São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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LIVROS
"Envie Meu Dicionário" traz 68 cartas do poeta Paulo Leminski
Configuração do mito

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Paulo Leminski é um mito em construção. Pode ou não vingar enquanto tal, mas, ao morrer com 44 anos no dia 7 de junho de 89, deixou elementos suficientes para virar candidato a ícone da poesia brasileira pós-concretismo.
As 68 cartas que o autor paranaense mandou ao poeta Régis Bonvicino entre 76 e 81, reeditadas agora no volume "Envie Meu Dicionário", concentram e realimentam esse potencial.
Fruto de uma mente em rebuliço e multifacetada, agitadas, ansiosas e efervescentes, essas cartas, além de refletirem as circunstâncias políticas e culturais do período, revelam em especial o martírio, a "angústia de influência" que se apoderava então do autor de "Caprichos & Relaxos", "Distraídos Venceremos" e "Catatau", entre outros livros.
Numa referência à busca de autonomia frente aos poetas concretistas, por exemplo, a oitava carta, de julho de 77, afirma: "...nós já estamos chegando lá/ isto é/ em muitos momentos do nosso trabalho/ às vezes mais às vezes menos/ já consegui ver a fímbria de algo/ q já não é mais concretismo/ embora o pressuponha e o tenha deglutido".
Ao se expor desse modo -à cata de "voz própria e forte", como afirma Bonvicino na introdução-, Leminski na verdade reunia em si aflições de toda uma geração de poetas -muitos em "crise" até hoje-, desde que se começou a considerar que o concretismo poderia ser encarado como coisa "do passado". "O que a gente precisa sempre é combater/ debelar alguns interditos e tabus q a poesia concreta instalou...", escreve na carta 42.
Em um texto de 89, reproduzido no presente volume, Carlos Ávila resume a questão. Para ele, Leminski traçou "um arco de ligação entre a poesia concreta e as novas sensibilidades não-especializadas" dos anos 70.
As cartas de Leminski testemunham, também, algo essencial para a configuração de um mito: acima de tudo, a paixão pelo ato de escrever, o apego à palavra bem explorada, a inquietação. Leia este trecho: "...fazer poemas não é a coisa mais importante/ mas para quem faz é/ e tem que ser assim" (décima carta, outubro de 77).
Reside aí, aliás, o valor mais estimulante do livro: a exposição, para o leitor, de um artista em movimento; a expressão contagiante de um homem apaixonado pelo seu ofício, vivenciando o anseio por uma poesia "mais destrutiva".
Nesse aspecto, uma leitura atenta das cartas revela também que na realidade Leminski não chegou aonde pretendia como poeta. Junto à obra já publicada, este volume, ao desvelar sua evolução íntima de criador, indica que, caso não tivesse morrido de forma tão precoce, ele provavelmente acabaria por gerar uma poética de maior dimensão e mais densidade do que aquela efetivamente produzida.
Nas cartas pode-se acompanhar, ainda, a inclinação do artista para a música popular. A satisfação diante do uso de letras suas em canções é enorme; fica transparente, em especial, o deslumbramento com Gilberto Gil e Caetano Veloso -o último tendo gravado "Verdura", com letra de Leminski.
Senhor de um ego inchado, o poeta também sabe ser ferino. Picha sem piedade um disco de Walter Franco ("...aquele misticismo decadente de hare hare/ aquela chinoiserie orientalóide/ aquele clima frufru de quem está em lugar algum/ e não pertence a povo algum") e, na mesma carta (34, de setembro de 78), afirma: "Minhas canções são um bilhão de vezes melhores q tudo isso...".
Ao mesmo tempo, é carinhoso e até patriarcal com o seu destinatário (dez anos mais jovem), ao qual transmite inúmeros elogios e a quem chama, entre outras coisas, de "manorégis" e "regérrimo".
As cartas, trazidas agora na íntegra e em fac-símile (diferentemente da primeira edição, "Uma Carta uma Brasa Através", Editora Iluminuras, 1992), permitem que se saboreiem as estripulias gráfico-poéticas por vezes juvenis de Leminski. Todas são datilografadas, mas trazem rabiscos e arroubos construtivistas, desenhos, travessuras gramaticais, jogos sonoros, emendas manuscritas -retrato vivo, enfim, da forma-pensamento do autor.
Prato cheio para fãs ou estudiosos, a edição se completa com ensaios e resenhas do próprio Régis Bonvicino, Boris Schnaiderman e Júlio Castañon Guimarães, além de um resumo biográfico e de sua obra escrito por Tarso de Melo. Traça em suas páginas o perfil arisco de um ativíssimo poeta, filho de pai polonês e mãe negra, faixa preta de judô, "zenmarxistaconcretista", como ele se define na carta 36, tradutor de autores mais ou menos malditos, conhecedor (dizia) de seis línguas. Um artista e agitador cultural que soube viver fadado à mitologia -não faltando, aí, nem mesmo o envolvimento com o álcool, o qual acabou aos poucos por lhe cobrar a vida.



A OBRA
Envie Meu Dicionário - Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 011/816-6777). 272 págs. R$ 27,00.




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