São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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PONTO DE FUGA

O médico e as tintas

JORGE COLI
em Nova York

Um homeopata, que morava em Auvers-sur-Oise, aldeia ao norte de Paris, entrou para a história graças à sua prodigiosa intuição artística. Seu sentido das descobertas foi tão precoce que já em 1874 podia emprestar dois quadros de sua coleção para a primeira mostra dos impressionistas: um estupendo Guillaumin e o essencial "Uma Moderna Olímpia", de Cézanne. É preciso bem perceber as datas. Quando o dr. Gachet recebe Cézanne em sua casa, em 1873, o pintor ainda era incipiente e certamente o menos considerado de toda a vanguarda. Quando Van Gogh, no final de sua vida, busca refúgio em Auvers, é ignorado. Mas o médico torna-se seu amigo e o assistirá no seu leito de morte. O dr. Gachet reúne uma fabulosa coleção, guardada mais tarde a sete chaves por seu filho, homem recluso e rabugento, que viria provocar a ira dos marchands e da comunidade acadêmica. Boatos acabaram sendo inventados, atingindo a própria imagem do dr. Gachet. Foi acusado de falsificações, de roubo, e Artaud, com seu ódio pela medicina, culpou-o pelo suicídio de Van Gogh. Gachet filho terminou doando, por volta de 1950, os quadros mais importantes para os museus franceses. Outros ele vendera. Uma exposição, apresentada em Paris, Amsterdã e agora em Nova York, reúne o que foi possível desse conjunto. Ela põe o ponto nos is. O resultado é inteligente, estimulante e revelador.

OLHO - O dr. Gachet não tinha fortuna. Podia comprar apenas obras baratas. Em 1904, uma das versões de seu retrato pintado por Van Gogh chegou a US$ 400. Em 1990, o mesmo quadro foi vendido por US$ 82,5 milhões. Soma inacreditável, atestando os acertos desse médico que colecionava por amor, que nunca especulou nem enriqueceu. Ele, seu filho e uma amiga, Blanche Derousse, possuíam um certo talento e copiavam afetuosamente os quadros. Na atual mostra, a parede com "Uma Nova Olímpia", rodeada por suas cópias, excita sem cessar a comparação, indicando aquilo que cada um deles percebia na obra. O próprio Cézanne fez uma gravura, em Auvers, a partir de uma paisagem de Guillaumin, buscando estruturas ali onde a atmosfera dissolve os volumes. A série dos Guillaumin, por sinal, é deslumbrante, assinalando-o como imenso artista. O hipnótico auto-retrato com fundo azul, a igreja de Auvers, por Van Gogh, estão entre as melhores pinturas de todos os tempos. Muito mais do que os dólares do mercado das artes, a beleza das obras demonstra o olhar certeiro do dr. Gachet, numa exposição que lhe faz, enfim, justiça.

BOCEJO - Os "cultured americans" pouco mudaram desde que Henry James os retratou em seus romances. Entre o tédio e a ingenuidade, eles vagueiam num mundo nebuloso, em que não conseguem distinguir bem as coisas. "Cruel Intentions", de Roger Kumble, situa "As Ligações Perigosas", de Laclos, num meio nova-iorquino de milionários e de implausível libertinagem que se quer requintada. Um "cultured american movie" sem o kitsch enérgico que salva.

EPÍGONO - Com uma certa vivacidade e um diálogo muito engraçado, "Go", de Dough Liman, é um filme articulando histórias de alguns adolescentes que trabalham num supermercado. Eles se metem em enrascadas, vendendo falso ecstasy, envolvendo-se com gângsteres em Las Vegas. Algumas situações escabrosas são irresistíveis. A narração cruza várias vezes consigo mesma, nos mesmos pontos, reapresentando as mesmas cenas a partir de perspectivas diferentes, às quais novos significados vão se acrescentando. Lembra um pouco "Mistery Train", menos a poesia. Lembra bastante Tarantino, menos a invenção e a crueldade.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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