São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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AUTORES
Suíça inova a política ao decidir nas urnas o futuro da manipulação genética
A revolução que veio do frio

BRUNO LATOUR
especial para a Folha

Os suíços têm a falsa reputação de serem excessivamente plácidos em política. Mas, ao organizarem uma "votação" sobre o futuro das manipulações genéticas, os suíços marcaram uma nova etapa na generalização da política científica a todos os cidadãos. Seu referendo, de iniciativa popular, mostra o quanto eles são, ao contrário, profundamente revolucionários. Não se tem certeza de que o voto majoritário seja a melhor forma de regular questões tão delicadas, mas é o evento em si que é digno de atenção.
Noutras épocas, a política científica ("science policy", em inglês, isto é, "política" no sentido de "estratégia") interessava a uma minúscula fração da burocracia dos Estados desenvolvidos e a alguns cientistas em busca de créditos e de influência. Hoje, todo mundo se põe a fazer política científica, ou seja, a decidir sobre a continuação ou a suspensão de programas de pesquisa. Não existe mais a ciência, de um lado -de quem o público pacientemente esperava os resultados-, e a política, de outro -que escolheria os resultados mais conformados aos valores-, mas um conjunto de cidadãos levados a decidir (como os suíços, por meio do voto) sobre aquilo que se deve pesquisar e sobre o que seria desejável obter. Revolução silenciosa, mas, a meus olhos, capital.
Estão os filósofos das ciências equipados para acompanhar tal generalização da política científica? À primeira vista, não. Com efeito, para a maior parte dos filósofos das ciências, a "votação"
suíça representa o horror absoluto, ou seja, a extensão do regime de assembléias -representado pelo voto majoritário- às questões científicas. Toda a filosofia de Karl Popper, por exemplo, tem justamente por objetivo evitar que o reino da maioria venha a perturbar a autonomia necessária ao desenvolvimento das ciências. Quando Imre Lakatos se inclina sobre a distinção entre ciência sem risco e ciência arriscada -aquilo a que chama programas de pesquisa "degenerativos" e "progressivos"-, ele o faz justamente para evitar que a ditadura das massas -para ele, o partido comunista ao qual havia aderido durante a juventude- não viesse esterilizar a pesquisa científica com ditados conservadores.
Todavia, se se olha de mais perto, não é claro que esses filósofos, formados na reação contra o comunismo e o nazismo, sejam grandes analistas dessa política científica generalizada, que não puderam evidentemente conhecer, mas que é um dos sinais do fim de milênio. A "votação" suíça mistura dois conjuntos de procedimentos que, na teoria, deveriam se manter separados -mas que não param, na prática, de se misturar.
O primeiro conjunto pode ser analisado nos termos clássicos de Jürgen Habermas como uma situação de intersubjetividade. Os suíços, compreende-se, não querem que seus alimentos, seus campos, suas montanhas, sua saúde se tornem um terreno de experiências de grande escala para as ciências da vida, que deveriam permanecer confinadas nos laboratórios. Se os geneticistas querem sair do laboratório e mobilizar todos os suíços -paisagem, capital e seres humanos incluídos-, então se vê por que os cidadãos querem poder discutir os riscos que lhes pedem que corram. Todo o projeto de Habermas é justamente para proteger as condições democráticas de direito à palavra contra a intervenção da razão instrumental que põe fim a uma discussão em nome de uma lógica de técnicos, de engenheiros e de cientistas, isto é, em nome dos meios apenas, sem se preocupar com os fins.
Vista por essa óptica habermasiana, a "votação" suíça é um dilema e tanto: os partidários do "sim" à interrupção das pesquisas foram literalmente arrasados por uma campanha de publicidade e de relações públicas dos partidários do "não", que reuniam pesquisadores, industriais, modernizadores e a maior parte dos políticos. Mas não havia, de um lado, militantes arcaizantes, partidários do obscurantismo e, do outro, cientistas livres e esclarecidos, falando em nome da autonomia da pesquisa, mas, acima de tudo, em termos de Habermas, uma distorção contínua da livre discussão em nome da indiscutível necessidade da razão instrumental (são imensos os interesses econômicos da Suíça nas ciências da vida). Os pesquisadores aceitaram -talvez com má consciência- associar-se àqueles que pretendiam "limitar" os direitos de intersubjetividade e da livre discussão sobre riscos. Essa é a primeira lição de tal experiência.
Mas a segunda me parece ainda mais relevante. Se o voto majoritário parece tão mal adaptado a esse tipo de controvérsia, isso não se deve, como acreditavam os partidários do não, a que o público não tivesse nem a competência, nem mesmo o direito de discutir esse tipo de coisa, mas porque a situação de intersubjetividade, definida por Habermas, permanece insuficiente. É nesse ponto que se faz necessário juntar Lakatos a Habermas, ainda que tudo separe esses dois autores. Lakatos não imagina, ao contrário do que afirma, um procedimento que distinga as ciências da política, mas sim um que separe os programas de pesquisa repetitivos e "degenerados" daqueles que são fecundos, arriscados, "progressivos". Ele nos pede, então, para escolher entre diferentes políticas científicas e não entre ciência e política.
Ora, a votação suíça tinha justamente o defeito de obrigar uma escolha completamente artificial entre a superioridade da política sobre a razão instrumental, de um lado, grosso modo, os partidários do "sim", e, do outro, a superioridade da autonomia das ciências e da indústria sobre as inquietudes políticas -os partidários do "não". Escolha calamitosa, pois impede justamente de reunir os direitos de intersubjetividade -a livre discussão- e aquilo a que se poderia chamar os direitos de interobjetividade -a triagem de programas de pesquisa fecundos. Aquilo que os partidários do não se recusam a compreender é a que ponto o conjunto dos habitantes de um país -humanos e não-humanos- se encontram doravante incluídos -por bem ou à força- na experiência coletiva iniciada pelos laboratórios industriais. Para seguir tal experiência coletiva é impossível ficar com a distinção clássica entre, de um lado, intersubjetividade, discussão livre, mas apenas sobre os fins, e, de outro, fatos indiscutíveis, mas que dizem respeito somente aos meios. Uma vez que todos os seres de um só coletivo se acham daqui para diante incluídos como cobaias ou como co-pesquisadores naquilo que se poderia chamar de um vasto "colaboratório", é preciso então inventar procedimentos que reúnam Habermas e Lakatos, os direitos de intersubjetividade e os de interobjetividade. Os suíços ainda não têm a solução, mas certamente iniciaram uma experiência revolucionária que não é de forma alguma prova de arcaísmo ou do avanço do irracional. O que se esboça nessa votação é o ainda vago futuro.


Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Modernos" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Jesus de Paula Assis.




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