São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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Programas para minorias desenvolvidos nas universid des redefiniram o estudo e o perfil dos brasilianistas nos EUA, onde mais de 40 livros sobre o Brasil estão sendo
O Brasil da geração afirmativa

Divulgação
A cientista política e brasilianista Melissa Nobles, 35, professora do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que lançará livro sobre a questão racial brasileira


FABIANO MAISONNAVE
especial para a Folha

Uma nova geração de brasilianistas está surgindo nos Estados Unidos. Reflexo de reorientações da academia norte-americana a partir das décadas de 60 e 70, com os movimentos pelos direitos civis e de negros, e de mudanças na sociedade brasileira, ela traz abordagens diferentes para velhos temas, principalmente relações raciais, e acrescenta outros, como estudos sobre pentecostalismo e homossexualidade.
Outra novidade é que os trabalhos recentes são assinados por pesquisadores com um perfil multicultural -há muito mais mulheres, negros, gays e latinos, resultado dos programas de ação afirmativa, que prevêem vagas nas universidades para minorias, e da criação de centros de estudo que abrigam esses grupos.
Entre obras publicadas sobre o Brasil desde o ano passado e que serão lançadas até o ano 2000, a Folha contabilizou pelo menos 49 livros acadêmicos -e o número pode ser ainda maior. Em 95 e 96, o número de publicações chegou a 38 -um aumento de 24%. Além disso, boa parte é resultado de teses defendidas recentemente. "A quantidade de livros que tem saído sobre Brasil em antropologia, história e ciências políticas é impressionante", atesta o historiador Thomas Skidmore, 66 anos de idade e 38 de brasilianismo.
Nesta edição, o Mais! apresenta alguns dos principais nomes da nova geração de brasilianistas surgida nos Estados Unidos.

Mercado de trabalho
Um indicativo do crescimento do interesse pelo Brasil foi a fundação, nos EUA, da Brasa (Brazilian Studies Association). Criada em 92 com 60 sócios, ela conta hoje 1.274 integrantes -dos quais 640 são brasileiros, 491, norte-americanos, e o resto se divide entre franceses, ingleses e portugueses, entre outros.
Parcialmente subvencionada pelo governo brasileiro, a Brasa surgiu como uma dissidência da Lasa (Latin American Studies Association), que mantém uma seção sobre o Brasil, com 85 associados. "Cansamos de ser o reboque da Lasa, eles nunca deram atenção ao Brasil", diz o professor de literatura brasileira da Universidade do Novo México, Jon Tolman, 60, atual diretor-executivo.
Entre as principais características das novas pesquisas está a combinação do estudo do Brasil com outros temas e a ênfase em comparar a realidade brasileira com a de outros países, sobretudo com os EUA. "O Brasil acabou virando um exemplo", diz o professor de história da USP José Carlos Sebe Meihy, 56, autor de dois livros sobre o brasilianismo. "Com a globalização, os estudos de área ficaram menos importantes. O pesquisador agora tem de estudar o Brasil como um caso de feminismo ou racismo."
O motivo é simples: mercado de trabalho. Com raríssimas exceções, dificilmente alguém arranjará emprego em uma universidade norte-americana só para dar aulas sobre o Brasil. Há poucos centros de estudo e apenas um departamento especializado no país, ainda assim dividindo as atenções com Portugal: o da Universidade de Brown, em Providence, onde estão, entre outros, os historiadores Thomas Skidmore e Anani Dzidzienyo (leia entrevista na pág. 5-8). Em geral, o brasilianista tem de dar aula sobre vários temas, e o Brasil acaba servindo de "caso", em cursos de história latino-americana ou de relações de etnicidade e gênero, por exemplo.
Para o antropólogo John Burdick, 40, isso é uma tendência geral das ciências humanas, cujos reflexos não afetam apenas o brasilianismo. "Nas décadas de 50 e 60, ainda era possível ir para um país e escrever um estudo etnográfico sobre tudo. Hoje, temos de escolher um tema e focalizar nele", diz Burdick, autor de dois livros sobre o Brasil. Professor da Universidade de Syracuse (Estado de Nova York), ele nunca ministrou um curso sobre o país.
O fato de os trabalhos apresentarem o Brasil como um "caso" faz com que o termo "brasilianista" dificilmente seja usado nos EUA. "O brasilianismo é uma invenção dos brasileiros", afirma o historiador Robert Levine, 58, diretor de estudos latino-americanos da Universidade de Miami. "Poucas vezes vi um norte-americano usar a palavra. Os brasileiros pensam que nos dedicamos só ao Brasil, mas somos treinados para ser historiadores, antropólogos, não brasilianistas". Detalhe: Levine é de longe o acadêmico norte-americano com o maior número de livros sobre o Brasil em todos os tempos -16, dos quais 5 somente entre 98 e este ano.
O enfoque comparativo não significa que faltem estudos mais relacionados à especificidade brasileira. "O Brasil ainda desperta muito interesse em si", diz Skidmore, que, como exemplo, cita um ex-aluno de doutorado porto-riquenho que recentemente defendeu tese sobre educação no Rio de Janeiro da década de 30.
Essas duas tendências -estudos temático-comparativos e estudos mais focalizados na especificidade brasileira- aparecem nitidamente em três áreas, que têm se destacado nos últimos anos: raça, gênero e religião. Nas duas primeiras, a tendência é pela comparação, o que em geral enfatiza as semelhanças -e muitas vezes o retrato do Brasil acaba tendo contornos norte-americanos. Nos estudos sobre religião, a ênfase em fenômenos como pentecostalismo dá mais espaço à particularidade brasileira.
"Os trabalhos sobre raça e gênero são reflexos no Brasil do que tem acontecido nos EUA", diz o historiador porto-riquenho Dain Borges, 44, presidente da Brasa e professor da Universidade da Califórnia em San Diego. Para ele, os estudos sobre religião tendem a ser mais originais. "A orientação é menos preconcebida, tem uma agenda menos norte-americana."
A verdade é que, apesar de o Brasil não ter mais a importância estratégica da década de 60, quando os EUA, temendo que a Revolução Cubana se espalhasse pela América Latina, deram incentivos generosos para quem quisesse estudar o país, o interesse está aumentando. E isso apesar da falta de estímulos: há quase unanimidade em dizer que está cada vez mais difícil conseguir financiamento. Se na década de 60 o brasilianismo se expandiu por causa das bolsas, hoje continua apesar delas.
Com a entrada de mulheres e minorias e a criação de centros de estudos para esses grupos, a academia norte-americana viu-se inundada por pesquisas com temáticas sociais "de baixo para cima". Por causa disso, esses trabalhos têm sido muitas vezes classificados de "politicamente corretos".
Segundo Levine, entre os brasilianistas o politicamente correto tem se manifestado muitas vezes na escolha do tema. "Há muitos trabalhos sobre o movimento negro no Brasil, que é muito pequeno, frágil. Existe um interesse desproporcional em escolher um assunto em que pode haver vítimas e culpados. Acho interessante estudar sobre Palmares, mas é igualmente interessante fazer estudos nos quais não se sabe como sairá a conclusão."
Para Dzidzienyo, 58, o termo "politicamente correto" acabou virando nos EUA uma crítica velada a mulheres e minorias. "É muito fácil agora falar que as relações raciais, de gênero, imigração, pobreza, tudo isso é politicamente correto. Então o que significa isso? Que temos de voltar ao status antigo, onde essas coisas permaneciam bem caladas e cada um fica no seu lugar?", pergunta o historiador, que é negro.


Fabiano Maisonnave é pós-graduando em história na Universidade de Connecticut (EUA) e bolsista da comissão Fulbright.



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