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AUTORES
Suíça inova a política ao decidir nas urnas o futuro da manipulação genética
A revolução que veio do frio
BRUNO LATOUR
especial para a Folha
Os suíços têm a falsa reputação
de serem excessivamente plácidos
em política. Mas, ao organizarem
uma "votação" sobre o futuro
das manipulações genéticas, os
suíços marcaram uma nova etapa
na generalização da política científica a todos os cidadãos. Seu referendo, de iniciativa popular, mostra o quanto eles são, ao contrário,
profundamente revolucionários.
Não se tem certeza de que o voto
majoritário seja a melhor forma de
regular questões tão delicadas,
mas é o evento em si que é digno
de atenção.
Noutras épocas, a política científica ("science policy", em inglês,
isto é, "política" no sentido de
"estratégia") interessava a uma
minúscula fração da burocracia
dos Estados desenvolvidos e a alguns cientistas em busca de créditos e de influência. Hoje, todo
mundo se põe a fazer política científica, ou seja, a decidir sobre a
continuação ou a suspensão de
programas de pesquisa. Não existe
mais a ciência, de um lado -de
quem o público pacientemente esperava os resultados-, e a política, de outro -que escolheria os
resultados mais conformados aos
valores-, mas um conjunto de cidadãos levados a decidir (como os
suíços, por meio do voto) sobre
aquilo que se deve pesquisar e sobre o que seria desejável obter. Revolução silenciosa, mas, a meus
olhos, capital.
Estão os filósofos das ciências
equipados para acompanhar tal
generalização da política científica? À primeira vista, não. Com
efeito, para a maior parte dos filósofos das ciências, a "votação"
suíça representa o horror absoluto, ou seja, a extensão do regime
de assembléias -representado
pelo voto majoritário- às questões científicas. Toda a filosofia de
Karl Popper, por exemplo, tem
justamente por objetivo evitar que
o reino da maioria venha a perturbar a autonomia necessária ao desenvolvimento das ciências.
Quando Imre Lakatos se inclina
sobre a distinção entre ciência sem
risco e ciência arriscada -aquilo a
que chama programas de pesquisa
"degenerativos" e "progressivos"-, ele o faz justamente para
evitar que a ditadura das massas
-para ele, o partido comunista ao
qual havia aderido durante a juventude- não viesse esterilizar a
pesquisa científica com ditados
conservadores.
Todavia, se se olha de mais perto, não é claro que esses filósofos,
formados na reação contra o comunismo e o nazismo, sejam
grandes analistas dessa política
científica generalizada, que não
puderam evidentemente conhecer, mas que é um dos sinais do
fim de milênio. A "votação" suíça mistura dois conjuntos de procedimentos que, na teoria, deveriam se manter separados -mas
que não param, na prática, de se
misturar.
O primeiro conjunto pode ser
analisado nos termos clássicos de
Jürgen Habermas como uma situação de intersubjetividade. Os
suíços, compreende-se, não querem que seus alimentos, seus campos, suas montanhas, sua saúde se
tornem um terreno de experiências de grande escala para as ciências da vida, que deveriam permanecer confinadas nos laboratórios.
Se os geneticistas querem sair do
laboratório e mobilizar todos os
suíços -paisagem, capital e seres
humanos incluídos-, então se vê
por que os cidadãos querem poder
discutir os riscos que lhes pedem
que corram. Todo o projeto de
Habermas é justamente para proteger as condições democráticas
de direito à palavra contra a intervenção da razão instrumental que
põe fim a uma discussão em nome
de uma lógica de técnicos, de engenheiros e de cientistas, isto é, em
nome dos meios apenas, sem se
preocupar com os fins.
Vista por essa óptica habermasiana, a "votação" suíça é um dilema e tanto: os partidários do
"sim" à interrupção das pesquisas foram literalmente arrasados
por uma campanha de publicidade e de relações públicas dos partidários do "não", que reuniam
pesquisadores, industriais, modernizadores e a maior parte dos
políticos. Mas não havia, de um lado, militantes arcaizantes, partidários do obscurantismo e, do outro, cientistas livres e esclarecidos,
falando em nome da autonomia
da pesquisa, mas, acima de tudo,
em termos de Habermas, uma distorção contínua da livre discussão
em nome da indiscutível necessidade da razão instrumental (são
imensos os interesses econômicos
da Suíça nas ciências da vida). Os
pesquisadores aceitaram -talvez
com má consciência- associar-se
àqueles que pretendiam "limitar" os direitos de intersubjetividade e da livre discussão sobre riscos. Essa é a primeira lição de tal
experiência.
Mas a segunda me parece ainda
mais relevante. Se o voto majoritário parece tão mal adaptado a esse
tipo de controvérsia, isso não se
deve, como acreditavam os partidários do não, a que o público não
tivesse nem a competência, nem
mesmo o direito de discutir esse
tipo de coisa, mas porque a situação de intersubjetividade, definida
por Habermas, permanece insuficiente. É nesse ponto que se faz necessário juntar Lakatos a Habermas, ainda que tudo separe esses
dois autores. Lakatos não imagina, ao contrário do que afirma,
um procedimento que distinga as
ciências da política, mas sim um
que separe os programas de pesquisa repetitivos e "degenerados" daqueles que são fecundos,
arriscados, "progressivos". Ele
nos pede, então, para escolher entre diferentes políticas científicas e
não entre ciência e política.
Ora, a votação suíça tinha justamente o defeito de obrigar uma escolha completamente artificial entre a superioridade da política sobre a razão instrumental, de um
lado, grosso modo, os partidários
do "sim", e, do outro, a superioridade da autonomia das ciências e
da indústria sobre as inquietudes
políticas -os partidários do
"não". Escolha calamitosa, pois
impede justamente de reunir os
direitos de intersubjetividade -a
livre discussão- e aquilo a que se
poderia chamar os direitos de interobjetividade -a triagem de
programas de pesquisa fecundos.
Aquilo que os partidários do não
se recusam a compreender é a que
ponto o conjunto dos habitantes
de um país -humanos e não-humanos- se encontram doravante
incluídos -por bem ou à força-
na experiência coletiva iniciada
pelos laboratórios industriais. Para seguir tal experiência coletiva é
impossível ficar com a distinção
clássica entre, de um lado, intersubjetividade, discussão livre, mas
apenas sobre os fins, e, de outro,
fatos indiscutíveis, mas que dizem
respeito somente aos meios. Uma
vez que todos os seres de um só
coletivo se acham daqui para diante incluídos como cobaias ou como co-pesquisadores naquilo que
se poderia chamar de um vasto
"colaboratório", é preciso então
inventar procedimentos que reúnam Habermas e Lakatos, os direitos de intersubjetividade e os de
interobjetividade. Os suíços ainda
não têm a solução, mas certamente iniciaram uma experiência revolucionária que não é de forma
alguma prova de arcaísmo ou do
avanço do irracional. O que se esboça nessa votação é o ainda vago
futuro.
Bruno Latour é sociólogo e pesquisador da
ciência francês, autor, entre outros, de "A Vida
de Laboratório" (Relume-Dumará) e "Jamais Fomos Modernos" (ed. 34). Ele escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Jesus de Paula Assis.
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