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Mesmo com falhas de revisão, tradução brasileira do "Doutor Fausto" é confiável
Liberdade contida
especial para a Folha
Numa das cartas que Edoardo
Bizzarri, o tradutor italiano de
Guimarães Rosa, dirigiu ao escritor mineiro, o traduzir é definido em certo momento como um "ato
de amor, pois trata-se de se transferir por
inteiro numa outra personalidade". São
palavras um tanto vagas, mas exprimem
uma verdade válida também para as traduções que Herbert Caro fez de livros de
Thomas Mann: "Os Buddenbrooks", "A
Montanha Mágica", "Carlota em Weimar", "As Cabeças Trocadas" e "Doutor
Fausto".
É sem dúvida este último que oferece
maiores dificuldades à tradução, como o
próprio narrador Serenus Zeitblom reflete, no "epílogo" do romance, em relação às possibilidades de verter para o inglês "trechos excessivamente arraigados
na mentalidade alemã". Respaldado, porém, pelo domínio integral do romance
(e ainda por suas afinidades com a dicção serena e humanista do narrador),
Herbert Caro enfrenta o desafio com
uma soberania e liberdade que lhe facultam desviar-se por vezes da estrutura linguística, ou mesmo do significado, de
uma frase isolada, sem contudo jamais
transgredir o sentido mais profundo da
obra. O leitor brasileiro do "Doutor
Fausto" tem assim em mãos um texto
plenamente confiável, ainda que note
vez ou outra pequenas incorreções que
uma revisão mais atenta teria evitado,
começando com a data equivocada, logo
na página de abertura, de 27 (em lugar de
23) de maio de 1943 como o início da
narração.
Registre-se também que em algumas
passagens o tradutor preocupa-se em
buscar sinônimos para termos que não
variam no original; assim, o mesmo
substantivo "Kälte", frieza, e o adjetivo
"kalt", frio, tão essenciais na história de
Adrian (pois dotados de um "nimbo de
pavor incompreensível para todos os
que não os tenham conhecido no seu significado mais horroroso"), aparecem às
vezes, desnecessariamente, como "frigidez" ou "frígido".
Lapso linguístico
Outro aspecto
que mereceria padronização: no último
capítulo, durante o patético discurso em
que expõe a convidados o seu testamento musical, "A Lamentação do Doutor
Fausto", Adrian comete, em decorrência
de distúrbios cerebrais, toda sorte de
"lapsus linguae". Num desses pronuncia
a palavra "Deus" ("Gott") como "Dius"
("Got", com a vogal o alongada e fechada). Mas acontece que esse "lapsus" é o
mesmo que já fazia o pequeno Nepomuk
em suas preces noturnas, que Caro vertera então como "De-us".
É primorosa, sem dúvida, a tradução
do capítulo 25, em que um Diabo proteiforme discorre sobre o pacto e a doença
doadora de genialidade, sobre a precária
situação da música no século 20 e a realidade indescritível da "espelunca" infernal: "Meu prezado amigo, convém, portanto, que se contente com symbolis
quem quiser falar do Inferno". No entanto pode-se dizer que o texto português fica muito aquém do substrato arcaico do
original. Uma pesquisa filológica mais
aprofundada poderia ter fornecido ao
tradutor um repertório mais amplo de
arcaísmos portugueses ("tudesco" é aqui
um termo dos mais frequentes).
Assim, as interjeições com que o Demo
pontilha sua fala remetem ao século de
Lutero e da "História do D. Fausto":
"Potz hundert Gift!", "Potz Fickerment!", "Potz Stern!", sendo "Potz" uma
corruptela de "Gott", expressões aliás
que ainda povoam um romance como o
"Simplicissimus" (1669).
Os equivalentes da tradução, bem menos
expressivos, são meros "Bolas!", "Puta
merda!", "Com a breca!".
Contudo descuidos isolados ou soluções menos felizes não podem empanar
o reconhecimento que devemos a essa
tradução que soube captar com mestria
o tom, o ritmo, a perspectiva que moldaram o original. Caro revela igualmente
domínio íntimo dos vários assuntos e temas tratados no romance, em primeiro
lugar a teoria musical. Cite-se como
exemplo a descrição, no penúltimo capítulo, de "A Lamentação do Doutor Fausto", com a sua nota final que por longo
tempo permanece vibrando na alma,
suspensa no silêncio "como uma luz na
noite": "O sol agudo de um violoncelo, a
última palavra, o derradeiro som que
plana no ar e se extingue, lentamente sumindo numa fermata em pianíssimo".
Em alemão, "sol agudo" é a nota "g"
("das hohe g"), inicial da palavra "Gnade" (graça) a que Mann quis aludir para
conferir um acorde de esperança à sombria história de Leverkühn (e da Alemanha hitlerista). Se a tradução renuncia a
tal alusão, o sentido do original fica plenamente preservado com esse "sol", que
não só corresponde ao "g" da antiga notação musical, mas também à sugestão
de luz que se levanta no final do romance.
(MARCUS MAZZARI)
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