São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997.



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O MESTRE DO TEATRO
O palco da memória

O crítico Décio de Almeida Prado, que faz 80 anos no dia 14 de agosto, é homenageado por atores, diretores e pesquisadores no livro "Um Homem de Teatro", a ser lançado neste mês


NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Décio de Almeida Prado chega aos 80 anos no dia 14 de agosto. Seria uma surpresa, mas o crítico acabou sabendo da edição do livro "Décio de Almeida Prado - um Homem de Teatro". A publicação da Edusp, organizada por João Roberto Faria, Vilma Arêas e Flávio Aguiar, reúne ensaios e artigos de amigos e colegas, sobre ou para Décio de Almeida Prado.
Escrevem, entre outros, o diretor teatral Antunes Filho, Sábato Magaldi, crítico de teatro e professor aposentado da USP, e Antonio Candido, companheiro seu na revista "Clima", que o homenageia no livro com um ensaio sobre François Villon.
Ao mesmo tempo, sai pela Companhia das Letras "Seres, Coisas, Lugares", uma nova coletânea de ensaios e artigos do próprio Almeida Prado, que inclui também textos sobre futebol, uma paixão do crítico -capaz de falar longamente sobre Leônidas, Bauer, até Dodô.
Ao receber o jornalista para uma conversa um mês atrás, e novamente duas semanas depois, Décio de Almeida Prado mostrou orgulhoso as provas do livro da Edusp, de 436 páginas. Mencionou elogiosamente alguns textos, mostrou-se sinceramente grato, também humilde, como se tivesse recebido um grande presente dos amigos.
Também mostrou-se orgulhoso pelos 80 anos, e por ter acompanhado o que se descreve como a era de ouro do teatro brasileiro -nos seus 22 anos de crítica teatral no jornal "O Estado de S. Paulo", de 1946 a 1968; também depois, com livros e ensaios históricos, e antes, como ator e diretor e nas primeiras críticas, na revista "Clima".
É quase sempre do passado que fala Almeida Prado, nas diversas conversas que o jornalista vem tendo com o crítico desde o início dos anos 90. Conta do "Clima", da amizade com Paulo Emilio Salles Gomes, colega de ginásio e crítico de cinema, da grandeza de Cacilda Becker, atriz que ele dirigiu quando ela começava.
Nas lembranças, empolga-se e relata minúcias, algumas adoráveis. Recorda sua empolgação ao ver, ainda adolescente, o ator Procópio Ferreira em "Deus Lhe Pague". Depois viria a combater, talvez até levar à decadência, o mesmo Procópio Ferreira e toda a sua geração.
Foi o que o crítico descreveria como "o sacrifício ritual do pai", no livro "Procópio Ferreira" (Ed. Brasiliense, 1984). Mas não demonstra remorso; precisava abrir caminho para o novo teatro, o que chamaria de teatro brasileiro moderno, de Cacilda, Sérgio Cardoso, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
Sempre solícito, Décio de Almeida Prado atende ele próprio ao telefone. Recebe seus interlocutores, muitos estudantes, como relata, e tem uma paciência infindável para responder ao que perguntam. Nas visitas destes últimos seis anos, em que o jornalista abusou da disponibilidade do crítico, jamais demonstrou má vontade ou aborrecimento, por longas, de muitas horas, que fossem as conversas.
Resignadamente, ouve questões que esmiúçam respostas que já deu anteriormente, repete histórias com mais e mais detalhes, como se fosse a sua missão, tarefa. Ultimamente, recebe animado pesquisadores com estudos sobre a sua própria obra crítica -estudos em preparação, como o de Jacó Guinsburg e Nanci Fernandes, que tem um capítulo reproduzido em "Um Homem de Teatro".
Nas visitas a sua casa, numa rua quieta e arborizada do bairro do Pacaembu, também é quase sempre ele próprio quem atende à porta. Vai com passos lentos até o portão. Acompanha o interlocutor à sala de estar, sóbria sem ser carregada, com uma ou outra lembrança do teatro.
Há poucos meses, esperou pacientemente enquanto a fotógrafa Lenise Pinheiro, que acompanhou o jornalista, montava e desmontava grandes equipamentos. Brincou, exigiu ser dirigido nas poses. Sorriu sem parar para a câmera, um sorriso sereno, mas de grande felicidade, que está guardado nas fotos.
Décio de Almeida Prado, depois que a sua saúde piorou, de dois anos para cá, desistiu do grande projeto de escrever a história do teatro no Brasil. O projeto está anunciado em publicação recente sua, "Teatro de Anchieta a Alencar" (Ed. Perspectiva, 1993), cuja primeira metade, denominada "Para uma História do Teatro no Brasil", abrange organizadamente do teatro jesuítico até os primeiros românticos do século 19.
O projeto, ele disse nas visitas, chegaria até 1910, mas preferiu abandoná-lo, em favor de ensaios históricos sem ordenação maior. Não chegou a dizê-lo, mas deixou a impressão de temer não completar a história. Ainda assim, produziu depois, já sem a preocupação com o projeto, "O Drama Romântico Brasileiro" (Ed. Perspectiva, 1996), que seria o passo seguinte.
Mais recentemente, estaria escrevendo pouco, ou nem escrevendo, pela exaustão provocada pelo trabalho. Prefere ouvir ópera, outra paixão sua, e ler. De todo modo, tem -ou tinha- na cabeça um livro iconográfico sobre antigas salas de teatro, históricas, de diversas cidades brasileiras.
E certamente é possível compor a própria história projetada, com os inúmeros ensaios que já escreveu sobre Artur Azevedo, Procópio Ferreira e outros do período, sobretudo sobre comédias, que vai dos românticos a "O Teatro Brasileiro Moderno" (Ed. Perspectiva, 1988), este o livro que cobre de meados dos anos 30 a meados dos anos 70.
Mas Almeida Prado já nem gosta de falar do projeto histórico. Prefere as memórias do teatro moderno, que viu, da platéia. Um teatro que cobre, mais especificamente, das suas primeiras experiências no palco (e da sua recusa a encenar "O Rei da Vela", como queria Oswald de Andrade) até o conturbado final dos anos 60, quando da devolução dos prêmios Saci, que ele distribuía (e quando aconteceu a montagem, afinal, de "O Rei da Vela").
Oswald de Andrade foi amigo do jovem Décio de Almeida Prado, mas as diferenças com o escritor modernista parecem ter definido muito do próprio trabalho futuro do crítico, modernista de segunda geração. Mas, nem quando muito interrogado sobre o escritor, o crítico perde a disposição de espírito.
Nas conversas, revelou irritação uma única vez. Foi quando o interlocutor elogiou o trabalho de João Adolfo Hansen, autor de "A Sátira e o Engenho" (Ed. Companhia das Letras, 1989) e professor de literatura da USP.
Almeida Prado não escondeu a contrariedade, questionando uma análise que tomaria a obra de Gregório de Matos isolada, sem as circunstâncias em que se dá. O jornalista quis argumentar que Hansen busca escapar de influências anacrônicas na sua análise das obras do período colonial, mas o crítico encerrou por ali o tema.
Mais atento à história do teatro depois que deixou a crítica diária, Décio de Almeida Prado não acompanha o que se faz hoje nos palcos. Não vai ao teatro há vários anos e a única peça que teria assistido de Gerald Thomas, por exemplo, o qual já pode ser considerado um veterano, seria a primeira versão de "Carmem com Filtro", em meados dos anos 80.
Se não tem a vivência cotidiana do teatro dos anos 90, nem por isso deixa de fazer o diagnóstico mais certeiro do período, ao avaliar que, hoje, a variedade, a diversidade, é a marca do teatro. Se em sua época havia diretrizes definidas, referências iguais para todos, agora cada companhia segue caminho estético próprio, é o que ele diz.
Por outro lado, questiona o predomínio das comédias, que tanto combateu quando começava, em favor do drama.
Dos jornais diários, o grande crítico hoje só lê regularmente "O Estado de S. Paulo", que assina. Lê a Folha de vez em quando, sobretudo a edição de domingo, por causa do caderno Mais!.
Mantém-se fiel ao jornal em que trabalhou nos 22 anos da crítica diária de teatro e nos 11 anos da edição do "Suplemento Literário", de 1956 a 1967. A sua relação com o "Estado" é quase familiar. Seu pai era o médico da família Mesquita, proprietária do jornal, e ele próprio, Décio, começou no teatro pelas mãos de Alfredo Mesquita.
Não teve concorrentes nas mais de duas décadas de crítica teatral. É elogiado por praticamente todos os artistas do período, do Paulo Autran do TBC ao José Celso Martinez Corrêa do Oficina. Ouve-se que, mesmo quando discordava ou questionava um espetáculo, Décio de Almeida Prado acrescentava alguma coisa, ensinava.




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