São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997.



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LIVROS
A antiepopéia dos descobrimentos

'O Ponto Onde Estamos' estuda o cotidiano das navegações portuguesas


JEAN M. CARVALHO FRANÇA
especial para a Folha

A história das navegações portuguesas, na época dos descobrimentos, é uma história constituída, basicamente, por partidas e chegadas, algumas poucas tragédias, belos feitos e uma galeria de nomes célebres. Nas muitas páginas dedicadas a contar as aventuras daqueles que dilataram as fronteiras do império e da fé, diminuto espaço foi concedido ao fastidioso e, muitas vezes, pouco edificante cotidiano das naus que cruzaram os mares nunca dantes navegados. Os altos desígnios do império português, a expansão da fé católica, as vultosas transações mercantis e tantos outros aspectos grandiosos da aventura dos descobrimentos lançaram as viagens propriamente ditas para uma região obscura e quase desconhecida.
É justamente a essa região pouco explorada que nos leva "O Ponto Onde Estamos - Viagens e Viajantes na História da Expansão e da Conquista", de Paulo Miceli. Qual o aspecto de Lisboa na época dos descobrimentos? Como eram construídas as naus que iriam singrar os mares longínquos? Quem eram os navegantes? Que hierarquias imperavam no interior das embarcações? A que dieta eram submetidos os marinheiros? Como era ocupado o tempo numa travessia de longo alcance? Qual o ambiente de uma embarcação às beiras do naufrágio? E os náufragos, que martírios enfrentavam após a tragédia? Essas são algumas das questões que Miceli busca responder ao longo desse trabalho.
Para fazê-lo, o autor optou por recorrer, tanto quanto possível, aos testemunhos daqueles homens que, na qualidade de ativos participantes ou de meros espectadores, viveram a nem sempre feliz aventura dos descobrimentos. Essa opção trouxe consigo uma dificuldade: a carência de fontes. Ora, se sobre as navegações portuguesas do seiscentos, naquilo que tange à composição das armadas, ao traçado das rotas e aos conhecimentos técnicos aplicados pelos navegadores, há abundante documentação, o mesmo não se pode dizer quando o que está em causa são os interregnos entre as partidas e as chegadas, isto é, quando o que está em causa é o cotidiano a bordo das naus. Nesse domínio, a pobreza documental é a nota dominante.
Tal situação é bastante perceptível em alguns capítulos do livro de Miceli, capítulos estruturados basicamente em torno de um única fonte primária. Isso, contudo, embora não permita uma multiplicação dos pontos de vista sobre os acontecimentos relatados, em pouco compromete a qualidade do trabalho. Servindo-se de uma linguagem clara, o historiador vai preenchendo as lacunas, encaixando algumas peças recolhidas aqui e ali, comparando os poucos testemunhos existentes, articulando informações contidas em obras literárias coetâneas e, desse modo, acaba por traçar um panorama relativamente detalhado do tema que aborda.
Um dos fatores que, sem dúvida, colabora para os bons resultados da obra diz respeito à forma como o autor ordena a sua matéria. O leitor é gradativamente conduzido para o interior do mundo das navegações. A princípio, ele é convidado a percorrer as ruas da Lisboa seiscentista, a cidade das partidas e chegadas. O cenário que se lhe apresenta é contraditório: de um lado, a Lisboa do comércio próspero, do movimento portuário incessante, dos ruidosos vendedores ambulantes e das ruas cheias de gente de todas as cores; de outro, a cidade assolada pela carestia, pela miséria, pelos terremotos e, sobretudo, pelas doenças epidêmicas. Essas últimas, como destaca o autor, vinham, de tempos em tempos, cobrar a sua cota em vidas humanas, suscitando o pânico geral, o sobressalto dos administradores e as mais exaltadas demonstrações de fé dos devotos.
Desse ambiente, ao mesmo tempo risonho e dantesco, o leitor é transportado para o interior dos estaleiros. Aqui, ele assiste ao confronto do discurso com a prática. De saída, Miceli apresenta as idéias acerca da construção naval defendidas pelo arquiteto seiscentista João Batista Lavanha. Preocupado com o fato de essa nobre arte estar entregue à grosseira prática dos fabricadores de navios, Lavanha inicia a redação de um tratado (obra inacabada), no qual procura dar a conhecer os preceitos certos e determinados para a fabricação dos navios. É essa espécie de manual, com as suas muitas regras e prescrições, que o historiador põe em cena para, em seguida, cotejar as recomendações aí contidas com a prática efetiva dos, muitas vezes desqualificados, mestres, carpinteiros e calafates que trabalhavam na Ribeira das Naus, em Lisboa. Ao preciosismo do arquiteto, contrapõe-se o imediatismo dos artesãos, que tinham de lidar com a estreiteza dos prazos, a baixa qualidade das matérias-primas e os muitos interesses ecônomicos que regiam a empresa marítima.
Conhecido o cenário das partidas e os contornos das naus, o leitor está pronto para embarcar. Começa, então, aquilo que o autor denomina a antiepopéia dos descobrimentos. Nas viagens narradas por Miceli, há pouco espaço para a conhecida e cantada bravura dos aventureiros portugueses.
Em seu lugar, o que encontramos são pilotos inaptos, que conduzem os navios para a perdição; são mapas imprecisos, que lançam as naus em caminhos incertos e infindáveis; são marinheiros famintos, disputando aos socos um biscoito mofado; são passageiros e tripulantes enfermos, disseminando a doença e a morte pela embarcação; são navios mal construídos, incapazes de resistir à violência das tempestades marítimas; são depósitos de carga lotados de mercadorias, comprometendo o equilíbrio das naus; enfim, são as múltiplas facetas de uma empresa que contou com muito improviso, que foi dominada pelos interesses de mercadores e governantes e que teve enormes custos humanos.
Em meio a essas cenas pouco heróicas, o leitor tem a oportunidade de conhecer alguns aspectos curiosos da difícil vida a bordo das naus: o perfil das tripulações, as hierarquias a que estavam sujeitas, a sua alimentação, os seus passatempos etc. Desse quadro variado, dois detalhes merecem destaque: a religiosidade de bordo e o drama dos naufrágios. Ao olharmos para o primeiro, vislumbramos os padres controlando a moralidade dos marujos, restringindo a circulação das mulheres e punindo os excessos dos pecadores; vislumbramos também as procissões e as arrebatadas manifestações de misticismo. Ao contemplarmos o segundo, o que vem à tona, em três atos, como quer o autor, são as agruras do tempo e o prenúncio da tragédia, o desespero dos homens lançados ao mar e o desalento dos náufragos após a catástrofe.
Eis, em linhas gerais, o esboço desse mundo das navegações traçado por Miceli. Restrições? Uma não muito importante: a presença de um primeiro capítulo teórico que pouco ou nada acrescenta à obra, já que esta, no seu próprio corpo, deixa bastante claras as opções teórico-metodológicas do autor. Afora esse aspecto, "O Ponto Onde Estamos" tem todos os elementos para levar o leitor a percorrer por inteiro os limites do território que demarca.


Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia da cultura, doutor em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Universidade Nova de Lisboa (Portugal).

A OBRA

O Ponto Onde Estamos - Paulo Miceli. Ed. da Unicamp (r. Cecílio Feltrin, 253, CEP 13084-110, Campinas, SP, tel. 019/788-2175). 228 págs. R$ 26,00.



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