São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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Ponto de fuga

Diversos e desusados

Uma coleção discreta traz alguns livros breves. Trata-se de "Artes e Ofícios", publicada pela Ateliê Editorial. Três títulos são voltados para a restauração em arquitetura. Um é de Viollet-le-Duc (1814-1879), medievalista, criador da mais essencial reflexão, prática e histórica, no século 19, sobre a preservação dos edifícios. Outro é de Camillo Boito (1836-1914), voltado para a Idade Média, ele também, arquiteto, teórico, autor da "Casa Verdi", neogótica e requintada, que o bom Giuseppe financiara para abrigar velhos músicos sem recursos. Camillo, irmão de Arrigo, compositor e libretista de Verdi, era ainda literato; entre outros belos textos escreveu "Senso", a novela que inspiraria o filme de Visconti. O terceiro título é de Cesare Brandi (1906-1988), numa perspectiva que se amplia para além da arquitetura. Brandi, parceiro de Argan, ideou e criou o Istituto Centrale per il Restauro, de Roma. Além desses, há dois volumes singulares. "Memórias Biográficas de Pintores Extraordinários", de Willliam Beckford (1759-1844), aristocrata inglês multimilionário, célebre por um conto orientalista e satânico, "Vathek", desesperada descida aos infernos que Byron e Mallarmé veneravam. As "Memórias" falam de pintores imaginários, mas trazem preocupações bem reais sobre as artes daqueles anos de 1780. Enfim, um opúsculo tocante, de 1820, o primeiro sobre música que tenha sido publicado no Brasil, escrito por Lebreton (ou Le Breton, 1760-1819): "Notícia Histórica da Vida e das Obras de José Haydn". Lebreton viera para o Rio como o mentor da Missão Francesa de 1816.

Ancião - Lebreton redigira sua "Notícia Histórica" em Paris, no ano de 1810. Que ela tenha inaugurado as edições musicológicas no Brasil demonstra a autoridade incomparável de Haydn naqueles tempos, patriarca moderno das artes musicais. Eis como vem descrita a homenagem que os vienenses prestaram ao compositor em 1808, um ano antes de sua morte: "Uma das pessoas da maior qualidade lhe beijava a mão que tinha escrito tantos chefes d'obra (sic, por obras-primas). Porém Haydn, ingênuo, modesto, sensível e que não pudera prever esta cena triunfal, perturbando-se com tanta felicidade, com a fraqueza da velhice, só pronunciava palavras balbuciantes: "Nunca experimentei coisa igual! Por que não morro agora?... Entrarei como bem-aventurado no outro mundo!...".".

Fantasia - "Meu maior prazer, quando pequenininho, era de tocar a minha parte nos concertos de família num pedaço de madeira que eu esfregava com uma lasca de ripa, fingindo que segurava nas minhas mãos um violino e um arco, e que extraia dele sons magníficos." Assim falava o jovem Joseph Haydn a uma bela desconhecida, encontrada no acaso dos caminhos. O trecho faz parte de "Consuelo", romance escrito por George Sand em 1842, amado por Castro Alves, que lhe dedicou um poema vibrante: "Nunca leste -Consuelo-, a página fulgente/ Que George Sand, a loura, encheu de encanto e luz?/ Este sonho onde o céu, da terra passa rente.../ Onde o amor, a harmonia e a graça brincam nus?..." (Sand não era loura, mas à licença poética tudo é permitido).
"Consuelo", seguido pela "Condessa de Rudolstad", que a conclui, é uma grande suma das emoções românticas centradas na música, uma revisão negra do século das Luzes, um percurso iniciático, definitivo para a compreensão das sensibilidades desencadeadas pelo romantismo. Salvo erro, não existe dele tradução em português. Em francês, está disponível na coleção Bouquins, da editora Robert Laffont.

Ego - "A Vida de Benvenuto Cellini Escrita por Ele Mesmo" é livro sem igual na história das artes. O escultor, gênio atormentado do Renascimento, traçou um retrato apaixonante do século 16 e deixou de si próprio uma imagem aventurosa, como um herói de capa e espada, que entusiasmou os românticos: Berlioz extraiu daí uma ópera. Há uma elegante tradução em português, com boas notas, por J.L. Moreira, de Athena Editora, em São Paulo, 1939. Algum editor de hoje bem que poderia se interessar por essa obra fora do comum.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br.


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