São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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PRIMEIRA LEITURA

Um certo retrato do Brasil

da Redação

Leia, a seguir, texto inédito escrito pelo professor Antonio Candido para o livro "Com Palmos Medida" (Editora Boitempo), que foi organizado por Flávio Aguiar e será lançado na segunda quinzena deste mês.

ANTONIO CANDIDO

Esta excelente antologia convida o leitor a entrar no Brasil pela sucessão dos tempos, percorrendo textos que têm quase sempre como moldura ou pano de fundo as relações de trabalho referidas à terra. Descrição da terra, relato sobre os modos de ocupá-la, costumes dos que nela vivem, opressão exercida pelo mais forte sobre o mais fraco, a iniquidade da escravidão, os obstáculos ao trabalho livre -tudo aparece aqui desde a hora do descobrimento até hoje. No país imenso, homens espoliados passam nessas páginas privados da terra e dos mínimos vitais, oprimidos pelas diversas formas de prepotência, tratados frequentemente como se fossem solo e mato, não seres humanos iguais aos que os oprimem e contra os quais por vezes se revoltam. No entanto, o que ressalta para o leitor é a sua profunda humanidade.
Graças à capacidade que tem a literatura de esposar os ângulos mais variados, a realidade aparece aqui como se fosse vista pelo oprimido, mas também pelo opressor. O resultado é um certo retrato do Brasil, traçado segundo uma visão de cima e uma visão de baixo, isto é, feito do ângulo do opressor e do ângulo do oprimido, de maneira a configurar uma teia complexa de relações comprometidas pela desumanização que a desigualdade a suscita.
Para compor esse retrato, Flávio Aguiar fez uma escolha paciente e eficaz, trabalhando sobre o que se poderia chamar o jogo dos níveis do discurso. Assim foi que recorreu aos cronistas, aos catequistas, aos poetas, aos ficcionistas a fim de apresentar os modos de transformar a realidade em texto, desde o informante que fornece documento até o narrador que o dissolve no surreal. Ao fazer isso, mostrou que em literatura o que fala mais alto é a força do discurso, a capacidade que tem o escritor de arranjar as palavras de maneira que elas suscitem uma "representação", mais do que um "registro". É o teor literário que faz a verdade da escrita, porque permite transformar o fato em significado. O resultado é um mundo além do nosso mundo, que no entanto nos faz compreendê-lo melhor. Por isso, o leitor encontrará aqui escritos que o liberam do momento, isto é, da vida, para trazê-lo de volta a ela mais lúcido e mais consciente, como ensina um conceito famoso.
No caso, podemos dizer que encontrará a representação das facetas mais diversas que, aos poucos, revelam a história do esforço ingrato sobre a terra mal repartida do Brasil, gerando conflitos e pondo o homem contra o homem: conquistador contra índio, senhor contra escravo, patrão contra empregado, rico contra pobre, concorrentes entre si. Em torno desse núcleo crescem, como subprodutos inevitáveis, a guerra e a miséria, a espoliação, o fanatismo e a exclusão social -num vasto processo desumanizador que levaria a dizer, invertendo a proposição otimista que embalou a formação de tantas gerações, que não há por que nos ufanarmos do nosso país. Em compensação (sugere este livro), podemos nos sentir confortados pelos que são capazes de vê-lo em ilusões.



A OBRA
Com Palmos Medida - Organização de Flávio Wolf Aguiar. Prefácio de Antonio Candido. Ed. Boitempo (av. Pompéia, 1.991, CEP 05023-001, SP, tel. 011/3865-6947). 420 págs.




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