São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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HEROÍSMOS DE NOSSO TEMPO

"Cartas", de Burckhardt, e "O Processo de Luís 16",de Michelet, lançam luz sobre dois historiadores que deram novo impulso a suas disciplinas no século 19 ao enfatizarem a ação individual

Manolo Florentino
especial para a Folha

Toda história é presente, e poucos temas expressam tão bem semelhante idéia do que as sucessivas leituras do Renascimento e do século 16. Por exemplo, afiançados por novidades representadas pela bússola, as cartas marítimas e a imprensa, historiadores e escritores coevos como La Popelinière e Estourneau afirmavam-se modernos ou faziam radicar na superioridade da nova religião o traço característico da modernidade. Filósofos do quilate de um Erasmo ancoravam-na no comércio. Duzentos anos depois, pela pena corrosiva de Voltaire a modernidade se tornou decepção -o século 16 teria sido o da frustração encarnada em promessas anticlericais não cumpridas. Mais cem anos e Jules Michelet (1798-1874) e Jacob Burckhardt (1818-1897) novamente reinventaram o Renascimento e o Quinhentos, agora em torno da ação individual criadora e do heroísmo, em evidente reação às forças coletivas que se afirmavam no século 19. Aspectos essenciais dessa particular visão do indivíduo estão igualmente presentes em dois livros que apenas desembarcam no mercado brasileiro. O primeiro, as "Cartas", de Burckhardt, agrega a correspondência ativa do suíço entre os 20 e os 79 anos de idade. É sedutora a tentação de reduzi-lo a mero representante do patriciado conservador da Basiléia -sua família chegara à cidade em fins do século 15, por mais de 150 anos um em cada dois burgomestres fora um Burckhardt, e ali o historiador da arte vivera 68 anos de sua longa trajetória. Como se não bastasse, Burckhardt jamais escondeu sua visceral oposição ao sufrágio universal, à educação pública moderna, ao seguro de saúde pública e às mulheres estudando.

Resignação vital
A erudita introdução de Luiz Costa Lima para a edição brasileira rejeita adequadamente semelhante aproximação. Pois um dos fios condutores da compreensão das "Cartas" radica em certa resignação vital de Burckhardt, nutrida por uma concepção absolutamente realista e sempre mais refinada do devir humano -isto é, infensa a determinismos de qualquer tipo, sejam os embasados na ideologia do progresso, sejam os que por decênios enlevaram as massas organizadas do Ocidente, passando pela rejeição ao niilismo de Nietzsche, o qual, por "caminhar à beira dos mais vertiginosos rochedos", lhe causava apenas "medo e prazer" (carta a Nietzsche, 5 de abril de 1879).
É de Borges a observação segundo a qual o conservadorismo nada mais representa do que a outra face do ceticismo. Por isso, ao se dizer "filho do mundo", Jacob Burckhardt imprimia à expressão um sentido muito específico: o do homem descrente em relação à existência de qualquer Idade do Ouro, que por isso mesmo se tornara "livre do tolo desejo de supervalorizar algum período do passado, desesperar-se com o presente ou nutrir absurdas esperanças em relação ao futuro" -escreveu.
A tradução de sua correspondência, embora voltada para público restrito, pode ao menos acalentar o tão necessário pluralismo entre nós.
O livro de Jules Michelet é de interesse mais amplo. De início, na medida em que cada página de "O Processo de Luís 16" é vencida, se torna incontornável a captura de ecos do Charles Dickens de "Um Conto de Duas Cidades". Longe de ser aleatória, a associação advém do método de Michelet: fazer fluir o passado não exatamente por meio da contemplação tão cara a Burckhardt, mas sim da efetiva imersão do próprio historiador na narrativa, do que resulta uma síntese de feroz dramaticidade.
Lesa-nação, eis o crime imperdoável menos para os atores do drama histórico do que para Michelet, cujo nacionalismo que antes impregnara os 19 volumes de sua monumental "História da França" (1833-67) igualmente plasma a trama de "O Processo de Luís 16". "A nação não é mais uma coleção de seres diversos, é um ser organizado; bem mais, uma pessoa moral. Eclode [então] um mistério admirável: a grande alma da França" -escreve. Se a pessoa é algo santo e inviolável, quando a nação nela se converte "sua inviolabilidade aumenta em proporção".


Obrar contra a França torna-se, pois, "o maior dos crimes'; logo, o rei é culpado


Obrar contra a França torna-se, pois, "o maior dos crimes". Logo, o rei é culpado.
Estabelecida a culpa, a narrativa deveria inicialmente organizar-se ao redor do paradoxo representado pelo honesto monarca que proclama inocência quando tudo prova que tentara abandonar o reino em busca do socorro dos exércitos estrangeiros. A doutrina da razão de Estado, que por meio dos jesuítas se introjetara em seu espírito, tornaria aparente o paradoxo -para ela, afinal, verdadeiro e falso configuram termos intercambiáveis, dispositivos cuja operacionalidade deriva tão-somente dos interesses do Estado. É nesse ponto que a argumentação de Michelet se reorienta, e o novo mote passa a ser sutilmente expresso no duplo significado assumido pela noção de "processo": para explicar o ato jurídico que redundou no regicídio se deve reconstruir o processo histórico que caldeava a condenação.
Pois, se é certo que, contraposta à nação revolucionária, a realeza vendilhona é culpada, a dinâmica interna do país se tornara ainda mais aterrorizante do que as ameaças exteriores -as cidades encontravam-se paralisadas e perigosamente ausentes de crença, o medo e as expropriações imprimiam o tom no agro, a tão necessária autoridade definhava.
Daí em diante uma impressionante narrativa é cuidadosamente tecida ao redor da dinâmica antropofágica e do surgimento do Justo (Robespierre), cujos traços antecipam muito do elã que mais tarde Isaac Deutscher identificaria nas revoluções modernas: à hegemonia de um grupo razoavelmente extenso sucede-se a de outros menores, em uma cadeia de segmentações que somente encontrará termo quando da naturalização do terror que aniquila não apenas os inimigos, mas sobretudo os próprios pares.
Destaque para a carpintaria que preside a montagem do perfil mutante de Robespierre, arguto no diagnóstico de que seu entorno exauriu toda palavra, mas não a conduta pessoal, a vida conhecida, a atmosfera de honestidade que deve se tornar o seu esteio.
Eis a Fortuna em plena ação, pois, se um homem especial é necessário, este não busca, não maquina, deixa-se buscar. Robespierre encarna-se então em princípio vivo.
Mas o Justo não executa, delega. E logo Saint-Just se arvora em portador do gládio que dá forma à condenação. O rei não deveria ser julgado por muito tempo, sua morte deve ser imediata -a César foram necessárias não mais do que 22 punhaladas. Contra semelhante argumento Faucher apenas poderá retrucar serem os crimes do Capeto tão graves que a morte seria um beneplácito: era necessário condená-lo à vida. Não vingou, e Luís 16 acabou condenado à guilhotina pelo mesmo veredicto que negava submeter a sentença à avaliação do povo.
O motivo? O fim deveria ser rápido, pois a cada minuto aumentava no seio do povo a contrariedade com a execução. Os vários meses de cativeiro permitiram ao rei reconquistar a muitos, a ponto de às vésperas da derradeira hora ter sido difícil encontrar dois executores. Logo após a sua morte uma mulher se atirou ao Sena, um cabeleireiro degolou-se, um livreiro enlouqueceu e um ex-oficial morreu de emoção. O processo de Luís 16 recolocou o povo e o rei em relação. O perigo maior era a piedade pública. Suprema ironia: a razão de Estado voltou-se contra o próprio monarca.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Ensaios sobre a Escravidão" (editora da UFMG).

Cartas
431 págs., R$ 46,00
de Jacob Burckhardt. Trad. Renato Rezende. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, gr. 203, CEP 20091-000, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/2233-8718).
O Processo de Luís 16
240 págs., R$ 32,00
de Jules Michelet. Trad. Plínio Augusto Coêlho. Observatório de Políticas Sociais do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul/Ed. Expressão e Arte/Ed. Imaginário (r. Ciro Costa, 94, conjunto 1, CEP 05007-060, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3864-3242).



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