São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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+ sociedade

Projeto recupera episódios de "O Vigilante Rodoviário", primeira série do país produzida para a TV, mas dificuldade de acesso ainda dificulta pesquisas

Pílulas culturais e pedacinhos do Brasil

Carlos Roberto de Souza
especial para a Folha

Embora "O Vigilante Rodoviário", primeira série brasileira produzida especialmente para a televisão, tenha feito muito sucesso e se tornado mítica para algumas gerações de espectadores, até hoje não mereceu, por parte de pesquisadores de cinema ou especialistas da mídia, um estudo de caráter histórico ou analítico. Uma das explicações para essa lacuna é com certeza a dificuldade de acesso aos filmes. Após a teledifusão dos 38 episódios originalmente produzidos, vários deles foram reunidos em coletâneas exibidas nos cinemas de todo o Brasil durante a década de 1960. Depois disso, as aventuras do inspetor Carlos e de seu fiel pastor alemão Lobo ficaram guardadas apenas na memória dos que as assistiram ou em cópias piratas que alguns colecionadores guardavam com ciúmes e eventualmente exibiam como tesouros para pequenos grupos de aficionados. Os negativos de imagem e som da série foram levados por seu produtor, Alfredo Palácios, para a Cinemateca Brasileira no início dos anos 80, e vários já apresentavam indeléveis sinais de deterioração, alguns mesmo sem condições de duplicação. Os custos envolvidos na restauração dos filmes fizeram com que muito tempo se passasse antes de a Cinemateca ter condições de enfrentar os trabalhos de duplicação dos episódios passíveis de salvamento.

Ciúmes de menos
Finalmente, a partir de 2001, como uma das atividades do projeto Censo Cinematográfico Brasileiro, apoiado pela Petrobrás Distribuidora e pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, foi possível preservar 25 dos 38 episódios. Em julho do ano passado, por ocasião de uma homenagem a Ary Fernandes, diretor do "Vigilante", na Sala Cinemateca, com a exibição de alguns episódios resgatados, divulgou-se a relação das aventuras desaparecidas. Colecionadores menos ciumentos encaminharam então à Cinemateca cópias de vários episódios, e hoje, exceto por "O Pagador", do qual só existe a faixa sonora, toda a coleção de "O Vigilante Rodoviário" possui materiais em bom estado. Resta agora que seja duplicada em DVD e alcance a divulgação que muitos aguardam, incluído nesses muitos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ver Ilustrada de 15/8/2003, coluna "Copião"). "O Vigilante Rodoviário" era patrocinado pelos produtos Nestlé, produzido por Alfredo Palácios e contava na equipe técnica com dois profissionais que fizeram história no cinema paulista: o editor Luiz Elias e o fotógrafo Osvaldo de Oliveira. O elenco fixo era pequeno, centrado em Carlos Miranda (que depois da série concluída fez carreira na Polícia Rodoviária) e no cachorro King. O elenco de convidados, em compensação, era variadíssimo, e incluía tanto atores consagrados -como Milton Ribeiro, Lola Brah, Hélio Souto, Henricão, Sérgio Hingst, Xandó Batista, entre outros- como jovens em princípio de carreira, ora em papéis de destaque -por exemplo, Rosamaria Murtinho, Fúlvio Stefanini, Stenio Garcia, Geraldo d'el Rey-, ora pouco mais do que figurantes -Etty Frazer, Marlene França, Milton Gonçalves, Ary Fontoura. Isso sem contar a participação de cantores como Tony Campelo ou Juca Chaves -este último interpretando a si mesmo num episódio em que o assunto é seu próprio rapto. As peripécias circunscrevem-se ao triângulo Belo Horizonte-Rio de Janeiro-São Paulo, mas é sobretudo na última e em seus arredores que se concentra a ficção. Em 1961/62, informa o narrador do episódio "Ladrões de Automóveis", São Paulo é uma metrópole com 3,7 milhões de habitantes, de um "crescimento insopitável", com um tráfego diário de 150 mil veículos. O vale do Anhangabaú era o umbigo e, o prédio do Banespa, o cartão-postal oficial da cidade.

Cidade equipada
O exame das mais de 12 horas de projeção que compõem a série, contudo, transmite não uma imagem de caos urbano, mas a de uma cidade bem equipada, com o parque Ibirapuera praticamente novo, a Cidade Universitária e o autódromo de Interlagos ainda em construção, um belo Jardim Botânico, o aeroporto de Congonhas e o estádio do Pacaembu freqüentado por Garrincha, Zagallo e Mazola, em pleno funcionamento. O inspetor Carlos e Lobo movem-se com toda liberdade nesses espaços, do prédio da Bienal aos bairros mais humildes, onde moleques quase neo-realistas jogam futebol com uma bola de meia num terreno baldio, com o "skyline" do centro ao fundo. Signos de modernidade surgem naturalmente nesse panorama, a começar pelo sistema de rádio por meio do qual se comunicam os vigilantes. Músicas de Cely Campelo, motocicletas, estúdios de televisão, conversíveis, aviões Viscount, foguetes espaciais. E as rodovias, claro, boa parte delas construída a partir da segunda metade da década de 1950 com o boom desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek. São elas que permitem ao inspetor Carlos movimentar-se com facilidade entre o espaço urbano e o mundo rural, que se integram sem conflitos no universo idílico predominante em "O Vigilante Rodoviário". Vale a pena notar, porém, que é no campo que se dá a captura de boa parte dos vilões da série, ainda que os crimes sejam roubos de carro no centro da cidade, um assalto à bilheteria do Pacaembu num dia de final de campeonato ou os arrombamentos de cofres em mansões luxuosas. Como o objetivo da série é executar satisfatoriamente o esquema narrativo do gênero a que se filia, as rupturas da harmonia são provocadas por eventos exteriores à ordem reinante e seguem, em sua maioria, o mesmo padrão: a exposição do crime (assalto, chantagem, fuga de cadeia, falsificação etc.), a perseguição dos criminosos, a luta final e a prisão dos culpados. Tudo se dá, porém, sem grandes explosões de violência e é notável como, apesar de tiros e socos, não existe nenhuma gota de sangue em nenhum dos episódios.

Nacionalismo
Existe uma óbvia, embora não ostensiva, intenção nacionalista na série "O Vigilante Rodoviário", e uma de suas manifestações é a introdução, no decorrer das aventuras, de "pílulas culturais" sobre variados assuntos -arte barroca mineira, as bandeiras, histórias de locais, o Instituto Butantã, a Bienal de São Paulo etc. Tudo é sempre feito com discrição, exceto talvez no final do episódio "O Mapa Histórico". A cena desenrola-se no gabinete de uma figura importante do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e o inspetor Carlos, empolgado talvez com a solenidade do momento, se volta diretamente para a câmara e declara: "Cada documento é uma história, e cada história um pedacinho do Brasil".
Apesar desse deslize, o conjunto dos episódios procura e consegue ser cinema de diversão.
Mas, como escreveu certa feita Paulo Emilio, "diversão é coisa séria", e o vigilante inspetor Carlos certamente concordaria com o vilão da aventura "Orquídea Glacial", que, apesar de vilão, ao explicar a sua cúmplice que estão numa estrada que em tempos idos servia para contrabando de cachaça, arremata impassível: "Saber não ocupa lugar".


Carlos Roberto de Souza é produtor e pesquisador de cinema brasileiro e autor de "Nossa Aventura na Tela" (Ed. Cultura). Foi responsável, durante 30 anos, pelo acervo da Cinemateca Brasileira.

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