazer acima de qualquer outro, mesmo sabendo quão árduo era o projeto. Por que árduo? Porque o que estava em jogo era um mergulho no coração da selva amazônica, onde deveríamos ficar no mínimo dois meses.
Eu já tinha conhecido todo tipo de selvas e de florestas virgens e percorri o mundo em busca daquela que fosse a mais intimidante -e a encontrei na Amazônia. Posso dizer hoje que existe uma relação inversamente proporcional entre o horror de uma floresta virgem e sua fotogenia. Quanto mais densa a floresta, menor a sua fotogenia.
A vegetação é tão espessa que os verdes se fundem uns nos outros, atenuando as nuances, diminuindo os relevos. A sombra domina. Numa vegetação tão compacta, o sol penetra com dificuldade, tornando necessária a utilização de projetores. Mas tenho dificuldade em imaginar uma luz artificial na floresta, por causa das sombras que ela fatalmente provocaria, falseando a realidade.
A minha intenção era fazer desse "fragmento de filme" uma espécie de oposição crua entre a luta de dois organismos humanos e a de outros organismos, vegetais e animais. Mas também queria falar de uma outra luta ainda mais aterrorizante, aquela que ocorre entre as plantas que lutam pelos poucos raios de sol. E a dos animais, à cata de qualquer tipo de alimentação. Minha intenção, em resumo, era tocar no tema do canibalismo, declinado sob todas as suas formas.
Adicione-se aos problemas de realização aqueles que a produção fatalmente traria, e pode-se compreender quanto minha perplexidade em relação ao filme era legítima. No entanto, durante o verão de 1966, eu tinha ultrapassado essas dificuldades. Me considerava o vencedor de uma batalha entre o filme e mim.
Mas tinha me esquecido do árbitro implacável que tem entre suas mãos a possibilidade de decidir se um filme vai existir ou não -o produtor. Quando Carlo Ponti me declarou de forma imprevista e inexplicável que não iria mais financiar o filme, o mundo que eu tinha logrado construir com tanta dificuldade no meu espírito, ao mesmo tempo fantástico e realista, ruiu de uma só vez. Os escombros ainda subsistem, em algum lugar no fundo de mim.


Este texto foi publicado em "Techniquement Douce" (ed. Einaudi, Itália, 1976). Tradução de Walter Salles .


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