São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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O mito da escrava Anastácia

especial para a Folha

Ainda que não pertença a nenhuma minoria, o antropólogo John Burdick, 40, reúne muitas das características da nova geração de brasilianistas. A começar pelos temas: seu último livro, "Blessed Anastácia" (Anastácia Abençoada), lançado no ano passado, estuda as relações entre gênero, raça e religiosidade no Rio de Janeiro, os três temas mais explorados pelas pesquisas recentes.
Essa intersecção resultou numa perspectiva diferente de outros brasilianistas que abordam relações raciais. Em vez de investigar o tema por meio dos movimentos negros, que em geral atraem poucos militantes e muitos pesquisadores, Burdick optou por movimentos religiosos, como as igrejas pentecostais e o culto à escrava Anastácia. "Precisamos saber sobre os processos mais informais que estão criando também uma consciência negra dentro das igrejas protestantes", diz à Folha.
Para o antropólogo, a conscientização negra ligada à religiosidade existe, ainda que algumas vezes seja ambígua e fragmentada, como é o caso do culto a Anastácia.
"Anastácia se tornou um ponto de inspiração ao não aceitar que o proprietário a estuprasse", afirma. "É uma história de resistência importante, um recurso para a mulher que está sofrendo um abuso dentro de casa. Mas tem o outro lado: para muitas mulheres negras, Anastácia as persuadiu a resignar-se a serem exploradas."
Em seu livro, Burdick critica os movimentos negros, que, segundo ele, evitam o diálogo com os pentecostais e preferem símbolos como Zumbi a Anastácia.
Um dos pontos centrais do livro de Burdick é a diferenciação do preconceito por gênero. Segundo ele, para as mulheres o racismo é uma experiência muito mais forte e ligada principalmente ao corpo. "As mulheres são ensinadas desde novas que o valor delas reside na aparência, na pele, no nariz, nos cabelos. A questão racial é uma questão de corpo, de como uma pessoa é vista fisicamente. E a mulher negra sofre no próprio corpo a ênfase sobre a beleza física, pois vive numa sociedade que estigmatiza sua aparência."
O trabalho de Burdick é um dos poucos da nova geração já disponível em português: seu primeiro livro, "Procurando Deus no Brasil", foi publicado no ano passado pela editora Mauad. A obra é resultado de doutorado concluído em 1990 na Universidade da Cidade de Nova York, sob a orientação de Eric Wolf, um dos mais importantes antropólogos americanos.
O tom militante e o uso do Brasil como exemplo são outros fatores que o fazem característico da nova geração. Ex-integrante do Partido Democrata Socialista dos Estados Unidos, Burdick veio ao Brasil pela primeira vez em 84 por motivos "político-pessoais". Influenciado pela Teologia da Libertação, Burdick disse que chegou ao país muito "romântico". "Pensava que iria testemunhar um processo de conscientização radical dentro das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)", disse, referindo-se às congregações católicas ligadas à teologia da libertação.
O que ele encontrou, no entanto, foi um fenômeno diferente: Burdick chegou quando as igrejas pentecostais começavam a se multiplicar pelo país. Resultado: a sua pesquisa, em vez de mostrar o avanço das CEBs, buscou explicar por que a Igreja Católica estava perdendo espaço no Brasil. (FM)




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