São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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Câmeras sem fronteiras

Duas coletâneas discutem as obras do diretor Andrea Tonacci e gêneros como terror e comédia no Brasil

FERNÃO PESSOA RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Duas boas coletâneas, lançadas recentemente na área de estudos de cinema, debatem a questão do gênero e das fronteiras de formas narrativas cinematográficas. "Serras da Desordem", com organização de Daniel Caetano, trata do documentário de mesmo nome, de Andrea Tonacci, lançado recentemente.
Cinco textos e uma entrevista compõem o livro. Debruçam-se sobre o filme que marca o retorno ao longa-metragem de um dos principais diretores brasileiros. Tonacci começou dirigindo um clássico do cinema marginal, "Bang Bang", para depois enveredar por uma carreira de documentarista em que retrata, de modo bem particular, a vida de comunidades indígenas isoladas ("Conversas no Maranhão", "Os Araras").
Em "Serras da Desordem", abandona a forma mais fenomenológica, por assim dizer, da representação documentária, para compor seu filme dentro de uma tradição forte do documentário contemporâneo, a exploração de personagem (no caso o índio Carapiru e sua fascinante história de vida).
Para tal, desloca a posição de recuo de "Conversas no Maranhão", as tentativas reflexivas de "Os Araras" (entregar a câmera ao índio), para assumir a interferência livre na composição da alteridade, conformando o personagem à sua medida, sem deixar de usar o compasso da personalidade e do "estar na tomada" de Carapiru.
Os textos da coletânea, de modo geral, debatem-se com uma falsa questão, em que podemos notar dilemas éticos da antropologia visual que marcaram a segunda metade do século 20. Imagina-se uma espécie de grau zero da linguagem cinematográfica para definir o que é documentário e, como a narrativa nunca consegue atingir esse ponto, necessita-se de conceitos como ficção, realidade ou verdade para fechar o campo.

Questão deslocada
Mas a tradição documentária traz em seu âmago, desde o início, formas variadas de encenação, seja em estúdio, em locação ou no que podemos chamar de encenação-atitude, na própria da tomada abrindo-se para a indeterminação do acontecer. Tonacci, em "Serras da Desordem", trabalha livremente com a encenação (como antes dele fizeram Flaherty, Grierson, Laurentz, Morris e tantos outros), como é próprio da tradição documentária.
Estaria por isso fazendo mais ou menos documentário? A questão está deslocada. O paradigma de Tonacci nesse filme é o mesmo de Jean Rouch em seus documentários mais bem-sucedidos, abrindo largo espaço para a encenação e improvisação diante da câmera.
Num paradigma ético mais fechado, marcado pelas exigências desconstrutivas da antropologia, ambos acabam emparedados e os críticos, enrolados em conceitos compósitos para tentar abordá-los.
O que falta reconhecer é que Tonacci (como também Rouch, em outra sintonia) é antes de tudo cineasta, e não antropólogo, e sua obra se relaciona com a tradição do cinema e do documentário que passa muito além, ou aquém, de exigências metodológicas ou éticas das humanidades. Mesmo uma análise fílmica com cacoetes descritivos não consegue esgrimir essa evidência.
"Cinema de Bordas", com organização de Bernadette Lyra e Gelson Santana, trabalha com um horizonte percorrido pela bibliografia anglo-saxã em estudos de cinema, denominado estudos de gênero.
Não o gênero politicamente correto de feministas ou gays, mas o gênero enquanto estrutura narrativa e de produção recorrente (western, ficção científica, terror, musical, comédia etc).
Em "Cinema de Bordas", o diálogo é com a cultura "trash" do cinema brasileiro. Para isso, é construído um conceito de utilidade duvidosa a que se dá o nome de "cinema de bordas".
Como o filé da proposta está no gênero, muitas vezes comendo-se pela borda não se chega ao que interessa. A ausência de bibliografia mais centrada na questão do gênero impede o aprofundamento do recorte.
De qualquer modo, cabe ao livro o mérito de se debruçar de modo inédito sobre uma produção pouco conhecida. O resgate do "trash" nacional vai além de obras de José Mojica Marins ou do terrir de Ivan Cardoso, para desembocar, por exemplo, na impagável pornochanchada "O Pasteleiro", de David Cardoso, com roteiro de Ody Fraga e John Doo atuando como o facínora pasteleiro antropófago.

Questão central
Se a questão é o cinema de gênero, vamos a ele com coragem, inclusive porque a questão das bordas do gênero está no âmago da discussão sobre o tema -tanto na teoria do cinema quanto na bibliografia mais antiga da teoria literária e do drama.
As bordas do gênero, as bordas do documentário, se revelam em sua riqueza quando deixamos de lado preocupações de heterodoxia para nos centrarmos, sem os sobressaltos normativos que herdamos do século passado, na diversidade caleidoscópica das formas narrativas cinematográficas.


FERNÃO PESSOA RAMOS é professor livre-docente no departamento de cinema da Universidade Estadual de Campinas, autor de "Mas Afinal... O Que É Mesmo Documentário?" (Senac).

SERRAS DA DESORDEM
Organização:
Daniel Caetano
Editora: Azougue (tel. 0/xx/21/ 2240-8812)
Quanto: R$ 25,90 (144 págs.)

CINEMA DE BORDAS
Organização:
Bernadette Lyra e Gelson Santana
Editora: A Lápis (tel. 0/xx/11/ 2275-6011)
Quanto: R$ 33 (224 págs.)


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