São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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Abu Ghraib, entre duas mortes

Slavoj Zizek

Alguém ainda se recorda do infeliz Mohammed al Sahaf, o ministro da Informação de Saddam Hussein, que, em suas diárias entrevistas coletivas à imprensa, negava heroicamente até mesmo os fatos mais evidentes, mantendo-se sempre fiel à linha iraquiana? Quando os tanques iraquianos estavam a poucas centenas de metros de seu gabinete, ele continuou a afirmar que as imagens exibidas pela televisão americana dos blindados nas ruas de Bagdá eram apenas efeitos especiais de Hollywood. Uma vez, entretanto, ele afirmou uma verdade estranha. Diante da declaração de que o Exército dos EUA já controlava partes de Bagdá, retrucou: "Os americanos não estão em controle de nada, nem sequer controlam a eles mesmos". Quando veio à tona a notícia escandalosa sobre os fatos esdrúxulos que aconteciam na prisão de Abu Ghraib (Bagdá), tivemos um vislumbre dessa dimensão precisa: a de que os americanos não controlam a eles mesmos. Em sua reação às fotos de prisioneiros iraquianos torturados e humilhados pelos soldados americanos, divulgadas no final de abril de 2004, [o presidente] George W. Bush, de maneira previsível, destacou que os atos desses soldados foram crimes isolados que não refletem aquilo que os EUA representam e pelo qual lutam: os valores da democracia, da liberdade e da dignidade pessoal. E, na realidade, o simples fato de o caso ter virado um escândalo público que colocou o governo americano em posição defensiva foi, em si, um sinal positivo: em um regime realmente "totalitário", o caso teria simplesmente sido abafado. Do mesmo modo, não nos esqueçamos de que o simples fato de as forças americanas não terem encontrado armas de destruição em massa também constitui sinal positivo: uma potência realmente "totalitária" teria feito o que os policiais costumam fazer: plantar drogas e depois "descobrir" as provas... Entretanto uma série de fatores perturbadores complica o quadro simples. Nos últimos meses, a Cruz Vermelha Internacional vinha bombardeando as autoridades militares americanas no Iraque com relatos sobre os abusos cometidos nas prisões militares no país, e esses relatos foram sistematicamente ignorados; logo, não é que as autoridades americanas não tivessem conhecimento do que estava acontecendo -elas simplesmente admitiram o crime apenas quando (e porque) ele foi revelado na mídia. Em segundo lugar, a reação imediata do comando do Exército americano foi surpreendente: a explicação oferecida foi que os soldados não haviam sido adequadamente educados sobre as regras da Convenção de Genebra quanto ao tratamento de prisioneiros de guerra -como se fosse preciso ser educado a não humilhar e torturar prisioneiros!

Técnicas de tortura
Mas o principal é o contraste entre a maneira "padrão" pela qual os prisioneiros eram torturados no regime de Saddam e a tortura empregada pelo Exército americano: enquanto, no regime anterior, a ênfase era dada à dor brutal, os soldados americanos focalizaram a humilhação psicológica. Além disso, o ato de registrar a humilhação com uma câmera, com os perpetradores incluídos nas imagens, seus rostos sorrindo estupidamente lado a lado com os corpos nus e retorcidos dos prisioneiros, constitui parte integral do processo, formando um contraste marcante com o segredo que envolvia as torturas de Saddam. As próprias posições dos prisioneiros e os "adereços" que usam sugerem uma encenação teatral, uma espécie de "tableau vivant", o que faz lembrar toda a extensão da arte performática americana e do chamado "teatro da crueldade", as fotos de Mapplethorpe, as cenas esdrúxulas dos filmes de Lynch... E é essa característica que nos conduz ao xis da questão: para qualquer pessoa familiarizada com a realidade do modo de vida americano, as fotos trouxeram à mente imediatamente o lado inferior, oculto e obsceno da cultura popular americana -por exemplo, os rituais iniciáticos de tortura e humilhação pelos quais é preciso passar para ser aceito em uma comunidade fechada. Não é fato que, a intervalos regulares, vemos fotos semelhantes na imprensa americana, quando algum escândalo explode em uma unidade do Exército ou campus de faculdade, em ocasiões em que o ritual iniciático foi além da conta e soldados ou estudantes foram feridos além de um nível considerado tolerável? Assim, o que aconteceu não foi simplesmente uma instância de arrogância americana em relação a uma população de Terceiro Mundo: ao serem submetidos às torturas humilhantes, os prisioneiros iraquianos foram efetivamente iniciados na cultura americana -puderam sentir o gosto de seu lado oculto e obsceno, que forma a contrapartida necessária aos valores públicos de dignidade pessoal, democracia e liberdade. Não surpreende, portanto, que esteja ficando claro, pouco a pouco, que a humilhação ritual de prisioneiros iraquianos não foi um caso limitado, mas fez parte de uma prática largamente difundida. Em 6 de maio, Donald Rumsfeld foi obrigado a admitir que as fotos levadas a público formam apenas "a ponta do iceberg" e que há imagens muito mais fortes ainda por vir. Essa é a realidade da afirmação feita por Rumsfeld em tom de pouco caso, há dois meses, quando disse que as regras da Convenção de Genebra estão "desatualizadas" com relação à guerra como ela é travada hoje. Em um debate recente promovido pela rede NBC sobre o destino dos prisioneiros de Guantánamo, um dos argumentos em favor da aceitabilidade ético-legal do status deles era que "eles são aqueles a quem as bombas deixaram de atingir": já que foram alvos de bombardeios americanos e, por acidente, sobreviveram a eles, e como esses bombardeios faziam parte de uma operação militar legítima, não se pode condenar o que foi feito deles depois de serem feitos prisioneiros, após o combate. Seja qual for sua situação, ela é melhor -menos grave- do que a morte. Esse raciocínio revela mais do que pretende fazer: coloca o prisioneiro quase literalmente na posição de morto-vivo, de alguém que, de certo modo, já está morto (tendo seu direito à vida sido perdido pelo fato de ter sido alvo legítimo de um bombardeio mortal), de tal modo que ele hoje é uma instância de algo que Giorgio Agamben chama de "homo sacer", aquele que pode ser morto com impunidade, já que, aos olhos da lei, sua vida já deixou de ter valor. Se os prisioneiros de Guantánamo se encontram no espaço "entre duas mortes", ocupando a posição de "homo sacer" ou legalmente mortos (privados de status legal determinado), embora biologicamente continuem vivos, as autoridades americanas que os tratam dessa maneira também ocupam uma espécie de status legal intermediário que forma a contrapartida ao "homo sacer". Embora ajam como poder legal, seus atos já não são cobertos e limitados pela lei: elas operam em um espaço vazio que ainda está dentro do domínio da lei. As revelações recentes sobre Abu Ghraib apenas trazem à tona todas as consequências de situar prisioneiros nesse espaço "entre duas mortes".

Filosofia de botequim
Em março de 2003, ninguém mais, ninguém menos do que o próprio Rumsfeld se meteu a fazer filosofia amadora sobre a relação entre o conhecido e o desconhecido: "Existem conhecidos conhecidos", disse ele. "São as coisas que sabemos que sabemos. Existem desconhecidos conhecidos. Ou seja, existem coisas que nós sabemos que não sabemos. Mas também existem desconhecidos desconhecidos. Há coisas que não sabemos que não sabemos". O que ele esqueceu de acrescentar foi o quarto termo, esse, sim, crucial: os "conhecidos desconhecidos", coisas que ignoramos conhecer -que constituem precisamente o inconsciente freudiano, o "conhecimento que não conhece a si mesmo", como dizia Lacan.
Se Rumsfeld acha que o perigo principal no confronto com o Iraque está nos "desconhecidos desconhecidos" -as ameaças de Saddam que nem sequer desconfiamos quais possam ser-, o escândalo de Abu Ghraib deixa claro onde estão os maiores perigos: nos "conhecidos desconhecidos", as crenças, suposições e práticas obscenas que repudiamos e fazemos de conta que desconhecemos, embora formem o pano de fundo do desfrutar obsceno que sustenta o modo de vida americano. E, como corretivo final, deveríamos tentar imaginar um grupo de soldados árabes sujeitando soldados americanos feitos prisioneiros às mesmas humilhações e torturas -qual não teria sido a revolta da opinião pública ocidental "civilizada"?


Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de, entre outros, "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo). Escreve periodicamente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain.


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