São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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O Estado sou eu

Centralização do poder nas mãos do presidente Vladimir Putin está moldando a Rússia atual nos padrões da ex-União Soviética, mas sem o cerceamento de ideologias

Eduardo Szklarz
free-lance para a Folha

A Rússia perdeu muitos de seus atributos nos últimos anos, mas não deixou de ser o palco preferido para os vendavais da história. Sob o comando cada vez mais absoluto do presidente Vladimir Putin, o país tenta recuperar a pujança de outros tempos enquanto enfrenta problemas como a guerra na Tchechênia, as desigualdades sociais, o terrorismo e uma assustadora redução populacional. O controle do Estado avança sobre os espaços autônomos da sociedade, transformando a liberdade de imprensa num produto em extinção.
"Hoje não temos uma TV independente no país", afirma Tatiana E. Vorozheikina, decana da Faculdade de Ciências Políticas da Escola de Ciências Sociais e Econômicas de Moscou. Vorozheikina também analisa as fissuras provocadas no país pelo fim do tradicional casamento entre o poder político e o poder econômico. Ela concedeu a entrevista a seguir por telefone, de seu escritório em Moscou.

 
Como avalia o contexto político, econômico e social da Rússia de hoje?
Para falar da situação geral da Rússia, oficialmente se usa a palavra estabilização. Significa dizer que depois dos anos 90, época do presidente Boris Ieltsin, o país se estabilizou nos planos econômico, social e político. O caos se ordenou. Essa é a tese do poder, particularmente do presidente Vladimir Putin.
Na minha avaliação, há uma mudança muito pronunciada nos últimos cinco anos, que se caracteriza por uma regeneração do modelo tradicional das relações entre o Estado e a sociedade. O Estado trata de controlar todos os espaços autônomos na economia, na sociedade, no político, na opinião pública e nos meios de comunicação para restabelecer o domínio que, se não estava quebrado totalmente, havia sido quase destruído na primeira metade dos anos 90.

Como se manifesta esse controle estatal?
Putin assume o poder em março de 2000 e a primeira coisa que faz é iniciar o restabelecimento do controle sobre os meios eletrônicos. Hoje não temos uma TV independente no país. Todos os canais são direta ou indiretamente controlados pelo Estado. Há duas redes que pretendem ser independentes, mas têm alcance muito limitado.
Em segundo lugar, Putin restabelece o controle vertical do poder nas regiões. Na época de Ieltsin, as autoridades das distintas regiões da Rússia tinham autonomia para conduzir seus próprios regimes, mas isso termina drasticamente com a reforma da Câmara Alta e com a mudança do regime orçamentário, que agora voltou ao padrão soviético. A Federação acumula 70% dos impostos para depois redistribuí-los às regiões. Também percebo a recuperação do controle do poder central sobre os partidos e o Parlamento.

De que forma?
A administração construiu o que agora se chama Rússia Unida, o partido do poder, que não tem nenhuma ideologia e nenhum outro programa a não ser apoiar o presidente Putin. Todos os demais partidos são marginalizados, sejam de esquerda, sejam de direita. Inclusive o Partido Comunista, o mais poderoso da esquerda. Por meio de uma série de leis e mudanças institucionais, o governo agora também controla o processo de criação de partidos.
É muito difícil organizar uma nova formação partidária. Ainda existem alguns jornais independentes, que podem criticar o poder, mas seu número vem diminuindo. E o mais importante: a ascensão do presidente Putin está muito relacionada à segunda guerra na Tchechênia. Essa nova guerra já dura cinco anos e tem duas importantes conseqüências para o país. Não há dados oficiais, mas se calcula que ela já causou a morte de 80 mil civis e 15 mil soldados. Além disso, a guerra provocou uma degeneração muito grande do Exército de ocupação. A prática diária na Tchechênia inclui desaparecimentos, torturas, saques e violações.

Qual a estratégia de Putin em relação a Tchechênia?
Ele pretende "tchechenizar" a administração, ou seja, buscar apoio de ex-combatentes e também dos que nunca apoiaram o separatismo. O plano é criar uma força de administração controlada pelo poder central, mas tchechena. Vimos isso nas eleições de outubro do ano passado. Havia vários candidatos para competir com Akhmad Kadyrov [eleito presidente da Tchetchênia, mas assassinado em 9/5, possivelmente por rebeldes tchechenos, que reivindicaram o atentado], o candidato do poder, mas apenas os menos influentes ficaram na disputa. Esse tipo de eleição, pretensamente livre, é cada vez mais presente nas regiões russas -e, até certo ponto, podemos dizer o mesmo das eleições presidenciais russas realizadas em março deste ano. Putin não tinha nenhum adversário real. Nessas eleições, cerca de 64% dos eleitores compareceram às urnas e 71% deles votaram em Putin. Segundo as pesquisas atuais, o índice de aprovação do presidente chega a 75%. Os dados vêm de agências independentes e confiáveis.

Quer dizer que a população apóia Putin apesar da crescente centralização?
Sim. A primeira explicação para esse fenômeno é que as pessoas se cansaram da desordem dos anos 90. A segunda é que a situação econômica melhorou. O governo está aproveitando bem os recursos do petróleo para solucionar coisas que eram insuportáveis no período Ieltsin. Muita gente trabalhava e não recebia salário. Os professores secundários chegaram a ficar um ano sem receber.
O apoio a Putin também se relaciona com a guerra na Tchechênia. As explosões em edifícios residenciais em Moscou e outras cidades, em 1999, criaram na maior parte da população russa um sentimento de ódio, ressentimento e vingança em relação ao povo tchecheno. A população não apoiava a guerra em sua primeira fase (1994-96), mas agora mudou radicalmente de opinião. Putin usou o conflito para capitalizar seu apoio pessoal. É visto como um líder que está defendendo os interesses da Rússia e disposto a fazer qualquer coisa para restabelecer a ordem.

A Rússia se tornou o país com a maior quantidade de multimilionários. Segundo a revista "Forbes", existem 36 pessoas com fortunas superiores a US$ 1 bilhão. Como se explica esse fenômeno e qual a relação dos magnatas russos com o poder?
A liberação econômica produziu essa diferenciação drástica entre os muito ricos e os pobres, um contraste que faz lembrar a América Latina. Mas é preciso notar que essa relação entre o poder e o mundo dos negócios é um problema secular na Rússia, tanto antes da Revolução de Outubro como na época soviética. O país sempre se caracterizou pela união quase indivisível entre a propriedade e o poder, sendo o poder a parte dominante dessa união.
Quando se iniciou a privatização nos anos 90, tudo foi feito utilizando-se as possibilidades outorgadas pela autoridade. Todos os impérios extrativos que se criaram nessa época foram construídos sob a tutela de certas partes do governo. Na metade dos anos 90, esses impérios chegaram a um nível de poder econômico tal que já tinham condições de controlar o poder político. Demonstraram isso claramente com a reeleição de Ieltsin em 1996. Mas Putin chegou disposto a voltar ao modelo tradicional. Ou seja: manter a unidade entre poder e propriedade, mas com o poder controlando a propriedade. Começou suas ações pelo império de Mikhail Khodorkovsky (o homem mais rico da Rússia e cabeça da companhia petrolífera Yukos, com uma fortuna estimada em 15,2 bilhões de dólares, que foi preso no ano passado acusado de fraude e evasão fiscal).

Por que Khodorkovsky?
Khodorkovsky fez varias coisas para impedir a estratégia de Putin de ocupar todos os espaços autônomos. Quis desfazer os ganchos existentes entre o poder e os agentes econômicos, em que todos estão comprometidos com a falta de pagamentos de impostos e a violação das leis. Desde 2001, ele tratou de pagar impostos e se distanciar dessas práticas. Transformou a Yukos na mais transparente das companhias extrativas russas. Gastou muito dinheiro apoiando partidos independentes e realizando programas sociais com alta divulgação nas regiões petroleiras, entre eles a informatização de escolas e o financiamento de universidades.

Como está a relação entre Putin e os oligarcas?
Ela se agravou bastante. Muita gente diz que o governo atacou Khodorkovsky porque este financiava partidos e pretendia ser presidente. Mas para mim o principal motivo do ataque é a violação por Khodorkovsky da cumplicidade entre o poder e a economia com sua política de transparência. Os oligarcas são muito malvistos pela população. Cerca de 70% dos russos apóiam as medidas tomadas pelo poder contra eles, pois vêem nisso uma luta do governo contra ladrões. Esses impérios violaram leis para ser criados, mas o fizeram com apoio do Estado. Tal apoio permitiu que se apropriassem de grande parte da propriedade estatal.

A sr. poderia explicar o que seriam esses ganchos entre o poder e a propriedade?
Podemos explicá-los aludindo ao México da época do PRI (Partido Revolucionário Institucional). Segundo a Constituição mexicana, nenhuma companhia poderia ter mais do que 50% de capital estrangeiro em algumas indústrias, como a de automóveis. Mas, durante o domínio político do PRI, a maioria das fábricas de carros tinha 100% de capital americano. Isso é o que chamo de gancho: o poder sempre podia tirar proveito das empresas porque elas violavam a lei. O mesmo tipo de relação era muito proveitoso para ambas as partes na Rússia dos anos 90. Essas fortunas foram criadas utilizando o Estado, corrompendo-o e usando seu apoio para comprar as grandes jazidas petroleiras por valores irrisórios. Os oligarcas podem ser culpados de muitas coisas para fazê-los dóceis. Essa é a base de cooperação entre o Estado e os agentes econômicos. Mas Khodorkovsky se sentiu tão poderoso que quis parar com as relações especiais e submetê-las ao direito. Certamente, essa transparência se tornou muito disfuncional para o controle estatal.

Todo o movimento centralizador de Putin seria uma espécie de volta ao passado soviético, mas sem ideologia?
Em alguns aspectos sim, em outros não. Na parte política e social, certamente. Ele reconstruiu certos pilares do antigo poder, como o controle do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, a dominação de um partido no Parlamento e o controle sobre os meios de comunicação. Mas chamar isso de restauração seria equivocado. O poder soviético não precisava de eleições alternativas porque tinha meios ideológicos de legitimação política. Como o atual poder ainda não tem ideologia, precisa de meios de legitimação puramente políticos -as eleições alternativas. São eleições em que muitos candidatos participam, mas todos sabem quem vai ganhar. Claro que o comunismo morreu como ideologia, mas o regime está buscando uma ideologia estatista, que restabeleça a grande potência com matizes russos nacionalistas e até ortodoxos. Putin costuma aparecer com o patriarca da Igreja Ortodoxa russa. Isso é muito perigoso num país multinacional, multiétnico e multiconfessional. Busca-se uma ideologia eclética que evoque o passado de grande potência, seja o do império czarista, seja a da União Soviética.

Como essa evocação do passado se reflete na relação com ex-repúblicas soviéticas?
Putin declarou que a desintegração soviética fora uma grande tragédia, mas ninguém pensa no restabelecimento do controle político. A Rússia trata de manter o controle nas repúblicas onde tem recursos militares ou econômicos. Vimos isso na Geórgia até a mudança do governo local. Certo é que o território da ex-União Soviética é o território do interesse estratégico prevalente da Rússia. Claro que há poucos recursos para isso, sobretudo com a entrada de algumas ex-repúblicas na União Européia.

Além da sensação de diminuição territorial, a Rússia enfrenta a redução populacional e uma pressão da população chinesa na fronteira. Como conjugar esses fatores?
A Rússia tem hoje 145 milhões de habitantes, aproximadamente a metade do que a União Soviética tinha antes de se desfazer. Houve uma redução de cerca de 5 milhões de pessoas nos últimos dez anos. Segundo os demógrafos, as causas principais dessa queda populacional vão além dos problemas econômicos. Estariam relacionadas à queda drástica de nascimentos após a Segunda Guerra Mundial e a outros fatores que afetam a esperança de vida masculina, como o alcoolismo, a criminalidade e os acidentes nas indústrias. Essa redução leva a um agravante político: a mudança de proporção entre a população eslava e a não-eslava, sobretudo muçulmana, cuja taxa de natalidade é muito maior. A pressão da população chinesa é muito forte na parte asiática do país, que é pouco povoada. Entretanto esse problema produz contradições mais ideológicas do que reais. Os russos do Leste convivem e cooperam com os chineses que se instalam dentro da fronteira. Já os nacionalistas vêem a entrada de chineses como uma catástrofe. Segundo todas as pesquisas, as atitudes xenófobas e nacionalistas pró-etnia russa crescem em todas as regiões do país e em todas as camadas da população, independentemente de sexo, idade e educação. A população mais educada das grandes cidades apresenta altos níveis de xenofobia. Isso se deve à perda de status de grande país, à sensação de que o território encolheu e aos sofrimentos econômicos. A conseqüência é dupla: de um lado, ressentimento; de outro, apoio incondicional a Putin.

Como a sra. observa a relação atual entre a Rússia e os Estados Unidos?
Apesar das contradições sobre os confrontos no Iraque, a aproximação que houve durante os anos 90 continua de certa maneira. A Rússia tirou muitas vantagens da chamada luta contra o terrorismo internacional na guerra na Tchechênia. Apresentou a resistência tchechena como manifestação do terrorismo internacional. Portanto, estamos do mesmo lado dos EUA: eles combatendo o terrorismo no Iraque, nós na Tchechênia.

E com a Europa?
Antes da Guerra do Iraque, a França foi o país que mais criticou a violação de direitos humanos na Tchechênia. Mas, quando a Rússia apoiou a posição franco-alemã contra a guerra no Iraque, essa crítica se abrandou. O último elemento de contradição foi a entrada oficial de Estônia, Lituânia e Estônia na OTAN [aliança militar ocidental]. Como a Rússia não tem como resistir, esse fato vai ser esquecido pouco a pouco porque se relaciona com o processo de alargamento da União Européia. A recente visita de Romano Prodi (presidente da Comissão Européia) a Moscou foi muito exitosa porque selou o apoio da UE ao ingresso de Rússia na OMC (Organização Mundial do Comércio). Lembremos que a UE representa 50% do comércio russo. O problema da guerra na Tchechênia vai continuar produzindo contradições. As conseqüências vão depender de uma mudança na administração americana e das atitudes assumidas pela Europa. No momento, a comunidade internacional prefere não dar muita atenção ao assunto.

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