São Paulo, domingo, 06 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A Terceira Internacional do Gosto

Marcado por divergências políticas, evento em Madri consolida Espanha na vanguarda da culinária mundial

DA REDAÇÃO

Deste lado do Atlântico, nada parece mais despolitizado do que a culinária. No entanto o encontro gastronômico "Madrid Fusión - Tercero Cumbre Mundial de Gastronomia" [Madri Fusão - Terceiro Encontro Mundial de Gastronomia] mostrou a disciplina num amplo contexto de definições políticas. Num misto de feira e colóquio intelectual, a nata da gastronomia mundial de vanguarda se exibiu na capital espanhola.
O celebrado chef Ferran Adrià, do Il Buli, abriu o encontro, que reuniu 34 chefs, 500 congressistas, 400 jornalistas e teve 70 patrocinadores, nessa edição dedicada ao "diálogo" entre Oriente e Ocidente.
O próprio Oriente nunca havia se encontrado como o fez. Toshiro Konishi, que desenvolve seu trabalho no Peru; Yukio Hattori, de uma escola de culinária em Tóquio; o legendário Nobu Matsushisa, de Los Angeles; Kunio Tokuoka, que renova a cozinha imperial japonesa em Kyoto; Yuji Wakiya, que trabalha a cozinha chinesa, e Tetsuya Wakuda, que faz a mestiçagem gastronômica na Austrália, nunca antes haviam se encontrado num mesmo evento.

Ampliar o prazer
Além dessa diáspora de japoneses, chefs dos EUA, Espanha, França, Brasil, entre outros, mostraram os últimos resultados de suas pesquisas numa só direção: como trabalhar com as sensações humanas e ampliar o prazer ao comer.
Aparentemente era apenas um festival de técnicas e brincadeiras a partir do que se passa dentro de uma cozinha. No entanto estiveram em jogo várias definições importantes para o mundo culinário.
Ainda que ninguém admitisse explicitamente, o "Madrid Fusión" consolidou a Espanha à frente da França na liderança desse próspero negócio. Em agosto de 2003, Arthur Lubow, crítico de gastronomia do "New York Times", em reportagem intitulada "The Nueva Nouvelle-Cuisine - How Spain Became the New France" [A Nova Nouvelle Cuisine - Como a Espanha Se Tornou a Nova França], decretou que a inovação gastronômica havia abandonado a França para se estabelecer na Catalunha e no País Basco.
"O idealismo foi o que eu encontrei impulsionando os melhores restaurantes espanhóis e, tristemente, faltando na França (...). Na Espanha, os jovens chefs ainda acreditam de modo comovente que podem mudar o mundo", escreveu Lubow.
A reação francesa foi vigorosa. Um líder da pesquisa e inovação gastronômica na França, o cientista Hervé This, escreveu artigos furiosos contra Arthur Lubow. Agora, em 2005, finalmente lá estava Hervé This, em Madri, exibindo os seus truques e magias.
Houve também acertos de conta entre espanhóis. Em outubro do ano passado, o governo divulgou que um suposto terrorista da ETA [grupo separatista basco] tinha informado, na prisão, que chefs bascos pagaram ao ETA o "imposto revolucionário": contribuição financeira que, voluntária ou não, é um ato criminoso aos olhos do Estado.
Quatro chefs citados no hipotético depoimento (Martin Berasategui, Juan Mari Arzak, Juan Pedro Subijana e o popular Karlos Arguiñano) foram chamados a Madri para depor perante a Audiência Nacional -uma espécie de procuradoria responsável pela apuração de "crimes terroristas".

Novo patamar
A direita espanhola mostrou as garras e fez campanha pelo boicote aos restaurantes dos envolvidos. O presidente da Província de Cantábria chamou-os de "assassinos de mesa". Mas o decano Arzak foi condecorado e ovacionado no "Madrid Fusión" como "chef do ano".
"Madrid Fusión" colocou a gastronomia num novo patamar. Em primeiro lugar, pelo amplo reconhecimento de que a culinária é um aspecto crucial da identidade dos povos. Foi grande o entusiasmo pelos trabalhos do brasileiro Alex Atala, pela utilização de ingredientes amazônicos; do japonês Yuki Wakiya, que reinterpreta a cozinha chinesa de Xangai; e do siciliano Carmelo Chiaromonte, pela utilização de vísceras de atum, segundo tradições sicilianas de épocas de crise.
Em segundo lugar, pelo espetáculo midiático que se esboça. Provavelmente, as próximas edições desse evento farão da gastronomia uma celebração como os desfiles de moda. Finalmente, porque a gastronomia de vanguarda mostra a convergência contraditória que aproxima tecnologias de ponta e artesanato, reforçando a agricultura sustentável e dando as costas à grande indústria alimentar. (CARLOS ALBERTO DÓRIA)


Texto Anterior: O filósofo da gastronomia
Próximo Texto: + livros: Símbolos em rotação
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.