|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A Terceira Internacional do Gosto
Marcado por divergências políticas, evento em Madri consolida Espanha na vanguarda da culinária mundial
DA REDAÇÃO
Deste lado do Atlântico, nada parece mais despolitizado do que a culinária. No
entanto o encontro gastronômico "Madrid Fusión - Tercero
Cumbre Mundial de Gastronomia"
[Madri Fusão - Terceiro Encontro
Mundial de Gastronomia] mostrou
a disciplina num amplo contexto de
definições políticas. Num misto de
feira e colóquio intelectual, a nata da
gastronomia mundial de vanguarda
se exibiu na capital espanhola.
O celebrado chef Ferran Adrià, do
Il Buli, abriu o encontro, que reuniu
34 chefs, 500 congressistas, 400 jornalistas e teve 70 patrocinadores,
nessa edição dedicada ao "diálogo"
entre Oriente e Ocidente.
O próprio Oriente nunca havia se
encontrado como o fez. Toshiro Konishi, que desenvolve seu trabalho
no Peru; Yukio Hattori, de uma escola de culinária em Tóquio; o legendário Nobu Matsushisa, de Los Angeles; Kunio Tokuoka, que renova a
cozinha imperial japonesa em Kyoto; Yuji Wakiya, que trabalha a cozinha chinesa, e Tetsuya Wakuda, que
faz a mestiçagem gastronômica na
Austrália, nunca antes haviam se encontrado num mesmo evento.
Ampliar o prazer
Além dessa diáspora de japoneses,
chefs dos EUA, Espanha, França,
Brasil, entre outros, mostraram os
últimos resultados de suas pesquisas
numa só direção: como trabalhar
com as sensações humanas e ampliar o prazer ao comer.
Aparentemente era apenas um festival de técnicas e brincadeiras a partir do que se passa dentro de uma cozinha. No entanto estiveram em jogo
várias definições importantes para o
mundo culinário.
Ainda que ninguém admitisse explicitamente, o "Madrid Fusión"
consolidou a Espanha à frente da
França na liderança desse próspero
negócio. Em agosto de 2003, Arthur
Lubow, crítico de gastronomia do
"New York Times", em reportagem
intitulada "The Nueva Nouvelle-Cuisine - How Spain Became the
New France" [A Nova Nouvelle Cuisine - Como a Espanha Se Tornou a
Nova França], decretou que a inovação gastronômica havia abandonado a França para se estabelecer na
Catalunha e no País Basco.
"O idealismo foi o que eu encontrei impulsionando os melhores restaurantes espanhóis e, tristemente,
faltando na França (...). Na Espanha,
os jovens chefs ainda acreditam de
modo comovente que podem mudar o mundo", escreveu Lubow.
A reação francesa foi vigorosa. Um
líder da pesquisa e inovação gastronômica na França, o cientista Hervé
This, escreveu artigos furiosos contra Arthur Lubow. Agora, em 2005,
finalmente lá estava Hervé This, em
Madri, exibindo os seus truques e
magias.
Houve também acertos de conta
entre espanhóis. Em outubro do ano
passado, o governo divulgou que
um suposto terrorista da ETA [grupo separatista basco] tinha informado, na prisão, que chefs bascos pagaram ao ETA o "imposto revolucionário": contribuição financeira que,
voluntária ou não, é um ato criminoso aos olhos do Estado.
Quatro chefs citados no hipotético
depoimento (Martin Berasategui,
Juan Mari Arzak, Juan Pedro Subijana e o popular Karlos Arguiñano)
foram chamados a Madri para depor perante a Audiência Nacional
-uma espécie de procuradoria responsável pela apuração de "crimes
terroristas".
Novo patamar
A direita espanhola mostrou as
garras e fez campanha pelo boicote
aos restaurantes dos envolvidos. O
presidente da Província de Cantábria chamou-os de "assassinos de
mesa". Mas o decano Arzak foi condecorado e ovacionado no "Madrid
Fusión" como "chef do ano".
"Madrid Fusión" colocou a gastronomia num novo patamar. Em primeiro lugar, pelo amplo reconhecimento de que a culinária é um aspecto crucial da identidade dos povos. Foi grande o entusiasmo pelos
trabalhos do brasileiro Alex Atala,
pela utilização de ingredientes amazônicos; do japonês Yuki Wakiya,
que reinterpreta a cozinha chinesa
de Xangai; e do siciliano Carmelo
Chiaromonte, pela utilização de vísceras de atum, segundo tradições sicilianas de épocas de crise.
Em segundo lugar, pelo espetáculo
midiático que se esboça. Provavelmente, as próximas edições desse
evento farão da gastronomia uma
celebração como os desfiles de moda. Finalmente, porque a gastronomia de vanguarda mostra a convergência contraditória que aproxima
tecnologias de ponta e artesanato,
reforçando a agricultura sustentável
e dando as costas à grande indústria
alimentar.
(CARLOS ALBERTO DÓRIA)
Texto Anterior: O filósofo da gastronomia Próximo Texto: + livros: Símbolos em rotação Índice
|