São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004 |
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+ literatura O cerco dos ratos
Ensaísta discute romance de 1935 de
Dyonelio Machado que está sendo reeditado
Naziazeno Barbosa precisa de 53
mil réis para pagar a conta do
leiteiro e sai pela cidade -uma
Porto Alegre do começo do século 20- para cavar o dinheiro. Como
num lance de jogo, a narração seguirá as
andanças desse pequeno funcionário
público, movido pela mais estrita necessidade, durante um único dia. O retorno
à casa com alguns cobres, já noite feita, o
leiteiro pago e o jorro cantante do leite,
na madrugada seguinte, encerram o círculo de uma narrativa paranóide, marcada pela busca obsessiva que raia o delírio,
sem que, afinal de contas, se resolva o
problema mais geral da existência de Naziazeno.
Em 28 capítulos curtos, apareceram,
em 1935, "Os Ratos", de Dyonelio Machado, dublê de escritor e psiquiatra, cuja obra mais representativa é parca, mas
instigante, e pela aparente desigualdade
do conjunto continua desafiando a crítica. Trata-se de um romance breve, concentrado, surpreendente pela originalidade saída do mais prosaico, com perfeito equilíbrio entre os elementos psicológicos e sociais, explorados em profundidade, numa forma simbólica de longo alcance.
Os anos se escoaram, e o livro continua
forte, entre o que há de fundamental na
prosa de ficção brasileira, sendo exemplo
bom até hoje de como se pode tratar de
problemas humanos básicos da vida em
sociedade sem cair no naturalismo rasteiro, nos modismos fáceis de linguagem
e na mera reprodução das formas de
brutalismo e violência que infestam nossas cidades, degradando nossa existência. É pelas pegadas esquivas de seu anti-herói moderno que entramos a fundo
em perplexidades reveladoras de nosso
tempo, demonstrando a força de conhecimento, sugestão imaginativa e sopro
de poesia que pode alcançar a literatura
quando bem feita.
E assim a epopéia rebaixada do cidadão comum que luta pela sobrevivência assume surpreendente dimensão trágica com apoio nas ações diminutas e amesquinhadas em que se fraciona a sua existência. A conseqüência social e moralmente degradante da opressão material toma corpo na linguagem, de modo que o meio de expressão acaba por espelhar o conteúdo. O leitor percebe a cada passo entrecortado de Naziazeno o quanto ele é oprimido, o quanto está isolado. O isolamento é reforçado pelo tratamento das ações: elas são o resultado mesquinho, materialmente esfarelado, de uma existência roída pela necessidade até o ponto da inexorabilidade trágica. E o discurso segmentado da narrativa, somado ainda à brevidade dos capítulos, potencia, por fim, a significação da cadeia miúda dos atos, dos indícios de rato por toda parte: fecha-se o cerco sobre Naziazeno, implacavelmente. Entre a necessidade e o acaso A situação de penúria relega o ser ao domínio da necessidade bruta; faz dele uma espécie de joguete da sorte. Obrigada pela falta de dinheiro, a existência humana se reduz ao drama básico: a luta desesperada pela sobrevivência. O pobre diabo só pode encontrar saída por um golpe do acaso. Está condenado de antemão a um jogo perverso: quem nada tem deve arriscar tudo. A certa altura, Naziazeno perde os 5.000 réis que consegue com um conhecido para pagar o almoço, ao arriscar a sorte numa roleta clandestina. Ele que costuma apostar na corrida de cavalos e no bicho, agora põe seu destino em jogo. Ganha mais do que precisa e perde tudo de novo, conforme a lógica a que está obrigado: a roleta se torna uma imagem de sua própria existência, reiterando o círculo onde se acha aprisionado. Esse lance simbólico deixa-o a sós com seu destino, descartando a solução mágica do problema: é o osso mais duro de roer que sobra por fim. Embora precise de uma quantia irrisória, ao tomar o bonde na periferia da cidade, em busca do centro e do vil metal que tanta falta lhe faz -de vez em quando o sol tomará o aspecto alucinatório de uma moeda em brasa acima do horizonte-, está se sujeitando à experiência radical de buscar o sentido de sua própria existência miserável. Desamparado num mundo hostil, ele se vê sempre vigiado, ameaçado, como se o espreitassem por toda fresta. É assim com os vizinhos, no começo do livro; depois, com os conhecidos incômodos; por todo lado, está à mercê de "olhos devassadores". E a todo instante sente-se pressionado a esgueirar-se como um rato. Aí se entende que sua busca é também uma tentativa desesperada de evasão: perseguidor forçado, na verdade é um grande perseguido. O jogo apenas configura uma das ilusões de mudança de sua situação encalacrada; enquanto imagem superposta a seu comportamento obsessivo, materializa a perseguição em que é agente e vítima; amplifica a metáfora de sua condição trágica. O destino em mãos alheias O círculo infernal de Naziazeno, perdedor nato na roleta da vida, não tem saída. Com sua fraqueza exposta, delega a solução do problema à esperteza alheia; surge então outro rato, cujo focinho, "sereno e atento", não deixa dúvida: está mais adaptado ao mundo de sobras miúdas. Chama-se Duque e já é marcante antes mesmo de aparecer depois da metade do livro. Insinua-se sorrateiro nas primeiras páginas, conduzindo às finais, pois leva ao último logro de que é vítima Naziazeno: resolve seu problema imediato, sem mudar-lhe a condição miserável. Mas há ratos e ratos; a diferença que o separa do Duque faz dele apenas um joguete na roda do destino, pronto a transferir para mãos mais hábeis e poderosas o domínio de sua própria existência. A disseminação de traços de rato por toda a narrativa completa a saturação do ambiente pela idéia obsedante: o microcosmo atormentado em que se converteu a Porto Alegre de Dyonelio. A cidade deixou de ser um lugar libertário onde múltiplas possibilidades se abrem à escolha do sujeito para se tornar o espaço fechado da estranheza do mundo, como se fosse a confirmação soturna da noite moral numa gravura de Goeldi. A força significativa dessa situação é decerto grande e pode ser encarada de diversos ângulos. Um, imediato, é o do contexto histórico-social no momento em que se produz o livro. São os anos que precederam o Estado Novo, e o romance se deixa ler também por esse lado documental, antecipando no cotidiano miúdo dos necessitados, presas fáceis de toda opressão paternalista, a sombra dos anos cinzentos da ditadura de Getúlio, "pai dos pobres". Basta pensar, no entanto, no futuro do país às voltas com uma dívida impagável para perceber como a redução do significado do livro às condições de sua gênese pode ser limitadora, diante do raio de ação da forma simbólica do romance, válida mesmo em contextos diversos dos da sua origem. A alegoria política é só uma das possibilidades de significado da narrativa. Mais radical é a metáfora da existência degradada pela alienação -apesar do desgaste desse conceito-, pela perda da própria substância humana, que acaba por reduzir o homem à condição inferior, à deformidade social e psicológica, confundindo-o enfim com o animal mais vil. A fábula circular e persecutória do ser acuado, cuja vigência em nosso tempo, quando a narrativa paranóide vai se tornando a história mais comum de todo dia, tende a se confundir com a situação tipicamente kafkiana: a recorrência da opressão e do constante adiamento que só um ato virtual, inexeqüível, poderia redimir. É difícil saber o início da presença de Kafka entre os narradores brasileiros -um contista fantástico, Murilo Rubião, cujas afinidades com o autor de "A Metamorfose" parecem tão prováveis, afirmava ignorá-lo ainda nos anos 40-, e o romance de Dyonelio tem outros lados não kafkianos; paralelo mais evidente se acha entre outros romancistas brasileiros da época. Os retirantes nordestinos de Graciliano em "Vidas Secas", pressionados pelo sertão esturricado, se encaminham para o sul, a uma cidade grande, com a esperança de redimir os males de sua triste condição; o pobre homem de Dyonelio se debate inutilmente para encontrar uma saída em sua cidade no extremo sul. O romance de 30 se tornou, entre tantas coisas relevantes, um mapa moral da geografia humana do Brasil. Davi Arriguci Jr. é escritor e professor aposentado de teoria literária e literatura comparada na USP, autor de, entre outros, "Humildade, Paixão e Morte" (Cia. das Letras). Estreou na ficção com "Ugolino e a Perdiz" (Cosac & Naify). O texto é o posfácio de uma reedição de "Os Ratos", de Dyonelio Machado, que está saindo pela ed. Planeta. Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: + réplica: Apenas vidas de pessoas comuns Índice |
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