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+ sociedade
Projeto recupera episódios de "O Vigilante Rodoviário", primeira série do país
produzida para a TV, mas dificuldade de acesso ainda dificulta pesquisas
Pílulas culturais e pedacinhos do Brasil
Carlos Roberto de Souza
especial para a Folha
Embora "O Vigilante Rodoviário",
primeira série brasileira produzida especialmente para a televisão,
tenha feito muito sucesso e se tornado mítica para algumas gerações de
espectadores, até hoje não mereceu, por
parte de pesquisadores de cinema ou especialistas da mídia, um estudo de caráter histórico ou analítico. Uma das explicações para essa lacuna é com certeza a
dificuldade de acesso aos filmes. Após a
teledifusão dos 38 episódios originalmente produzidos, vários deles foram
reunidos em coletâneas exibidas nos cinemas de todo o Brasil durante a década
de 1960.
Depois disso, as aventuras do inspetor
Carlos e de seu fiel pastor alemão Lobo
ficaram guardadas apenas na memória
dos que as assistiram ou em cópias piratas que alguns colecionadores guardavam com ciúmes e eventualmente exibiam como tesouros para pequenos grupos de aficionados.
Os negativos de imagem e som da série
foram levados por seu produtor, Alfredo
Palácios, para a Cinemateca Brasileira no
início dos anos 80, e vários já apresentavam indeléveis sinais de deterioração, alguns mesmo sem condições de duplicação. Os custos envolvidos na restauração
dos filmes fizeram com que muito tempo
se passasse antes de a Cinemateca ter
condições de enfrentar os trabalhos de
duplicação dos episódios passíveis de
salvamento.
Ciúmes de menos
Finalmente, a
partir de 2001, como uma das atividades
do projeto Censo Cinematográfico Brasileiro, apoiado pela Petrobrás Distribuidora e pela Secretaria do Audiovisual do
Ministério da Cultura, foi possível preservar 25 dos 38 episódios. Em julho do
ano passado, por ocasião de uma homenagem a Ary Fernandes, diretor do "Vigilante", na Sala Cinemateca, com a exibição de alguns episódios resgatados, divulgou-se a relação das aventuras desaparecidas. Colecionadores menos ciumentos encaminharam então à Cinemateca cópias de vários episódios, e hoje,
exceto por "O Pagador", do qual só existe a faixa sonora, toda a coleção de "O Vigilante Rodoviário" possui materiais em
bom estado. Resta agora que seja duplicada em DVD e alcance a divulgação que
muitos aguardam, incluído nesses muitos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(ver Ilustrada de 15/8/2003, coluna "Copião").
"O Vigilante Rodoviário" era patrocinado pelos produtos Nestlé, produzido
por Alfredo Palácios e contava na equipe
técnica com dois profissionais que fizeram história no cinema paulista: o editor
Luiz Elias e o fotógrafo Osvaldo de Oliveira. O elenco fixo era pequeno, centrado em Carlos Miranda (que depois da série concluída fez carreira na Polícia Rodoviária) e no cachorro King. O elenco
de convidados, em compensação, era variadíssimo, e incluía tanto atores consagrados -como Milton Ribeiro, Lola
Brah, Hélio Souto, Henricão, Sérgio
Hingst, Xandó Batista, entre outros-
como jovens em princípio de carreira,
ora em papéis de destaque -por exemplo, Rosamaria Murtinho, Fúlvio Stefanini, Stenio Garcia, Geraldo d'el Rey-,
ora pouco mais do que figurantes -Etty
Frazer, Marlene França, Milton Gonçalves, Ary Fontoura.
Isso sem contar a participação de cantores como Tony Campelo ou Juca Chaves -este último interpretando a si mesmo num episódio em que o assunto é seu
próprio rapto.
As peripécias circunscrevem-se ao
triângulo Belo Horizonte-Rio de Janeiro-São Paulo, mas é sobretudo na última e
em seus arredores que se concentra a ficção. Em 1961/62, informa o narrador do
episódio "Ladrões de Automóveis", São
Paulo é uma metrópole com 3,7 milhões
de habitantes, de um "crescimento insopitável", com um tráfego diário de 150
mil veículos. O vale do Anhangabaú era
o umbigo e, o prédio do Banespa, o cartão-postal oficial da cidade.
Cidade equipada
O exame das
mais de 12 horas de projeção que compõem a série, contudo, transmite não
uma imagem de caos urbano, mas a de
uma cidade bem equipada, com o parque Ibirapuera praticamente novo, a Cidade Universitária e o autódromo de Interlagos ainda em construção, um belo
Jardim Botânico, o aeroporto de Congonhas e o estádio do Pacaembu freqüentado por Garrincha, Zagallo e Mazola, em
pleno funcionamento. O inspetor Carlos
e Lobo movem-se com toda liberdade
nesses espaços, do prédio da Bienal aos
bairros mais humildes, onde moleques
quase neo-realistas jogam futebol com
uma bola de meia num terreno baldio,
com o "skyline" do centro ao fundo.
Signos de modernidade surgem naturalmente nesse panorama, a começar pelo sistema de rádio por meio do qual se
comunicam os vigilantes. Músicas de
Cely Campelo, motocicletas, estúdios de
televisão, conversíveis,
aviões Viscount, foguetes
espaciais. E as rodovias,
claro, boa parte delas construída a partir da segunda
metade da década de 1950
com o boom desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek. São elas
que permitem ao inspetor
Carlos movimentar-se
com facilidade entre o espaço urbano e o mundo
rural, que se integram sem
conflitos no universo idílico predominante em "O
Vigilante Rodoviário". Vale a pena notar, porém, que
é no campo que se dá a
captura de boa parte dos
vilões da série, ainda que
os crimes sejam roubos de carro no centro da cidade, um assalto à bilheteria do
Pacaembu num dia de final de campeonato ou os arrombamentos de cofres em
mansões luxuosas.
Como o objetivo da série é executar satisfatoriamente o esquema narrativo do
gênero a que se filia, as rupturas da harmonia são provocadas por eventos exteriores à ordem reinante e seguem, em
sua maioria, o mesmo padrão: a exposição do crime (assalto, chantagem, fuga
de cadeia, falsificação etc.), a perseguição
dos criminosos, a luta final e a prisão dos
culpados. Tudo se dá, porém, sem grandes explosões de violência e é notável como, apesar de tiros e socos, não existe nenhuma gota de sangue em nenhum dos
episódios.
Nacionalismo
Existe uma óbvia,
embora não ostensiva, intenção nacionalista na série "O Vigilante Rodoviário", e uma de suas manifestações é a introdução, no decorrer das aventuras, de
"pílulas culturais" sobre variados assuntos -arte barroca mineira, as bandeiras,
histórias de locais, o Instituto Butantã, a
Bienal de São Paulo etc. Tudo é sempre
feito com discrição, exceto talvez no final
do episódio "O Mapa Histórico". A cena
desenrola-se no gabinete de uma figura
importante do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, e o inspetor Carlos, empolgado talvez com a solenidade do momento, se volta diretamente para a câmara e declara: "Cada documento é uma história, e cada história um
pedacinho do Brasil".
Apesar desse deslize, o conjunto dos
episódios procura e consegue ser cinema
de diversão.
Mas, como escreveu certa feita Paulo
Emilio, "diversão é coisa séria", e o vigilante inspetor Carlos certamente concordaria com o vilão da aventura "Orquídea
Glacial", que, apesar de vilão, ao explicar
a sua cúmplice que estão numa estrada
que em tempos idos servia para contrabando de cachaça, arremata impassível:
"Saber não ocupa lugar".
Carlos Roberto de Souza é produtor e pesquisador de cinema brasileiro e autor de "Nossa Aventura na Tela" (Ed. Cultura). Foi responsável, durante 30 anos, pelo acervo da Cinemateca Brasileira.
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