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PRIMEIRA LEITURA
Um certo retrato do Brasil
da Redação
Leia, a seguir, texto inédito escrito pelo professor Antonio Candido para o livro "Com Palmos
Medida" (Editora Boitempo), que
foi organizado por Flávio Aguiar e
será lançado na segunda quinzena
deste mês.
ANTONIO CANDIDO
Esta excelente antologia convida
o leitor a entrar no Brasil pela sucessão dos tempos, percorrendo
textos que têm quase sempre como moldura ou pano de fundo as
relações de trabalho referidas à
terra. Descrição da terra, relato
sobre os modos de ocupá-la, costumes dos que nela vivem, opressão exercida pelo mais forte sobre
o mais fraco, a iniquidade da escravidão, os obstáculos ao trabalho livre -tudo aparece aqui desde a hora do descobrimento até
hoje. No país imenso, homens espoliados passam nessas páginas
privados da terra e dos mínimos
vitais, oprimidos pelas diversas
formas de prepotência, tratados
frequentemente como se fossem
solo e mato, não seres humanos
iguais aos que os oprimem e contra os quais por vezes se revoltam.
No entanto, o que ressalta para o
leitor é a sua profunda humanidade.
Graças à capacidade que tem a
literatura de esposar os ângulos
mais variados, a realidade aparece
aqui como se fosse vista pelo oprimido, mas também pelo opressor.
O resultado é um certo retrato do
Brasil, traçado segundo uma visão
de cima e uma visão de baixo, isto
é, feito do ângulo do opressor e do
ângulo do oprimido, de maneira a
configurar uma teia complexa de
relações comprometidas pela desumanização que a desigualdade a
suscita.
Para compor esse retrato, Flávio
Aguiar fez uma escolha paciente e
eficaz, trabalhando sobre o que se
poderia chamar o jogo dos níveis
do discurso. Assim foi que recorreu aos cronistas, aos catequistas,
aos poetas, aos ficcionistas a fim
de apresentar os modos de transformar a realidade em texto, desde
o informante que fornece documento até o narrador que o dissolve no surreal. Ao fazer isso, mostrou que em literatura o que fala
mais alto é a força do discurso, a
capacidade que tem o escritor de
arranjar as palavras de maneira
que elas suscitem uma "representação", mais do que um "registro". É o teor literário que faz a
verdade da escrita, porque permite transformar o fato em significado. O resultado é um mundo além
do nosso mundo, que no entanto
nos faz compreendê-lo melhor.
Por isso, o leitor encontrará aqui
escritos que o liberam do momento, isto é, da vida, para trazê-lo de
volta a ela mais lúcido e mais
consciente, como ensina um conceito famoso.
No caso, podemos dizer que encontrará a representação das facetas mais diversas que, aos poucos,
revelam a história do esforço ingrato sobre a terra mal repartida
do Brasil, gerando conflitos e pondo o homem contra o homem:
conquistador contra índio, senhor
contra escravo, patrão contra empregado, rico contra pobre, concorrentes entre si. Em torno desse
núcleo crescem, como subprodutos inevitáveis, a guerra e a miséria, a espoliação, o fanatismo e a
exclusão social -num vasto processo desumanizador que levaria a
dizer, invertendo a proposição
otimista que embalou a formação
de tantas gerações, que não há por
que nos ufanarmos do nosso país.
Em compensação (sugere este livro), podemos nos sentir confortados pelos que são capazes de
vê-lo em ilusões.
A OBRA
Com Palmos Medida - Organização de Flávio Wolf Aguiar. Prefácio de Antonio Candido. Ed. Boitempo (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 011/3865-6947). 420 págs.
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