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LIVROS
"Envie Meu Dicionário" traz 68 cartas do poeta Paulo Leminski
Configuração do mito
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Paulo Leminski é um mito em
construção. Pode ou não vingar
enquanto tal, mas, ao morrer com
44 anos no dia 7 de junho de 89,
deixou elementos suficientes para
virar candidato a ícone da poesia
brasileira pós-concretismo.
As 68 cartas que o autor paranaense mandou ao poeta Régis
Bonvicino entre 76 e 81, reeditadas
agora no volume "Envie Meu Dicionário", concentram e realimentam esse potencial.
Fruto de uma mente em rebuliço
e multifacetada, agitadas, ansiosas
e efervescentes, essas cartas, além
de refletirem as circunstâncias políticas e culturais do período, revelam em especial o martírio, a "angústia de influência" que
se apoderava
então do autor
de "Caprichos
& Relaxos",
"Distraídos
Venceremos"
e "Catatau",
entre outros livros.
Numa referência à busca
de autonomia frente aos poetas
concretistas, por exemplo, a oitava carta, de julho de 77, afirma:
"...nós já estamos chegando lá/ isto é/ em muitos momentos do
nosso trabalho/ às vezes mais às
vezes menos/ já consegui ver a
fímbria de algo/ q já não é mais
concretismo/ embora o pressuponha e o tenha deglutido".
Ao se expor desse modo -à cata
de "voz própria e forte", como
afirma Bonvicino na introdução-, Leminski na verdade reunia em si aflições de toda uma geração de poetas -muitos em
"crise" até hoje-, desde que se
começou a considerar que o concretismo poderia ser encarado como coisa "do passado". "O que a
gente precisa sempre é combater/
debelar alguns interditos e tabus q
a poesia concreta instalou...", escreve na carta 42.
Em um texto de 89, reproduzido
no presente volume, Carlos Ávila
resume a questão. Para ele, Leminski traçou "um arco de ligação entre a poesia concreta e as
novas sensibilidades não-especializadas" dos anos 70.
As cartas de Leminski testemunham, também, algo essencial para a configuração de um mito: acima de tudo, a paixão pelo ato de
escrever, o apego à palavra bem
explorada, a inquietação. Leia este
trecho: "...fazer poemas não é a
coisa mais importante/ mas para
quem faz é/ e tem que ser assim"
(décima carta, outubro de 77).
Reside aí, aliás, o valor mais estimulante do livro: a exposição, para o leitor, de um artista em movimento; a expressão contagiante de
um homem
apaixonado
pelo seu ofício,
vivenciando o
anseio por
uma poesia
"mais destrutiva".
Nesse aspecto, uma leitura
atenta das cartas revela também que na
realidade Leminski não chegou
aonde pretendia como poeta. Junto à obra já publicada, este volume, ao desvelar sua evolução íntima de criador, indica que, caso
não tivesse morrido de forma tão
precoce, ele provavelmente acabaria por gerar uma poética de maior
dimensão e mais densidade do que
aquela efetivamente produzida.
Nas cartas pode-se acompanhar,
ainda, a inclinação do artista para
a música popular. A satisfação
diante do uso de letras suas em
canções é enorme; fica transparente, em especial, o deslumbramento com Gilberto Gil e Caetano
Veloso -o último tendo gravado
"Verdura", com letra de Leminski.
Senhor de um ego inchado, o
poeta também sabe ser ferino. Picha sem piedade um disco de Walter Franco ("...aquele misticismo
decadente de hare hare/ aquela
chinoiserie orientalóide/ aquele
clima frufru de quem está em lugar algum/ e não pertence a povo
algum") e, na mesma carta (34, de
setembro de 78), afirma: "Minhas
canções são um bilhão de vezes
melhores q tudo isso...".
Ao mesmo tempo, é carinhoso e
até patriarcal com o seu destinatário (dez anos mais jovem), ao qual
transmite inúmeros elogios e a
quem chama, entre outras coisas,
de "manorégis" e "regérrimo".
As cartas, trazidas agora na íntegra e em fac-símile (diferentemente da primeira edição, "Uma Carta uma Brasa Através", Editora
Iluminuras, 1992), permitem que
se saboreiem as estripulias gráfico-poéticas por vezes juvenis de
Leminski. Todas são datilografadas, mas trazem rabiscos e arroubos construtivistas, desenhos, travessuras gramaticais, jogos sonoros, emendas manuscritas -retrato vivo, enfim, da forma-pensamento do autor.
Prato cheio para fãs ou estudiosos, a edição se completa com ensaios e resenhas do próprio Régis
Bonvicino, Boris Schnaiderman e
Júlio Castañon Guimarães, além
de um resumo biográfico e de sua
obra escrito por Tarso de Melo.
Traça em suas páginas o perfil
arisco de um ativíssimo poeta, filho de pai polonês e mãe negra,
faixa preta de judô, "zenmarxistaconcretista", como ele se define
na carta 36, tradutor de autores
mais ou menos malditos, conhecedor (dizia) de seis línguas. Um
artista e agitador cultural que soube viver fadado à mitologia -não
faltando, aí, nem mesmo o envolvimento com o álcool, o qual acabou aos poucos por lhe cobrar a
vida.
A OBRA
Envie Meu Dicionário - Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Ed.
34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 272 págs. R$ 27,00.
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